Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">O tribunal toma uma quantidade incrível de decisões que deveriam ser tomadas pelas pessoas.
<footer class="jota-article__quote-cite">Antonin Scalia</footer>
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No último dia 28 de outubro, a presidente da Corte Internacional de Justiça (CIJ), juíza Joan E. Donoghue, apresentou o seu Relatório Anual para a Assembleia-Geral da ONU.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> O relatório aponta para o fato de que a corte vem se mantendo assaz ocupada, com atualmente 15 casos em curso. Em 2021, três novos casos foram protocolados, o primeiro envolvendo um pedido de delimitação de fronteira marítima entre o Gabão e a Guiné, e os outros dois envolvendo a Convenção para a Eliminação de todas as formas de Racismo, entre a Armênia o Azerbaijão, que já tivemos a oportunidade de analisar <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/medidas-provisorias-da-corte-internacional-de-justica-08102021">nesta coluna</a>.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
A gama de matérias sob apreciação pela CIJ, atualmente, é vasta e abrange todas as partes do globo. Como bem remarcou a presidente Donoghue, os casos perante a corte envolvem questões de “delimitação territorial e marítima, a situação dos cursos de água internacionais, reparações por atos internacionalmente ilícitos e alegadas violações de tratados bilaterais e multilaterais relativos a, entre outras coisas, relações diplomáticas, eliminação da discriminação racial, prevenção do genocídio e supressão do financiamento do terrorismo". Trata-se, cara leitora, de uma agenda crescente, tanto em volume quanto em complexidade.
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Como bem remarcou o juiz Christopher Greenwood, em toda a história precedente da humanidade, os tribunais internacionais nunca estiveram tão ocupados como agora.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> O juiz Antônio Augusto Cançado Trindade chegou mesmo a batizar o momento atual de “a Era dos Tribunais Internacionais”.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> As últimas décadas viram uma expansão, não apenas das competências dos tribunais internacionais, mas também dos atores com capacidade postulatória perante eles, em especial no que concerne ao indivíduo como sujeito de direito internacional.
Trata-se, cara leitora, de um verdadeiro e avançado processo de “jurisfação” da sociedade internacional. O termo fora cunhado ainda na década de 1940 por Miguel Reale, para significar o fenômeno da progressiva juridicidade do poder no século 20.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> Esse fenômeno, no início do século 21, já havia ultrapassado o âmbito estrito do poder e se espraiado para todos os aspectos da vida humana. Relações que, ao longo da história, eram eminentemente de caráter ético-moral, isto é, que não estavam reguladas formalmente pelo direito, passaram progressivamente a sê-lo, em um movimento que, agora, abrange claramente a seara internacional também.
Esse fenômeno de jurisfação total da vida humana traz consigo profundas consequências para o modo de vida contemporâneo. Em primeiro lugar, coloca-se o Poder Judiciário como árbitro último da quase integralidade das relações humanas, chamado a pronunciar-se sobre praticamente tudo, desde questões cotidianas as mais triviais até intricadas delimitações de fronteiras marítimas em plataformas continentais. A intensificação do fenômeno da jurisfação impõe uma série de desafios aos tribunais, que se vêem progressivamente pressionados em termos de recursos materiais e humanos para atender a uma demanda que é aceleradamente crescente e variável.
Especificamente no que concerne ao âmbito internacional, Christopher Greenwood divisa três grandes desafios impostos pelo fenômeno da jurisfação aos tribunais internacionais. O primeiro deles é justamente a pressão que uma demanda crescente impõe sobre estruturas que foram desenvolvidas para atender a um número muito menor de casos. Greenwood menciona, a título de exemplo, a situação do Tribunal Europeu de Direitos Humanos que recebe, anualmente, dezenas de milhares de petições iniciais, sem condições materiais, contudo, de atender rapidamente a todas elas.
O segundo desafio mencionado por Greenwood é o chamado “problema da fragmentação”. Esse problema se coloca em dois níveis. No primeiro, há uma enorme fragmentação da competência dos tribunais internacionais, cujo poder de adjudicação, via de regra, é conferido por tratados sobre temas muito específicos. Isso gera o que o juiz britânico chama de “Síndrome de Cinderela”, isto é, a tentativa do Estado reclamante de incluir na jurisdição da corte mais aspectos do que aqueles autorizados pelo tratado da matéria, na imagem de um sapato muito pequeno para um pé muito grande. No segundo nível, a fragmentação se dá fisicamente, existindo uma verdadeira miríade de tribunais internacionais, em um sistema horizontal, sem possibilidade de apelação, cuja jurisdição é sempre parcial, mas que, não obstante, necessita de um nível mínimo de coordenação para tentar garantir que as suas decisões não sejam conflitantes.
O terceiro e último desafio apontado por Greenwood é o da implementação das decisões dos tribunais internacionais. O juiz britânico aponta para o fato de que, mesmo quando uma das partes boicota os procedimentos, em geral a decisão é implementada e respeitada. O histórico de respeito às decisões, em especial em casos de arbitragem, é positivo. O problema se colocaria de maneira mais aguda, segundo Greenwood, na esfera penal, haja vista a ausência de um poder de polícia internacional para fazer com que as decisões do Tribunal Penal Internacional sejam cumpridas.
A esses desafios acrescentaria um quarto, referente a um fenômeno apontado pelo embaixador Celso Lafer, que é o da mudança de eixo do foco jurídico imposta pela crescente jurisfação. Segundo o embaixador, o foco jurídico em sociedades tradicionais está nas normas primárias, isto é, nas normas que regulam determinados comportamentos. Em sociedades dinâmicas, onde essas normas primárias estão em constante transformação, o foco passa a estar, necessariamente, sobre as normas secundárias, isto é, sobre as “normas sobre normas, que são basicamente as que tratam, ou da produção das normas primárias ou do modo como estas são aplicadas”.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> Em outras palavras, cara leitora, o foco estará crescentemente na legitimidade da adjudicação internacional, o que inclui procedimentos arbitrais e de mediação também. As preliminares de jurisdição e competência seguramente se tornarão mais frequentes e mais sofisticadas.
Em que pesem todos os desafios apresentados atualmente ao sistema de ajudicação internacional, não se pode perder de vista, como bem lembra Greenwood, todos os benefícios para paz e para a solução pacífica de controvérsias materializadas pelo sistema no último século. Sem um sistema de ajudicação internacional sólido, a única maneira de solucionar as crescentes disputas internacionais passaria, inevitavelmente, pelo uso da força. Daí a enorme importância, cara leitora, de se atentar para o fenômeno da jurisfação internacional e de se buscar soluções consistentes para os efeitos dos seus impactos, de forma a tornar os tribunais internacionais mais resilientes às crescentes pressões a que se veem submetidos. O risco é o de um colapso do sistema. O direito não socorre a quem dorme. A paz também não.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.icj-cij.org/public/files/press-releases/0/000-20211028-STA-01-00-EN.pdf">https://www.icj-cij.org/public/files/press-releases/0/000-20211028-STA-01-00-EN.pdf</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/medidas-provisorias-da-corte-internacional-de-justica-08102021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/medidas-provisorias-da-corte-internacional-de-justica-08102021</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://legal.un.org/avl/ls/Greenwood_CT.html#">https://legal.un.org/avl/ls/Greenwood_CT.html#</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> <a href="https://legal.un.org/avl/ls/Cancado-Trindade_CT.html#">https://legal.un.org/avl/ls/Cancado-Trindade_CT.html#</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> LAFER, C. Direito e poder na reflexão de Miguel Reale. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 76, 1981, p. 216.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> LAFER, C. Ob. Cit. p. 216.

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JOTA

Apontamentos sobre a crescente judicialização das relações internacionais

A &#8216;jurisfação&#8217; da sociedade internacional

A 'jurisfação' da sociedade internacional

Apontamentos sobre a crescente judicialização das relações internacionais nos tribunais internacionais