Gabriela Biazi Justino da Silva

Laura Gonçales

Beatriz Morganti Brandão

A questão climática já não é apenas uma preocupação do futuro. Vivenciamos hoje diversos efeitos adversos das mudanças climáticas e, a despeito deste ser um fenômeno mundial, seus impactos são sentidos de forma desigual pelo globo.
Por isso, é indispensável compreendermos como aspectos sociais e fatores de vulnerabilidade – entre os quais, ao lado de outros marcadores sociais da diferença, encontra-se a desigualdade de gênero – operam.
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As estatísticas que evidenciam a posição mais vulnerável das mulheres frente às mudanças climáticas são alarmantes: internacionalmente, 70% das pessoas em situação de pobreza é mulher<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, sendo que mulheres são 25% mais prováveis a viverem em pobreza do que homens. Ainda, em 2020, 14% dos homens entre 15 e 24 anos não estavam empregados ou estudando, enquanto para as mulheres essa estatística era mais que o dobro, chegando a 31%<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
A desigualdade de gênero não só faz das mulheres mais suscetíveis a viverem em situação de pobreza mas também impõe barreiras sociais, econômicas e políticas que limitam sua chance de mobilidade social, o acesso a serviços e o exercício de direitos em geral.
Como consequência, limita-se também sua capacidade adaptativa e reativa aos efeitos adversos das mudanças climáticas. Por esse motivo, é essencial que políticas públicas de todas as áreas – incluindo, claro, a climática –, abriguem uma transversalização de gênero, sob pena de piorar os quadros de desigualdade que vemos atualmente.
No que se refere aos marcos normativos, felizmente essa discussão não é totalmente uma novidade. Em âmbito internacional, a Declaração e a Plataforma de Pequim (1995) reconheceram que a degradação ambiental repercute de forma específica na vida das mulheres.
Cerca de duas décadas depois, a igualdade de gênero viria a ser estabelecida como um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no âmbito da Agenda 2030 da ONU, reforçando a compreensão de intersecção entre a agenda social e ambiental.
Especificamente no que se refere às mudanças climáticas, o Acordo de Paris determina que os governos devem adotar medidas de enfrentamento que promovam a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e que sejam gênero-responsivas.
Além disso, após os trabalhos organizados por meio do Lima Work Programme, foi aprovada, em 2019, a versão aprimorada do Plano de Ação sobre Gênero, na 25ª sessão da Conferência das Partes (COP), que propõe medidas concretas para promover a ação climática responsiva a gênero, a institucionalização da perspectiva de gênero em todas as atividades conduzidas no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima (CQNUMC) e do trabalho das partes e, por fim, a participação plena, igual e significativa das mulheres nos processos da CQNUMC. Atualmente, 67% dos cargos de decisão na CQNUMC, no Protocolo de Kyoto e no Acordo de Paris são ocupados por homens<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Em âmbito regional, o enlace entre mudanças climáticas e gênero pode ser visto na Estratégia de Montevidéu para a Implementação da Agenda Regional de Gênero no Âmbito do Desenvolvimento Sustentável até 2030, ratificada pelo Brasil em 2017, bem como no Compromisso de Santiago, ainda não assinado pelo Brasil.
Porém, segundo o relatório “A dimensão de gênero no Big Push para a Sustentabilidade no Brasil”, publicado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – CEPAL em 2021<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, ainda que referidos marcos promovam diversas medidas de enfrentamento às mudanças climáticas, eles abrigam uma invisibilização das mulheres, além de carecerem de mecanismos para que suas medidas sejam internalizadas em cada país.
Passando ao Brasil especificamente, é possível  destacar, no que tange à presença da perspectiva de gênero em mecanismos de combate às mudanças climáticas, o Plano Nacional de Adaptação (2016), que conta com uma estratégia específica para grupos e populações mais vulneráveis que inclui a aplicação de abordagens sensíveis ao gênero e com critérios raciais e étnicos.
Embora possamos interpretar essa estratégia como um avanço, não há informações (ao menos não pública e facilmente acessíveis) sobre a situação atual de sua implementação.
<blockquote class="jota-article__eye">À parte disso, as políticas climáticas brasileiras como um todo são insuficientes quando o assunto é a incorporação da perspectiva de gênero.</blockquote>
É o que demonstram, por exemplo, as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, do inglês) submetidas pelo Brasil. O texto submetido pelo Brasil em 2016 reconhecia a necessidade de adoção de medidas sensíveis a gênero – ainda que de modo genérico.
A versão atualizada das NDCs brasileiras, submetida em 2020, revela uma sutil mas simbólica mudança no modo de tematizar o assunto: subtraiu-se a ideia de medidas sensíveis a gênero e adicionou-se a de “atenção às necessidades especiais das mulheres”.
Por mais banal que pareça ser, essa alteração sinaliza uma mudança substantiva de paradigma na condução estatal, que deixa de promover políticas para a equidade de gênero e passa a articular uma abordagem de políticas para mulheres que não considera estereótipos e relações de poder como parte do problema público.
Nessa abordagem, a família é colocada como principal locus de efetivação de direitos, ofuscando a desigualdade de gênero como problema estrutural a ser enfrentado.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Fato é que, ao analisar o contexto brasileiro, notamos que há uma distância expressiva dos marcos normativos internacionais e mesmo regionais citados. A situação não é surpreendente, já que assistimos, nos últimos anos, a um desmonte das capacidades estatais associadas à transversalidade de gênero em âmbito federal. Basta recordar que o último ano em que o país contou com um Plano Nacional de Políticas para as mulheres foi 2015.
A despeito da atual situação institucional nacional, há, ao menos, aprendizados e boas experiências que podem inspirar um novo rumo para as políticas brasileiras. 
A justiça climática pode prover um arcabouço argumentativo permeável à inclusão de dimensão de gênero como relevante para o enfrentamento dos efeitos da mudança do clima.
No mesmo sentido, conceitos já utilizados no âmbito dos estudos de gênero podem e devem ser mobilizados para que possamos aprofundar a compreensão acerca da intersecção entre essas duas agendas (de enfrentamento à mudança climática e da igualdade de gênero) e, assim, investigar e construir estratégias de mitigação e adaptação efetivas para toda a população.
As noções de cuidado e de divisão desigual do trabalho são bons exemplos. Elas dão visibilidade ao fato de que mulheres, principalmente mulheres não brancas e de países em desenvolvimento, não apenas são as principais responsáveis pela reprodução das tarefas de cuidado como são mal ou não remuneradas por esses trabalhos, em regra precarizados.
Assim, sob pena de aprofundar a desigualdade de gênero, é importante que a reflexão sobre estratégias de adaptação aos efeitos da mudança climática inclua pontos referentes a políticas de socialização e valorização coletiva do cuidado.
Conceitos das teorias da justiça também podem ajudar a aprofundar esse debate. Além da noção de vulnerabilidade, já citada acima, a noção de participação política é um bom exemplo. Para que a igualdade de gênero efetivamente informe estratégias da agenda climática, é fundamental que as vozes das mulheres mais afetadas tenham reais condições de influenciar a tomada de decisão.
Além disso, o importante estudo da CEPAL, citado acima, fornece um bom panorama delas, apontando medidas que podem melhorar a qualidade de vida das mulheres e meninas, reduzir a pobreza do tempo e o peso da sobrecarga de trabalho, especialmente para as mulheres negras, indígenas, periféricas e pobres, e, ao mesmo tempo, promover a mitigação das mudanças climáticas e a adaptação aos efeitos por elas causados.
Referidas medidas visam garantir e ampliar a inclusão socioeconômica das mulheres, por exemplo, através da criação de mais empregos verdes e da promoção de ações de capacitação e educação para as mulheres, bem como promover a oferta de ações e serviços públicos voltados a integrar o trabalho não remunerado (doméstico e de cuidados) das mulheres, por exemplo, através da universalização do acesso a água, esgotamento e energia elétrica, e do desenvolvimento de um sistema integral de cuidados.
Em conclusão, é tarefa urgente fazer refletir essas preocupações no desenvolvimento das políticas brasileiras nesta matéria, as quais devem ser inspiradas nas melhores referências internacionais, considerar as especificidades nacionais e, por fim, refletir as diretrizes com as quais o Brasil se comprometeu ao assinar o Acordo de Paris e o Plano de Ação sobre Gênero, no sentido de criar mecanismos gênero-responsivos.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> M. Olivera, M. G. Podcameni, M. C. Lustosa e L. Graça, “A dimensão de gênero no Big Push para a Sustentabilidade no Brasil: as mulheres no contexto da transformação social e ecológica da economia brasileira”, Documentos de Projetos (LC/TS.2021/6; LC/BRS/TS.2021/1), Santiago e São Paulo, Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe e Fundação Friedrich Ebert Stiftung, 2021, disponível em: &lt;https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/46643-dimensao-genero-big-push-sustentabilidade-brasil-mulheres-contexto-transformacao&gt;. Acesso em 11 de junho de 2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A. Kelly, T. Johnson. “Generation Equality: Women’s Rights in Review 25 years after Beijing”, Produced by Research and Data Section, UN Women. Disponível em: &lt;https://www.unwomen.org/en/digital-library/publications/2020/03/womens-rights-in-review&gt;. Acesso em 11 de junho de 2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Relatório da ONU Mulheres, ‘Gender equality: Women’s rights in review 25 years after Beijing’, disponível em: &lt;https://www.unwomen.org/en/digital-library/publications/2020/03/womens-rights-in-review&gt;. Acesso em 09 de junho de 2021.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> M. Olivera, M. G. Podcameni, M. C. Lustosa e L. Graça, “A dimensão de gênero no Big Push para a Sustentabilidade no Brasil: as mulheres no contexto da transformação social e ecológica da economia brasileira”, Documentos de Projetos (LC/TS.2021/6; LC/BRS/TS.2021/1), Santiago e São Paulo, Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe e Fundação Friedrich Ebert Stiftung, 2021, disponível em: &lt;https://www.cepal.org/pt-br/publicaciones/46643-dimensao-genero-big-push-sustentabilidade-brasil-mulheres-contexto-transformacao&gt;. Acesso em 11 de junho de 2021.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> É fácil verificar isso ao olhar para os últimos orçamentos federais. O de 2021, por exemplo, prevê R$ 2,6 milhões para a ação de Políticas de Igualdade e Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e R$ 21,4 para a Implementação da Casa da Mulher Brasileira e de Centros de Atendimento às Mulheres. Juntas, as dotações das duas ações totalizam valor inferior aos R$ 34,6 milhões previstos para a ação “Proteção do Direito à Vida”, num contexto de negação de exercício de direitos sexuais e reprodutivos para as mulheres (conforme documento oficial disponível em: &lt;<a href="https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/raio-x-do-orcamento/raio-x-2021/raio-x-mulher-familia-e-dh-vf.xlsx">https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/raio-x-do-orcamento/raio-x-2021/raio-x-mulher-familia-e-dh-vf.xlsx</a>&gt;. Acesso em 12 de julho de 2021.

Mudança climática

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JOTA

Políticas climáticas brasileiras como um todo são insuficientes na incorporação da perspectiva de gênero

Justiça climática: uma questão de gênero?

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