
O futuro da Justiça é online. Nesse futuro os mundos offline e online não competem, nem disputam, apenas se complementam em harmônica cooperação. O Judiciário online tem sido essencial para a construção de uma jurisdição mais célere, inclusiva, aberta, transparente e igualitária. Mas como o metaverso, aqui entendido como a recriação online do mundo offline[1], e a possível entrada do Judiciário brasileiro nesse novo ambiente impactam a igualdade de gênero?
Para entender esse cenário, vejamos o que aconteceu com o Judiciário em razão da pandemia da Covid-19. A doença impactou decisivamente o mundo do trabalho, como um todo, e especificamente o Judiciário, onde o trabalho online passou a ser a regra. Não obstante tenhamos ficados todos confinados, o distanciamento social e o trabalho remoto afetaram desproporcionalmente as mulheres[2].
Na prestação do serviço público da Justiça, a transição do offline para o online já havia começado há décadas. Em meu livro de 2016, ao analisar o plenário virtual do STF, criado em 2007, eu já salientava que as novas tecnologias eram mais que uma tendência crescente no Judiciário, mas sim um caminho sem volta[3]. A pandemia veio apenas acelerar esse processo.
No Judiciário, o efeito catalisador da pandemia da Covid-19 foi decisivo, imprimindo um retrospectivo tom profético ao discurso de posse do ministro Dias Toffoli como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), que, ainda em 2018, falava sobre a revolução digital e a necessidade de uma Justiça adaptada às novas tecnologias, julgamentos virtuais, comunicação processual por meio das redes sociais, programas de inteligência artificial, vaticinando: “O virtual agora é real”.
Em 2021, em seu pronunciamento de encerramento do ano do Judiciário, o presidente do STF, ministro Luiz Fux, apresentou a nova concepção do Supremo como “Corte digital”, realçando o conceito central de cooperação e integração entre a Justiça do “mundo real” ou presencial e a Justiça online[4]. A Corte que criou o plenário virtual, ainda em 2007, e agora se apresenta como Corte digital, com 100% de seus processos digitalizados, não estará no metaverso, no futuro?
Como isso impacta a questão de gênero?
A igualdade — de gênero — é um dos fundamentos da Justiça e do Estado democrático de Direito, enunciada na maioria dos textos e convenções internacionais, assim como nos textos das constituições modernas como o preceito “todos são iguais perante a lei”. A sociedade moderna, em suas múltiplas complexidades e disputas, tem se debruçado sobre a dimensão material e equitativa dessa igualdade, a significar que, apesar de importante, um enunciado normativo não é suficiente para assegurar que pessoas em situações e pontos de partida diferentes possam desfrutar das mesmas e equânimes condições para alcançar um tratamento igualitário perante o Estado, a lei e a sociedade.
Através dos séculos, o gênero tem sido utilizado como um marcador de papéis sociais, desempenhando um viés discriminatório contra a participação das mulheres nas esferas públicas de poder.
No Poder Judiciário brasileiro, apesar de serem 52% da população brasileira e maioria nos cursos e entre formados em Direito, apenas 39% são magistradas. Nas cúpulas em particular, em cada cinco desembargadores, apenas uma é mulher. Nas cortes superiores, dos 90 ministros, apenas 14 são mulheres. Essa representatividade se materializa em uma jurisdição masculina e em sentenças machistas, a partir das quais emergem questões acerca de legitimidade democrática da jurisdição[5].
Como a sub-representação das mulheres no Judiciário e a falta de diversidade ou de igualdade de gênero repercutem no metaverso?
Voltemos os olhos para o passado, para melhor compreender o futuro. Reza a lenda que, ao ver morrer a sua bailarina preferida, o imperador chinês teria ordenado que seu mago a trouxesse de volta. Nos jardins do palácio imperial, ao som de flautas, com uma pele de peixe e uma cortina branca contra a luz do Sol, o mago simulou a silhueta leve e graciosa de uma bailarina, trazendo-a de volta à vida e fazendo surgir o teatro de sombras.
Em sua alegoria da caverna, Platão nos descreve um diálogo entre Sócrates e Glauco, no qual homens acorrentados e enclausurados em uma caverna por toda a vida não viam mais que sombras, avatares de um mundo imaginário que, em suas consciências, era mais que a reprodução do mundo dito real, era o único mundo que conheciam. Será que um dos escravos, após liberto e conhecer a luz ofuscante da verdade do mundo real, seria capaz de convencer seus pares — acostumados a prêmios e honrarias hierárquicas do mundo imagético — a se libertarem das correntes do simulacro?
O teatro de marionetes, de sombras e a alegoria da caverna de Platão nos ensinam que um dos dilemas centrais está em quem comanda as cordas das marionetes ou manipula as sombras que entretêm, nesse novo e imagético mundo de representações online, e não no auditório.
O que podemos esperar sobre a igualdade de gênero, a representatividade, a diversidade e a luta contra as dinâmicas excludentes da mulher das esferas de poder no metaverso, nesse novo mundo online? Nele, os “puppeteers” — aqueles que controlam as cordas e os cenários — são empresas privadas que atuam transnacionalmente, acima dos Estados e muitas vezes da regulação, e cujos donos são homens brancos[6]. Mas não é só!
O online é construído por algoritmos. O machismo — e o racismo![7] — presentes em jogos e aplicativos é reflexo da visão de mundo dos programadores de algoritmos[8].
A baixa (ou não) representatividade da mulher no mundo corporativo também deixa suas marcas. Na onda do metaverso, a procura por empresas de games online escalou, fazendo explodirem seus valores de mercado. Mesmo estando no centro de um escândalo de violência sexual e estupro, negligenciado pelo seu CEO, a Activision não teve o seu valor de mercado afetado, tendo sido adquirida pela Microsoft por US$ 75 bilhões[9].
Dados sobre a violência online contra as mulheres são reveladores desse problema. No primeiro levantamento quantitativo sobre o tema, o jornal britânico The Guardian identificou o que suas jornalistas já sentiam: dos 10 escritores mais ofendidos nos comentários, 8 são mulheres.
No âmbito da política, a violência de gênero alcança homens e mulheres de forma distinta. No mundo das redes sociais, candidatos homens são ofendidos majoritariamente por suas atuações profissionais, como políticos ou gestores públicos, ao passo que candidatas mulheres são atacadas por suas características físicas: gorda, porca, burra. Candidatas recebem mais de 40 xingamentos por dia no Twitter, durante a campanha eleitoral. Uma onda online de violência que impacta negativamente a representatividade das mulheres na política[10].
A tecnologia não é um fim em si mesmo, mas uma ferramenta para ideias e constructos humanos. Fala-se em construir um novo universo online, um metaverso, mas nesse debate e nessa corrida pouco se tem discutido sobre a construção de um ambiente online mais seguro, menos hostil à mulher, mais inclusivo, representativo e igualitário na perspectiva de gênero.
Não basta criar um metaverso. Temos a oportunidade, de partida, de criar um metaverso online melhor que o offline, atacando, diminuindo ou, pelo menos, neutralizando as dinâmicas excludentes da mulher na perspectiva de gênero.
Sem o sério enfrentamento da questão acerca da diversidade, representatividade e igualdade de gênero no metaverso, estaremos fadados a não apenas repetir as dinâmicas excludentes da mulher dos espaços públicos online e das esferas de poder, mas a acentuá-las, aumentando a desigualdade e exclusão. As ferramentas são inovadoras, mas o problema é antigo, estrutural, e suas consequências são reais e atuais a exigirem nossa atenção e ação.
Quem cria o metaverso (possui as companhias e, na ponta, escreve os algoritmos) brinca de Deus, e, hoje, os deuses são homens brancos[11]. Há um amplo debate sobre o tema que merece ser melhor iluminado à luz da igualdade de gênero.
[1] Se o streaming foi a ponte para o futuro da música, as criptomoedas construíram a ponte para o futuro do dinheiro e os non fungible tokens (NFTs) constroem a ponte para o futuro da arte, o metaverso se propõe a ser o ambiente onde todas as pontes entre o mundo offline e o mundo online se interconectam.
[2] Além da sobrecarga de trabalho com o aumento das atividades de casa e com os filhos, as mulheres tiveram de enfrentar o desemprego e passaram a estar mais sujeitas a violências e agressões domésticas.
[3] Medina (2016), A Repercussão Geral no Supremo Tribunal Federal, Saraiva, p. 98.
[4] Pronunciamento do presidente do STF, ministro Luiz Fux, por ocasião do encerramento do ano judiciário de 2021, em 17.12.2021, disponível em: https://www.jota.info/stf/do-supremo/apos-um-ano-desafiador-a-democracia-venceu-afirma-fux-em-discurso-de-fim-de-ano-17122021/attachment/pronunciamento-encerramento-do-ano-judiciario-2021-2-1, acesso de 20.1.2022.
[5] Mulheres em debate, Episódio 1, Representatividade no Judiciário, em maio de 2021. Disponível em: https://www.ajufe.org.br/imprensa/justica-federal-em-debate/15656-mulheres-em-debate-representatividade-no-poder-judiciario, acesso de 20.1.2022.
[6] Sheryl Sandberg, COO do Facebook, e Ruth Porat, SVP e CFO da Alphabet (gerente financeira do Google) são poucas exceções em um mundo dominado por homens.
[7] Garcia (2016), Racist in the Machine: The Disturbing Implications of Algorithmic Bias. Disponível em: https://muse.jhu.edu/search?action=browse&limit=publisher_id:4, acesso de 21.1.2022. No âmbito do Judiciário há um sério debate sobre o uso de softwares de reconhecimento facial e na dosimetria de penas e vieses racistas. Huq (2019), Racial Equity in Algorithmic Criminal Justice. 68 Duke L.J. 1043 (2018-2019).
[8] Daniels (2018). The Algorithmic Rise of the “Alt-Right”. Disponível em: https://doi.org/10.1177%2F1536504218766547, acesso de 21.1.2022.
[9] Assédio e negligência do CEO definiram a venda da Activision para a Microsoft, de 19.1.2022, disponível em: https://www.capitalreset.com/assedio-e-negligencia-do-ceo-definiram-a-venda-da-activision-para-a-microsoft/, acesso de 22.1.2022.
[10] Violência online dificulta representatividade das mulheres na política. Disponível em: https://azmina.com.br/reportagens/monitora-violencia-politica-genero/
[11] Wang e Degol (2017). Gender Gap in Science, Technology, Engineering, and Mathematics (STEM): Current Knowledge, Implications for Practice, Policy, and Future Directions. Educ Psychol Rev 29, 119–140 (2017). Disponível em: https://doi.org/10.1007/s10648-015-9355-x, acesso de 21.1.2022.