Fabio Silva Alves
Gerente jurídico financeiro-tributário na Ipiranga. MBA em Gestão de Negócios (USP) e pós-graduado em Auditoria Tributária (UFRJ) e Direito Tributário (IBET). Advogado (UFF) e jornalista (UFRJ)

Os desejos de “feliz Natal” e “feliz Ano Novo” latejavam os pensamentos de Quixote Silva. Sob o ainda civilizado Sol de fim de primavera, há pouco deixara o supremo plenário após a última sessão do ano. Sem convite para o tal almoço de confraternização – “Elementar, meu caro Dom”, lhe diria o amigo de outras aventuras jurídicas[1] –, nada mais restava ao “sonhador advogado, amante de Direito Tributário”[2], do que voltar as reflexões para os quereres contidos na frase.
Ao caminhar em direção ao Brasil, trocava olhares de canto com a Justa Senhora que, sem enxergar, guarda o Texto Maior de toda uma nação. Mas afinal, as emoções da advocacia tributária que vivera nos últimos 12 meses lhe haviam dado motivos para acreditar que teria essas felicidades de fim e de começo de ano?
Antes de concluir, alguns moinhos de vento lhe vieram à cabeça.
*
Sem preocupações cronológicas, mal finalizara a virada de pescoço e já se lembrou do dia em que o poeta, se vivo estivesse, reescreveria os versos para o “futuro agrediu o passado”. No julgamento dos Temas 881 e 885, a Senhora fizera jus ao prenome e, Justa, preservara a concorrência, determinando que, nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo, “as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado (...) respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo”. Em Língua Portuguesa, quem tinha decisão judicial final pelo não pagamento de determinado tributo teria de passar a pagá-lo quando, em ditas situações, a Corte Maior posteriormente entendesse pela cobrança (o debate em 2023 fora sobre a CSLL, entendida como constitucional anos antes).
"Justo e óbvio”, lhe dissera o amigo e escudeiro Sancho Alves. Ora, preservar para sempre em vantagem concorrencial quem obtivera decisão transitada em julgado, em matéria tributária, antes de pacificada a postura do Tribunal Supremo, era sim de uma injustiça boçal, desmedida até mesmo para padrões tupiniquins.
Mas a história não era só essa. Mesmo com a resiliência de quem cada vez menos ataca os persistentes moinhos que cruzam o caminho, o que nunca lhe descera a calejada (pelo álcool) garganta fora a não modulação de efeitos. Como sustentar que seus clientes haviam “feito uma aposta” ao confiarem na suposta segurança de uma decisão transitada em julgado? Como defender que eles sabiam que teriam de pagar algo que o serviço Judiciário – sim, “ser-vi-ço” – lhes oferecera documento (a decisão transitada!) em sentido contrário? Como virar a toga da insensibilidade aos danos sociais e financeiros causados a quem sustenta a economia e a própria máquina do Estado e que não deixara de pagar tributo por malandragem contumaz (isso é outra história), mas sim por confiar em um dos Poderes da República? Como não confundir o Justo com o justiceiro?
Ali, Quixote confessava ter-se percebido mais cego que a Senhora, só que sem qualquer presunção de algo enxergar. Inclusive, as ausências de luzes física e mental lhe deixaram em tamanha escuridão que, contraditoriamente, via-se também incapaz de compreender o julgado pela ADPF 512/DF.
À ocasião, a excelsa posição fora no sentido da inconstitucionalidade de “norma municipal que institui taxa em razão da fiscalização da ocupação e da permanência de postes instalados em suas vias públicas”. E isso, sob o fundamento de ser de competência privativa da União legislar sobre energia (art. 22, IV, CF/88), bem como exclusiva de fiscalizar os serviços a ela relacionados e de editar normas gerais sobre sua transmissão (arts. 21, XII, “b”; e 175, CF/88).
Mas a fiscalização não seria sobre a ocupação do espaço público, evitando que os tais postes fossem instalados e mantidos em locais que proporcionassem desconforto ou mesmo riscos à população local?”, ainda se questionava Dom. “O que tem a ver com a energia elétrica em si além de ser o suporte físico para a sua transmissão?”
Mal finalizara essa nada iluminada lembrança e percebera que dançantes luzes avermelhadas do Sol de cerrado giravam em volta da bela praça pela qual caminhava sozinho, no coração do Brasil. Tonto e entorpecido pela fome dos sem-convite-de-almoço ou pela imagem de harmonia entre os Três Poderes, personificada pela tremulante Bandeira nacional, perdeu o equilíbrio e espatifou-se no chão.
Solitário, repassou como são especialmente importantes os amigos (ou apenas os que tenham interesses que convirjam) para se reequilibrar. Na zonza memória, a recordação da ADI 5635, por meio da qual a Justa Senhora vira por trás da venda constitucionalidade nas Leis 7.428/2016 e 8.645/2019, ambas do estado do Rio de Janeiro, que instituíram o Fundo Estadual de Equilíbrio Fiscal (FEEF) e, posteriormente, o Fundo Orçamentário Temporário (FOT).
Fundos atípicos com a finalidade de promover o equilíbrio fiscal da respectiva unidade federada, desde que suas receitas possuam destinação genérica, podendo atender a quaisquer demandas”, lembrava-se Quixote – enquanto, desacompanhado, ainda tentava reerguer-se – da definição e da justificativa jurídica para a cobrança feita pelo Rio de Janeiro de 10% da diferença entre o valor do ICMS que seria pago sem benefício/incentivo fiscal e o valor com o dito benefício/incentivo. E isso para que determinada empresa pudesse usufruir desse tal benefício ou incentivo fiscal relacionado ao imposto.
Não entender essa cobrança como (i) a criação de um imposto diverso do ICMS – e, portanto, que deveria ter sido feita por lei complementar, de competência exclusiva da União –, ou (ii) um empréstimo compulsório (o que também caberia à União, por lei complementar), ou mesmo (iii) uma contribuição, justamente pela vinculação da receita (igualmente destinada à União), ainda era corda bamba intelectual difícil para Dom equilibrar-se.
Talvez por esse desalento, Quixote tenha então sentido frio repentino. Nunca morrera, mas achava que a sensação seria semelhante. Ironicamente, ali, bem no centro dos Poderes da República, nesse momento de quase passagem, ainda teve presença de (algum) espírito e recordou-se da ADI 5869/DF. Após seu julgamento, fora decidido que “É constitucional a incidência de ISS sobre a cessão de direito de uso de espaços em cemitérios para sepultamento, pois configura operação mista que, como tal, engloba a prestação de serviço consistente na guarda e conservação de restos mortais inumados”.
Só que dessa vez, mesmo caído, maltrapilho e cansado, Dom sorriu. Embora já tivesse compreendido a nítida mudança de musculatura pela qual o ainda bombado ISS vinha passando há anos – indo da moribunda incidência cerrada e fechada vinculada a “obrigações de fazer” para a ampla e quase abstrata “utilidade” –, ocorreu-lhe que não era hora de morrer e deixar esse “novo” passivo tributário para a família Quixote Silva. Essa e outras transformações, muito mais “fortes”, o aguardavam no ano por vir.
Sim, iria viver.
Assim, ainda à sombra da Bandeira gigantesca, Dom levantara levemente a doída cabeça e observara alguns feixes de luz cortando as gêmeas e imponentes Torres à sua frente, vindo em sua direção. Sem ilusões, tinha perfeita convicção de que se não apenas pela altruísta busca do bem comum, mesmo que fosse pelos interesses egoístas que não raro movem os Poderes, tinha razão para acordar às 4h40 mais um dia.
Ao apoiar a mão esquerda no joelho para iniciar o processo de reerguida, veio à mente ADI 4273/DF, por meio da qual a Senhora concluíra pela óbvia constitucionalidade de “dispositivos de leis que estabelecem a suspensão da pretensão punitiva estatal, em consequência do parcelamento de débitos tributários, bem como a extinção da punibilidade do agente, se realizado o pagamento integral”.
Elementar, meu caro Dom, já que o bem jurídico tutelado é o crédito tributário”, lhe dissera à época o amigo inglês que, apesar da nacionalidade, não se engana ao ver o que querem que apenas veja.
Meio que usando a perna direita como combustível a impulsioná-lo, Quixote revivera o Tema 694 (RE 781.926/GO). Nela, a suprema posição fora de que “o diferimento do ICMS relativo à saída do álcool etílico anidro combustível (AEAC) das usinas ou destilarias para o momento da saída da gasolina C das distribuidoras (Convênios ICMS 80/1997 e 110/2007) não gera o direito de crédito do imposto para as distribuidoras”.
Não se ofende a não cumulatividade, pois não existe crédito sobre o que não se paga”, sempre alertara Quixote, uma vez que o Estado de produção do AEAC não exige o ICMS na operação de saída das usinas, precisamente porque seu recolhimento será postergado e feito de forma unificada, quando ocorrer a saída da gasolina “C” das próprias distribuidoras.
Nunca estiveram entre seus moinhos os que de antemão sabia ilusórios. Enganar-se, sim. Enganar os outros, não.
Virou suavemente a cabeça à esquerda, olhou de longe a Senhora e quase sentiu suas mãos se entrelaçarem.
Havia esperança. E trabalho. E, sim, interesses comuns.
*
O Sol batia forte. A memória última lembrara Dom das conquistas que ele, protagonista das sombras, ajudara a obter naqueles 12 meses. Consolidações, como a da Lei Complementar 192/22 – que trouxeram mais simplicidade, racionalidade e transparência à problemática tributação de combustíveis –, estiveram entre os tapinhas nas costas que se dera ao longo daquele ano que chegava ao fim.
Fosse o que tivesse sido, não era hora de mais recordações. De olhares para trás. De aguardar pelo afago que não veio. Era tempo de equilibrar, erguer e avançar.
De pé, Quixote deixou a penumbra da Bandeira. Sob a luz do dia, decidira que não morreria agora. Próximo das Torres e longe de moinhos, viveria para ver caminhar, como ele, o novo Sistema Tributário que nasceria na virada do ano (o que ocorreu com a sanção presidencial, resultando na Emenda Constitucional 132/23). Ainda que cheio de falhas, privilégios e puxadinhos, tinha ao menos o melhor e o pior de nós (e não somente o pior). Sim, havia esperança, trabalho e interesses comuns que ele, a Justa Senhora, as Torres, a Bandeira e todos os representados naquela Praça poderiam construir justos.
E, assim, Dom deixou moinhos para trás e seguiu adiante, em busca dos votos de felicidades que lhe tinham há pouco (ao vento) desejado.
Que venham os próximos 12 meses.
[1] Elementar conclusão tributária em ALVES, Fabio Silva. “Um Estudo Tributário em Verde e Amarelo”, https://www.conjur.com.br/2022-mai-01/fabio-silva-alves-estudo-tributario-verde-amarelo Conjur, 2022.
[2] Primeiros moinhos em ALVES, Fabio Silva. “Entre quixotismos e guerreiros: a esperança na tributação de combustíveis”, https://www.conjur.com.br/2022-nov-13/fabio-silva-alves-quixotismos-ajustes-fases-unicas-guerreiros/; Conjur, 2022