Clara Mota

O Conselho Nacional de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">CNJ</a>) comemorou recentemente o aniversário de um ano do seu programa de “Justiça 4.0”, descrito como um projeto desenvolvido para o “uso colaborativo de produtos que empregam novas tecnologias e inteligência artificial”.
A despeito de algumas das iniciativas do programa representarem avanços importantíssimos para o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, neste texto problematizo um dos braços da política do CNJ, mais especialmente aquele consistente na criação de “núcleos de justiça 4.0”. Considero que, desviando do tema da regulamentação de teletrabalho para magistradas e magistrados <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, o CNJ endossou em linhas demasiado abrangentes uma figura de “juiz em nuvem”, criando uma regulamentação pouco clara no que tange à estrutura do programa e às consequências dele no tempo.
Os chamados “núcleos de justiça 4.0” se prestam, segundo a norma, a promover o destacamento de magistradas e magistrados para atuar, em uma espécie de “nuvem”, isto é, sem vinculação a uma unidade judicial existente sob os pontos de vista legal, geográfico ou funcional, recebendo uma peculiar distribuição de processos que serão agregados por matéria específica, conforme redação da <a href="https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3843">Resolução CNJ nº. 385</a>, do ano de 2021. Diz-se ali que as unidades são “especializadas em razão de uma mesma matéria” e que a sua competência equivale à área territorial situada dentro dos limites da jurisdição do tribunal. Ainda, os núcleos são compostos por três juízes, consistindo em opção a ser escolhida pela própria parte, que pode ou não querer que o seu processo seja julgado neste formato.
Chama a atenção não apenas o caráter processual de algumas das regras contidas na regulamentação administrativa, mas o fato de que os núcleos alteram a lógica que historicamente influenciou a criação e instituição de unidades na Justiça Federal.
Numa trajetória diferente, os núcleos não apresentam definição quanto à existência ou não de funcionários a eles vinculados, não têm competência territorial e deslocam matérias afetas a outros juízos naturais por simples escolha das partes. Eles ainda contarão com magistrados e servidores que podem estar neles cumulativamente ou não com outras atividades, criando-se uma unidade de justiça que funciona on demand, (podendo ou não ter juízes e servidores), e que pode ser tocada numa espécie de “voluntariado” judicial <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Por último, mas não menos importante: a regulamentação passa a impressão de que núcleos podem fagocitar varas criadas em lei. Essa é a linha que consta no texto quando menciona que “o tribunal pode transferir a jurisdição da unidade judiciária ou comarca para outra, ou convertê-la em Núcleo de Justiça 4.0”.
Nenhuma dessas opções gerenciais é necessariamente ruim a priori. É certo, no entanto, que elas precisam ser objeto de reflexão e aprimoramento. Dada a amplitude da iniciativa, vale perguntar: a criação de núcleos, cuja equipe e estrutura são, por ora, desconhecidas, será elemento de inovação ou de precarização do acesso à justiça e do exercício da função jurisdicional? Qual a linha que divisa as duas coisas? Como cada tribunal deve lidar com isso? “Juízes em nuvem” devem ter equipe ou alçar voo solo? O debate legislativo quanto à organização judiciária é tranquilamente substituído, por exemplo, por uma decisão interna de extinção de varas para a sua transformação em núcleos?<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
A Justiça Federal percorreu longo caminho para se estruturar após a edição da Constituição de 1988. Além disso, a garantia de direitos sociais no Brasil passa, em grande medida, pela sua existência sólida. Após o marco da Constituição, houve uma explosão no número de processos em tramitação e a análise das estatísticas revela que, a despeito da elevada quantidade de casos novos, a estrutura judicial foi se ajustando apenas lentamente à circunstância.
A título de exemplo, vale lembrar que, na primeira medição do CNJ, realizada no ano de 2004, as varas de juizados federais receberam perto de 1,7 milhão de processos. Para fazer frente a esse volume, a magistratura federal possuía, à época, 1.185 juízes, ou seja, 60% do quadro hoje existente. A carga de trabalho dos magistrados lotados nessas unidades de juizados chegava à casa de 11.408 processos por juiz.
A falta de recursos para a estruturação dos juizados era flagrante. Os dados demonstram ter havido uma estabilidade persistente no alto número de casos que ingressam nos juizados, ao passo em que o aumento do número de integrantes da magistratura não se deu em ritmo igualmente acelerado:
<h3> Evolução dos juizados especiais</h3>
<table>
<tbody>
<tr>
<td width="122">Ano</td>
<td width="188">Número de casos novos</td>
<td width="160">Quantidade de juízes federais no país</td>
</tr>
<tr>
<td width="122">2004</td>
<td width="188">1.631.304</td>
<td width="160">1.185</td>
</tr>
<tr>
<td width="122">2007</td>
<td width="188">1.200.000</td>
<td width="160">1.447</td>
</tr>
<tr>
<td width="122">2010</td>
<td width="188">1.418.572</td>
<td width="160">1.550</td>
</tr>
<tr>
<td width="122">2020</td>
<td width="188">1.808.548</td>
<td width="160">1.951</td>
</tr>
</tbody>
</table>
Fonte: Justiça em Números 2020/CNJ
A necessidade de estruturação de um sistema que contasse com juízes e servidores próprios constou em sucessivos projetos que tramitaram ainda durante a construção do marco legislativo de interiorização da Justiça Federal. Primeiro, na justificativa do <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/37564">PL 5756/2001</a>, voltado à criação das 183 varas, falava-se que o acesso à Justiça Federal para os que residiam no interior ainda seria “tortuoso e muitas vezes irrealizável”.
Idêntica justificativa constou no <a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/298607">PL 5829/2005</a>, repetindo-se que a interiorização repararia uma espécie de injustiça histórica, pois não seria “justo que um habitante do interior deva percorrer longas distâncias para exercitar sua cidadania, mesmo porque a maioria deles, sem condições para tais deslocamentos, acaba por desistir daquilo que lhe é devido e sucumbe diante de algo que lhe desfavoreça”.
Como se vê, houve muito caminho para que chegássemos até aqui em condições que não são as ideais e se precarizaram sobremaneira após a aprovação da emenda constitucional que instituiu o teto de gastos (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm">EC 95/2016</a>). Esse caminho sempre se deu com a instituição de unidades em que se garantia ao jurisdicionado o mínimo de dois juízes e de pouco mais de uma dezena de servidores. Por isso, não pode ser dado como certo que a mudança da estrutura de varas para núcleos é positiva para o cidadão ou mesmo para a própria justiça se ela não vier acompanhada igualmente de deslocamento da força de trabalho respectiva. A virtualização destituída de clareza sobre o elemento humano, fundamental à prestação do serviço judicial em todas as suas dimensões, pode trazer mais dúvidas do que certezas.
Vale ainda ponderar que o conceito de inovação não se exaure pela simples “novidade” em relação a produtos e processos de trabalho. Ela não pode ser vista de modo apartado de objetivos públicos <a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Inovação para quê? Com que propósito?
Diogo R. Coutinho, colocando-se em diálogo com a obra da professora Mariana Mazzucatto e trazendo ao debate as interseções que existem entre o direito e a inovação, trata do caráter “orientado pela missão” que deve revestir as políticas de inovação. Segundo o professor, “políticas orientadas pela ótica da missão também devem prever critérios por meio dos quais as ações postas em marcha possam ser justificadas e motivadas, implementadas consistentemente e avaliadas com regularidade. O tipo de planejamento estratégico mission-oriented demanda, ademais, que se distinga claramente entre setores industriais-alvo, desafios econômicos e estruturais mais amplos e problemas concretos e específicos a serem resolvidos” <a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Políticas de inovação, portanto, estão atreladas a motivos que as conformam e não se confundem com a mera utilização de tecnologia. Para o professor e juiz Marco Bruno Miranda Clementino, essa associação, quando irrefletida, pode ser opressiva e perigosa:
<blockquote class="jota-article__citation">“É importante ressaltar que inovação não se confunde com tecnologia. A relação entre ambas é de fim e meio. O conceito de inovação implica colocar o ser humano no centro da estruturação de um novo modelo social qualquer e, assim, agregar-lhe valor. Aliás, essa é premissa até perigosa, porque pode resultar numa espécie de 'exponencialidade da opressão', simplesmente tornando eletrônicas práticas já existentes e robotizando problemas sistêmicos do Poder Judiciário. A inovação precisa ser elemento propulsor de mudança de cultura organizacional, por meio da agregação de uma espécie de valor judicial, com foco direcionado ao jurisdicionado, em busca de uma jurisdição mais humana, democrática, transparente, sustentável e solidária”.</blockquote>
Também o debate sobre as relações de trabalho mediadas por plataformas de aplicativo tem colocado em perspectiva os aspectos polêmicos e ambivalentes das políticas de inovação. Renan Kali observa em sua tese de doutorado que “as inovações tecnológicas não são neutras ou imunes às relações de poder instituídas, mas influenciam as instituições e a ideologia, assim como são moduladas por ambas” <a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Trazendo reflexões e argumentos que não têm nenhuma expectativa totalizante, este texto tem a pretensão de iniciar um debate e não de fechá-lo. A previsão de que juízes podem trabalhar remotamente não é, per se, um problema. Ao contrário, tende a ser realidade e precisa ser regulamentada compreendendo os juízes e as suas equipes. Os passos devem ser dados, portanto, com máxima atenção ao elemento marcante da Justiça Federal que é a sua expansão sempre associada à existência de juízes unidos às suas respectivas equipes, identificados com uma comunidade funcional.
A Justiça Federal é, por essência, a humanidade de quem a compõe e acessa. Borrando-se as fronteiras entre inovação e precariedade, a garantia de direitos da população que busca a justiça fica comprometida. Todo emprego de tecnologia deve ser escrutinizado não apenas quanto aos seus efeitos, mas também quanto à sua racionalidade e propósitos. Sem atalhos, necessitamos de conversas profundas sobre quem queremos ser e onde precisamos estar como instituição.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Segundo o CNJ, faz parte do seu projeto de inovação (Justiça 4.0) a implantação de juízos 100% digitais, o fomento ao uso de automação e ferramentas que utilizam inteligência artificial para gerenciamento de bens apreendidos, leitura de petições e apreensão digital do seu conteúdo, dentre outros mecanismos. A Resolução encontra-se disponível em: <a href="https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3843">https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3843</a>. Acesso em 20.02.2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Em audiência pública, o CNJ compilou opiniões referentes à instituição de teletrabalho para magistradas e magistrados. Porém, não houve avanço, desde então, na regulamentação da modalidade de trabalho. A audiência pública encontra-se disponível em: <a href="https://www.youtube.com/watch?v=Y0T9vECYFRg">https://www.youtube.com/watch?v=Y0T9vECYFRg</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Os juízes de núcleos podem ter atuação cumulativa com a sua vara de origem, havendo a possibilidade de teletrabalho parcial. Os servidores designados também trabalharão parcial ou exclusivamente no núcleo, de acordo com os critérios de distribuição processual e volume de demandas. Para fins de equalização da carga de trabalho, os processos distribuídos a cada juízo do Núcleo deverão ser contabilizados para o juízo da unidade de lotação original do respectivo magistrado. Ver descrição dos núcleos feita pelo PNUD, Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento. Disponível em: <a href="https://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/presscenter/articles/2020/programa-justica-4-0-inicia-sensibilizacao-de-tribunais-para-ade.html">https://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/presscenter/articles/2020/programa-justica-4-0-inicia-sensibilizacao-de-tribunais-para-ade.html</a>. Acesso em 20.02.2022.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Diferentemente, anda bem a instituição de juízos 100% digitais previstos na Resolução, porquanto virtualizam o juízo com a totalidade da sua equipe de trabalho.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> O conceito de inovação foi introduzido pela Lei nº. 10.973/2004 e significa, para fins legais, a introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo e social que resulte em novos produtos, serviços ou processos ou que compreenda a agregação de novas funcionalidades ou características a produto, serviço ou processo já existente que possa resultar em melhorias e em efetivo ganho de qualidade ou desempenho e tiveram início a partir da criatividade humana.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Ver: Diogo R. Coutinho, “A missão do direito na inovação”, ano 2020. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/inova-e-acao/a-missao-do-direito-na-inovacao-09062020">https://www.jota.info/coberturas-especiais/inova-e-acao/a-missao-do-direito-na-inovacao-09062020</a>. Acesso em 21.02.2021. Ver ainda Mariana Mazzucato “Mission-oriented innovation policies: challenges and opportunities Industrial and Corporate Change”, Volume 27, Issue 5, October 2018.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Cf. Renan Bernardi Kalil, “Capitalismo de plataforma e Direito do Trabalho: crowdwork e trabalho sob demanda por meio de aplicativos”, tese de doutorado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ano 2019, p. 305.

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