Raphael Boldt

Recentemente a 6ª Turma do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">STJ</a> decidiu que a via do habeas corpus é imprópria para a análise das teses de insuficiência probatória, responsabilização disciplinar coletiva, atipicidade ou desclassificação da conduta, dada a necessidade de incursão na seara fático-probatória.
No julgamento do AgRg no HC n. 750.743/RS, afirmou-se que “no Superior Tribunal de Justiça, é pacífico o entendimento de que a via do habeas corpus é imprópria para a análise das [mencionadas] teses”, inclusive situações que envolvam a análise sobre a atipicidade da conduta.
Como se pode notar, o Tribunal tem ampliado as restrições à utilização do writ, uma vez que, na 36ª edição do Jurisprudência em Teses, o STJ destacou: “o trancamento da ação penal pela via do habeas corpus é medida excepcional, admissível apenas quando demonstrada a falta de justa causa (materialidade do crime e indícios de autoria), a atipicidade ou a extinção da punibilidade”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
É antigo na jurisprudência o entendimento de que o habeas corpus pode ser utilizado para o trancamento da ação penal nas hipóteses de atipicidade da conduta, desde que seja possível a sua comprovação de plano<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Entre tantos casos ilustrativos, basta pensar, por exemplo, naqueles que tratam de crimes contra a ordem tributária, nos quais geralmente a defesa requer o trancamento da ação penal (melhor seria do processo) em virtude de a suposta sonegação fiscal não ultrapassar os limites do direito tributário<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Embora seja possível observar em diversas situações o uso inapropriado do habeas corpus, também não se deve desconsiderar que o caminho para a solução do problema não está na restrição à ação impugnativa, visto que isso gera não apenas o cerceamento ao direito de defesa, mas uma indevida limitação do acesso à justiça.
A jurisprudência defensiva dos tribunais tem sido justificada principalmente pela quantidade elevada de recursos e habeas corpus, resultado, segundo o senso comum teórico, de manobras oportunistas da defesa e da utilização abusiva da via recursal e das ações de impugnação.
Ainda que se reconheça o uso indiscriminado e equivocado do habeas corpus, convém notar que o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, com 40% de presos provisórios, reflexo da expansão desmedida do poder punitivo e de um sistema que normaliza os excessos e as ilegalidades.
O movimento no sentido da restrição do habeas corpus, com a violação de direitos fundamentais, vincula-se claramente a uma lógica atuarial que busca compensar a incapacidade qualitativa e numérica do Poder Judiciário.
O conhecido argumento de que os tribunais não suportam a enxurrada de recursos interpostos sobretudo pela defesa esconde um oportuno giro eficientista. Com a adesão dos tribunais brasileiros à emergente tendência gerencialista, reformulou-se a incapacitação, atribuindo-lhe os valores definidos pela cartilha neoliberal. No final das contas, o habeas corpus foi ressignificado. De importante remédio constitucional destinado a resguardar o direito de ir e vir ilegalmente ameaçado ou violado, passou a obstáculo para uma eficiente persecução penal.
A crise do sistema penal não será resolvida com a restrição de direitos e garantias fundamentais. Se vivenciamos atualmente o colapso da administração da justiça criminal, isso se dá não pelo excesso de recursos e habeas corpus, mas por conta da banalização do direito penal e do próprio processo penal<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
O manejo “excessivo” do habeas corpus é consequência da inflação legislativa em matéria penal e da banalização do poder de acusar, oriunda de uma cultura punitivista que se projeta tanto na legislação quanto na formação dos juristas. Este é o pano de fundo sobre o qual repousa a decisão mencionada no início deste texto.
Em um cenário de obsessão patológica pelo encarceramento, de infindáveis denúncias ineptas, absolutamente despidas de justa causa, de inúmeras prisões preventivas decretadas sem o mínimo de fundamentação, de denúncias formuladas por condutas insignificantes (inclusive por furto de lixo), o resultado não poderia ser outro, senão valer-se de instrumentos democráticos de controle do poder como o habeas corpus.
A ampliação das hipóteses de vedação ao uso do habeas corpus para solucionar problemas estruturais dos tribunais provavelmente irá esvaziar a qualidade de um importante instrumento constitucional de garantia da liberdade individual e contribuir para a deterioração do degradante sistema carcerário brasileiro. Nesse sentido, não basta redefinir os contornos da utilização do writ, mas é preciso repensar o sistema recursal e reestruturar os tribunais superiores.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: <a href="https://scon.stj.jus.br/SCON/jt/">https://scon.stj.jus.br/SCON/jt/</a>. Acesso: 09 de agosto de 2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Entre outros precedentes, habeas corpus substitutivo do recurso no STJ (HC n. 45.779) conhecido e concedido em acórdão da lavra do Min. Félix Fischer. Com mais detalhes sobre o tema: BOLDT, Raphael. Guia dos recursos no processo penal. Florianópolis: Emais 2022, p. 212.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Exemplificativamente, a 5ª Turma do STJ, ao julgar o RHC n. 66.716, tendo como relator o Min. Ribeiro Dantas, reafirmou a tese.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> LOPES JR., Aury Lopes; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Sustentações orais em agravos da negativa de HC prejudicam a defesa? Consultor Jurídico. Disponível em: <a href="https://www.conjur.com.br/2022-jul-08/limite-penal-sustentacoes-orais-agravos-negativa-hc-prejudicam-defesa">https://www.conjur.com.br/2022-jul-08/limite-penal-sustentacoes-orais-agravos-negativa-hc-prejudicam-defesa</a>. Acesso: 09 de agosto de 2022.

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6ª Turma do STJ decide que a via do HC é imprópria para a análise das teses de insuficiência probatória, entre outras

Jurisprudência defensiva e restrição ao habeas corpus

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