Camila Pintarelli

É crescente o uso da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/inteligencia-artificial">inteligência artificial</a> no campo da resolução de conflitos, sejam eles jurisdicionais ou não. Não se trata de movimento tecnológico totalmente inédito, pois remonta à criação da cibernética e da jurimetria na década de 1950, por Norbert Wiener e Lee Loevinger, mas que está se apresentando de forma cada vez mais sofisticada à vista do aprimoramento da construção algorítmica atrelada a mecanismos de machine learning.
Na esfera extrajudicial, um dos mais conhecidos exemplos de sua aplicação é a plataforma online MODRIA, introduzida nos anos 2000 para resolver disputas de clientes dos portais eBay e PayPal, permitindo-lhes o processamento de mais de 60 milhões de conflitos por ano, 90% dos quais resolvidos unicamente pela automação eletrônica.
Na seara judicial, vale citar o exemplo australiano do Sentencing Information System, voltado à uniformização das sentenças relativas a casos similares. Na China, desde 2017, tem-se criado as chamadas “cortes inteligentes”, impelidas pela automação algorítmica e com foro exclusivamente virtual, com competência, em sua maioria, para julgar conflitos de consumo. E na Estônia, já há “juízes-robô”, responsáveis por lides que envolvam quantias inferiores a € 7.000.
No Brasil, felizmente tem-se observado movimento semelhante, com a integração cada vez maior do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/judiciario">Poder Judiciário</a> ao ecossistema digital, mediante compromissos de impulsionamento do uso da inteligência artificial como mecanismo apto a afiançar a eficiência à Justiça, sobretudo a celeridade processual.
A esse respeito, vale citar o protagonismo do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">Conselho Nacional de Justiça</a> (CNJ) nesse giro de vanguarda do cenário judicial, com a estruturação do Programa Justiça 4.0 (Resoluções CNJ nº 335, nº 345 e nº 354, todas de 2020), que contempla a criação da Plataforma Digital do Poder Judiciário, a implantação do Juízo 100% Digital e a regulamentação do cumprimento digital de atos processuais e de ordens judiciais.
São iniciativas que se somam a outras de sucesso, como é o caso, por exemplo, da RAFA 2030 (Redes Artificiais Focadas na Agenda 2030) — que classifica os casos remetidos ao <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal</a> de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas — e do Projeto Victor, também da Corte Suprema, que desde 2017 foca a categorização de temas de repercussão geral como forma de auxiliar na celeridade da análise de recursos extraordinários.
Os atores processuais igualmente estão se valendo de tais avanços, como é o caso da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, que projeta usar a inteligência artificial como forma de gestão efetiva de litigância e de mapeamento de estratégias jurídicas, o que certamente reverterá em redução da litigiosidade e na melhor defesa do interesse público em juízo.
Ao lado dos inegáveis benefícios que a tecnologia é capaz de garantir ao processo judicial, é certo que o desenvolvimento tecnológico pode impactar o sujeito humano de maneiras por vezes pouco visíveis e previsíveis.
Atualmente, é candente o debate sobre a replicação, no ambiente virtual e via inteligência artificial, de práticas discriminatórias existentes em sociedade, cuja origem reside na ausência da necessária transparência sobre a conformação, a construção e a efetivação prática dos algoritmos utilizados nos respectivos sistemas autômatos.
Essa falta de transparência é tamanha que o CEO global da IBM, Arvind Krishna, alertou, em recente entrevista à revista Veja, ser imprescindível que as empresas assegurem clareza sobre quem treina a inteligência artificial, quais dados são usados nesse treinamento e, o mais importante, o que foi incluído nas recomendações de seus algoritmos.
Trata-se de preocupação que encontra eco em movimentos regulatórios globais, como é o caso do Blueprint for an AI Bill of Rights, editado em outubro de 2022 pelo governo norte-americano e que, embora destituído de força cogente, elenca a transparência algorítmica como princípio de senso comum no desenvolvimento tecnológico da inteligência artificial. É, também, o caso do Chile, que em outubro de 2021 aprovou mudança constitucional contemplando a tutela dos chamados neurodireitos, dentre os quais se insere a proteção contra a discriminação algorítmica.
Vale mencionar, ainda, a Lei nº 1894-A aprovada no final do ano de 2021 pela cidade de Nova York para proteger trabalhadores contra o preconceito algorítmico em processos automatizados de recrutamento profissional. O estado da Califórnia também editou, em setembro deste ano, legislação para, dentre outros objetivos, garantir a transparência dos algoritmos em serviços online disponíveis a crianças e adolescentes.
Em palestra promovida no último dia 12 de outubro pela New York University, através de seu McSilver Institute, esse assunto foi abordado com ênfase no momento da construção algorítmica, a fim de se realçar a importância de equipes profissionais interdisciplinares, multiculturais e com representantes de diferentes origens sociais, de modo a garantir que o treinamento da machine learning seja plural e conte com coletividades consideradas minoritárias, o que auxiliaria sobremaneira a reduzir os riscos de discriminação algorítmica.
Trazendo tais inquietações à automação da prestação jurisdicional, diversos pontos de reflexão vêm à tona, dentre os quais a neutralidade das ferramentas de inteligência artificial consideradas em uma perspectiva de gênero.
Como se sabe, uma das principais causas de violência contra mulher no Brasil é a própria estrutura profundamente patriarcal e andrógena da sociedade brasileira, que tende a naturalizar atos que, em verdade, configuram discurso de ódio, assédio moral e psicológico, e preconceito. Até as manifestações culturais acabam, muitas vezes, robustecendo a reificação feminina, como é o caso de músicas e postagens em mídias sociais — as quais, por seu turno, também funcionam sob a lógica da inteligência artificial, que, de certa maneira, aprende com tais conteúdos, o que apenas contribui para aprofundar o problema.
Não é ocioso relembrar, outrossim, dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos, segundos os quais o Brasil ocupa o quinto lugar mundial em índices de feminicídio.
O ordenamento jurídico brasileiro — produto que é dessa cultura essencialmente masculina, que por anos dominou a produção legislativa no país — está repleto de estereótipos que alimentam a desigualdade de gênero, herdados de complexos normativos cuja estrutura deôntica não considerava — e ainda não considera — a mulher como sujeito ativo de sua própria infinitude, reverberando na garantia de acesso equalitário à Justiça e no exercício pleno de sua liberdade. Essa é, aliás, uma constatação que infelizmente se aplica a todas as coletividades consideradas.
Não se ignora os inúmeros avanços conquistados nas últimas décadas na tutela jurídica e jurisdicional à mulher, cabendo destacar o papel desempenhado pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm">Lei Maria da Penha</a> e sua crescente importância, desde sua edição, na garantia da proteção contra a violência de gênero. O Conselho Nacional de Justiça, por sua vez, está promovendo notável enfrentamento à violência contra a mulher, com a estruturação de programas e metas judiciais voltadas ao assunto, o que está estimulando postura semelhante pelas Cortes federais, estaduais e distrital. Ainda, iniciativas de organizações da sociedade civil e da própria <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/oab">Ordem dos Advogados do Brasil</a> vêm se mostrando essenciais para garantir a necessária inclusão, proteção e equidade feminina.
Todavia, mesmo diante de tantos progressos, o acesso à justiça pela mulher continua a transcender o direito constitucional à resolução de conflitos, pois ele representa, na grande parte dos casos, verdadeiro fenômeno político e social apto a afiançar que haja, no mundo dos fatos, a neutralidade subjetiva real não ofertada pela abstração normativa, contando-se, para tanto, com a análise judicial de cada caso concreto para a superação das idiossincrasias históricas da sociedade brasileira e do Direito, já citadas.
Nessa ordem de ideias, em um cenário em que o procedimento de prestação jurisdicional deixa de ser integralmente humano e passa ter etapas ou mesmo decisões específicas formatadas a partir de algoritmos de inteligência artificial — com todas as peculiaridades ligadas à opacidade de sua construção, como visto anteriormente —, a tutela jurídica à mulher pode sofrer decréscimo de efetividade, com o risco de se estar diante de dupla violência de gênero: quando da inexistência de proteção integral no campo primário da aplicação legislativa e, posteriormente, quando das dificuldades de resolver tal iniquidade judicialmente.
Embora o estágio da implementação da automação jurisdicional no Brasil ainda não se assemelhe ao dos “juízes-robô” da Estônia, citado inicialmente, a realidade dos fatos apontam ser essa uma inescapável realidade do porvir.
São inegáveis os benefícios que a integração da inteligência artificial à prestação jurisdicional está promovendo à sociedade e seu uso deve ser cada vez mais estimulado e aperfeiçoado, sobretudo na gestão da litigância, tema especialmente caro diante da quantidade de processos judiciais em trâmite no Brasil.
Contudo, não se deve perder de vista que o Direito tem sua razão de ser no sujeito humano e o contexto digital deve proporcionar a expansão — e não o ofuscamento — da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/dignidade-humana">dignidade humana</a>.
Nesse sentido, na linha dos movimentos globais existentes a respeito do assunto, mostra-se recomendável que quaisquer iniciativas que tragam consigo a automação jurisdicional via inteligência artificial contem com governança interinstitucional e da sociedade civil, de modo a permitir maior credibilidade e acurácia das recomendações sugeridas.
Acima disso, parece ser fundamental que o treinamento e a construção algorítmicas de tais sistemas contem com a necessária transparência, contemplando-se a perspectiva de gênero e todas as ações correlatas elaboradas pelo próprio Poder Judiciário e fora dele, de modo a evitar que a Justiça — ao invés de porta de entrada sócio-política do equilíbrio social ainda inexistente no campo legislativo — transforme-se em instrumento de perfilhação e validação automática das desigualdades e do preconceito que ensejaram a sua atuação no caso concreto.

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JOTA

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