Marcus Vinícius de Freitas Teixeira Leite

Thábata Filizola Costa

No momento em que este texto é redigido, o Worldometer indica uma população mundial de quase 8 bilhões de pessoas<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, com habilidades e inteligências diferentes. Algumas terão facilidade com palavras e linguagens. Outras, uma maior aptidão para lidar com aspectos lógico-matemáticos, espaciais, corporal-cinestésicos, musicais, naturalísticos, inter ou intrapessoal, para citar algumas das múltiplas inteligências que expressam a variedade de habilidades possíveis para a configuração humana (HOWARD GARDNER, 2011). Diante dessa diversidade, seria razoável esperar do “ser humano médio” a habilidade de compreender um texto jurídico?
O direito tem uma característica que o difere das demais áreas do conhecimento: incide de forma genérica, abstrata e cogente sobre todos os que estão sujeitos à soberania do Estado. Isso significa que eu, com maior inteligência linguística e poucas habilidades lógico-matemáticas, posso me despedir, com alívio, do cálculo logaritmo, mas um exímio matemático jamais se verá livre de conhecer, ainda que minimamente, o direito. Há um ditado, atribuído a Benjamin Franklin, que diz serem a morte e os tributos as únicas coisas certas na vida. Essa inevitabilidade se aplica também ao ordenamento jurídico: ele regulamenta a nossa vida desde antes do nascimento até depois da morte, por vezes independentemente da nossa vontade.
A <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm">Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro</a> (LINDB) deixa claro o caráter imperativo do direito em seu art. 3º: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”. No mesmo sentido, a 1ª parte do caput do art. 21 do Código Penal, que ao tratar do erro sobre a ilicitude do fato, afirma que o desconhecimento da lei é inescusável. Se o conhecimento da norma é presumido, devendo a conduta estar em conformidade com os valores por ela resguardados, é de se esperar que a linguagem jurídica seja acessível aos seus destinatários. Observa-se, muitas vezes, o oposto: utilização de jargões em excesso, expressões latinizadas, sentenças com inversões sintáxicas e linguagem hermética.
Slaibi (2017), ao tratar do acesso à Justiça, critica o formalismo exacerbado, que torna o processo judicial hostil ao usuário. O autor aponta que, nesses casos, predomina a função autorreferenciada ou de introspecção do direito, em contraponto aos impactos que se espera da atividade judiciária na realidade social. A linguagem hermética utilizada pelo Poder Judiciário (objeto de estudo do autor) afasta o usuário da Justiça, pois “não há como reconhecer justiça em uma sentença que lhe é estranha” (SLAIBI, 2017, s.p.). O direito acaba por alienar-se da sociedade, fim último de sua atuação<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Se no Poder Judiciário o “juridiquês” prejudica o acesso à Justiça, no Poder Executivo o chamado “burocratês” dificulta o acesso a informações de interesse público e aos serviços governamentais, como demonstra Pires (2021). Em sua dissertação, a autora estuda os efeitos da linguagem rebuscada para a acessibilidade aos serviços de governo digital (egov), a partir do caso de um benefício social requisitado pelos usuários no âmbito do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). A pesquisa analisa os impactos do “burocratês” sobre a compreensão de textos governamentais mesmo para leitores proficientes, a partir de um experimento feito com 42 adultos pós-graduados, no qual os sujeitos tinham acesso ao texto original do sítio eletrônico do INSS e a uma versão reescrita em Plain Language (Linguagem Simples).
A Plain Language designa um movimento de simplificação da linguagem que, segundo Schriver (2017), teve como marco, nos Estados Unidos, o Federal Reports Act (1942), primeira norma direcionada a regular as informações prestadas pelo mercado e pela indústria às agências federais. O objetivo era evitar duplicidades, reduzir os custos para reunir essa informação e minimizar a complexidade desse processo. Há autores, como Fröhlich (2015), que identificam esse movimento nos países de origem inglesa a partir da década de 1970, com destaque para o livro "Plain English for Lawyers" (1978), de Richard Wydick.
A proposta da Plain Language, traduzida como Linguagem Simples, Linguagem Clara ou Linguagem Cidadã, é tornar a linguagem e a comunicação inclusivas por meio de sua desburocratização. É preciso diferenciá-la da Easy Language (Linguagem Fácil, numa tradução livre). Esta última tem por objetivo central tornar o texto inclusivo para pessoas com algum tipo de deficiência ou para aquelas com dificuldades significativas de leitura. A Easy Language objetiva reduzir os custos cognitivos para a compreensão de um texto, de modo a facilitar sua percepção, a compreensão e o recall do que foi lido. Dado o alto grau de simplificação, a Easy Language carrega maior estigma (HANSEN-SCHIRRA e MAAß, 2020). Já a Pain Language indica um nível intermediário de simplificação, utilizado, entre outras hipóteses, para a tradução de textos técnicos, sendo aplicada frequentemente aos textos jurídicos ou médicos.
A International Plain Language Federation (s.d.)<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> define a Plain Language (Linguagem Simples) como a comunicação na qual as palavras, a estrutura e o design utilizados permitem que seu destinatário encontre e compreenda facilmente a informação de que precisa<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Schriver (2017) vai além, demonstrando que, com a evolução do movimento da Linguagem Simples, o conceito também se modificou, ultrapassando a clareza da escrita e, posteriormente, as questões relacionadas a topografia e design, para abarcar também critérios como eticidade, precisão, utilidade e confiança da informação.
A utilização de técnicas de Linguagem Simples vai ao encontro do disposto no caput do art. 11 da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp95.htm">Lei Complementar nº 95</a>, de 26 de fevereiro de 1998, segundo a qual “as disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica”. No mesmo sentido, o art. 5º da Lei de Acesso à Informação (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lai">LAI</a>) prevê que “é dever do Estado garantir o direito de acesso à informação, que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão”. Também a Lei 13.460, de 26 de junho de 2017, que dispõe sobre participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos da administração pública, estabelece, no inciso XIV do caput do art. 5º, a “utilização de linguagem simples e compreensível, evitando o uso de siglas, jargões e estrangeirismos” como diretriz para a adequada prestação dos serviços públicos.
Falou-se das dificuldades do uso do “juridiquês” ou do “burocratês” no âmbito dos Poderes Judiciário e Executivo e sobre a exigência normativa de utilização de uma linguagem compreensível pelo Estado. É preciso refletir, também, sobre os impactos do uso da Linguagem Simples no Poder Legislativo. O Legislativo é o lugar privilegiado de manifestação das preferências da população ali representada. Uma população que entende a norma em discussão e, mais ainda, o processo legislativo e as possibilidades institucionais de permeabilidade de suas demandas, tem condições de exercer a participação e a deliberação com maior qualidade. Ao revés, se as normas de direito material e processual escapam da compreensão de seus destinatários, perde-se em responsividade e em accountability.
Nesse sentido, a Legística Formal surge como um importante instrumento para apresentar a escolha legislativa em um texto jurídico que seja claro e baseado em princípios da boa comunicação aos destinatários. Trata-se de uma ferramenta para a constante melhoria da compreensão legal do texto, aproximando o legislador do cidadão (SOARES, 2012). Um dos maiores marcos da Legística Formal ocorre na concepção e redação do Código Civil suíço de 1907, quando já se manifestava uma insatisfação com a predominância dos estudos acerca da aplicação das normas, ignorando-se que tão importante quanto a interpretação é a própria elaboração normativa (FLÜCKIGER, 2019).
No entanto, redigir uma lei de maneira clara não é uma tarefa simples, sobretudo considerando a heterogeneidade dos destinatários, com diferentes graus de letramento e conhecimento técnico-jurídico. Nas palavras de Flückiger, “a exigência de clareza não é clara” (2019, p. 547), posto que para alguns sempre haverá uma carga de imprecisão nas expressões e termos utilizados.
Ante o exposto, como elaboradores e intérpretes do direito podem se utilizar da Linguagem Simples e da Legística Formal para tornar o ordenamento jurídico mais acessível a seus destinatários?
Fröhlich (2015) propõe algumas ações, sintetizadas a seguir:
<ol>
<li>omitir palavras excedentes;</li>
<li>evitar proposições compostas;</li>
<li>evitar prolixidade;</li>
<li>encurtar parágrafos e frases;</li>
<li>considerar o leitor, isto é, adaptar o texto à audiência;</li>
<li>usar termos técnicos com moderação;</li>
<li>omitir palavras arcaicas;</li>
<li>optar pela voz ativa;</li>
<li>falar apenas o necessário, nada mais.</li>
</ol>
Sobota (2016) sugere, ainda, o emprego de recursos que facilitem a legibilidade do texto, que incluem a utilização de layout amigável, de fonte apropriada, de subtítulos, marcadores, gráficos, tabelas e outros elementos visuais.
Embora a pretensão de uma linguagem absolutamente clara seja em alguma medida utópica, a elaboração legislativa deve se valer da concisão, da simplicidade, da maior precisão terminológica (inclusive com a utilização de glossários em normas), além de uma estrutura que observe critérios lógicos de sistematização, a fim de facilitar a compreensibilidade do texto normativo e, assim, resguardar a ancoragem do direito à realidade social.
Dessa forma, a linguagem usada nas normas está diretamente relacionada à efetividade da legislação, uma vez que um texto que comunica mal seu conteúdo acabará por prejudicar a consecução dos objetivos pretendidos. A melhoria qualitativa que se busca na atuação estatal e nas legislações, portanto, passa pela conexão inseparável entre a forma e o conteúdo.<a href="#_ftnref1" name="_ftn1"></a>
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Population – Worldometer. Disponível em: <a href="https://www.worldometers.info/world-population/">https://www.worldometers.info/world-population/</a>. Acesso em: 6 maio. 2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A ancoragem com a realidade social é questão central para a coerência interna e externa do direito na definição tridimensional de Miguel Reale (direito como fato-valor-norma). O fato social modifica e é modificado pela norma; os valores identificados como relevantes refletem uma expectativa de conduta (dever-ser) desejada pela sociedade em determinado contexto histórico-geográfico; a norma integra essa relação fático-valorativa e deve estar conectada à realidade social, para que tenha efetividade.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Organização internacional fundada em 2007 com a missão de profissionalizar o uso da Linguagem Simples no mundo.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> INTERNATIONAL PLAIN LANGUAGE FEDERATION. Our Work. Disponível em:&lt;<a href="https://www.iplfederation.org/our-work/">https://www.iplfederation.org/our-work/</a>&gt;. Acesso em: 11 abr. 2022.
FLÜCKIGER, Alexandre. (Re)faire la loi: Traité de légistique à l’ère du droit souple. Berne: Stämpfli Editions, 2019.
FRÖHLICH, Luciane. Redação jurídica objetiva: o juridiquês no banco dos réus. In: Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarica (Esmesc), v. 22, n. 28, p. 211-236, 2015. Disponível em: &lt;<a href="https://revista.esmesc.org.br/re/article/view/128">https://revista.esmesc.org.br/re/article/view/128</a>&gt;. Acesso em: 9 maio 2022.
GARDNER, Howard. Frames of Mind: the Theory of multiple intelligences. Basic Books, 2011.
GONZAGA, Alvaro de Azevedo e ROQUE, Nathaly Campitelli. Teoria Tridimensional do Direito. In: Enciclopédia Jurídica da PUCSP. Tomo 1: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Edição 1, abr. 2017. Disponível em: &lt;<a href="https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/64/edicao-1/tridimensional-do-direito,-teoria">https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/64/edicao-1/tridimensional-do-direito,-teoria</a>&gt;. Acesso em: 6 abr. 2022.
INTERNATIONAL PLAIN LANGUAGE FEDERATION. Our Work. Disponível em:&lt;<a href="https://www.iplfederation.org/our-work/">https://www.iplfederation.org/our-work/</a>&gt;. Acesso em: 11 abr. 2022.
PIRES, Heloísa Fisher de Medeiros. Impactos da Linguagem Simples na compreensibilidade da informação em governo eletrônico: o caso de um benefício do INSS. Orientadora: Prof.a Cláudia Renata Mont’Alvão Bastos Rodrigues. 2021. 263 f. Dissertação (Mestrado em Design) – Departamento de Artes e Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: &lt;<a href="https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/53277/53277.PDF&gt;">https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/53277/53277.PDF&gt;</a>. Acesso em: 11 abr. 2022.
SCHRIVER, K. A. Plain language in the US gains momentum: 1940–2015. In: IEEE Transactions in Professional Communication, 60(4), 343–383, dez. 2017. Disponível em: &lt;<a href="http://ieeexplore.ieee.org/document/8115322/">http://ieeexplore.ieee.org/document/8115322/</a>&gt;. Acesso em: 6 maio 2022.
SLAIBI, Arthur Lavigne Gesteira. Uma crítica à linguagem jurídica: acesso, técnica, violência e efetividade. In: Revista Direito UNIFACS, n.200, fevereiro, 2017. Disponível em: &lt;<a href="https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/4810">https://revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view/4810</a>&gt;. Acesso em: 11 abr. 2022.
SOARES, Fabiana de Menezes. Simplificação e elaboração da legislação tributária infralegal: notas sobre o acesso ao direito vigente e a gestão da elaboração legislativa pelo Executivo. In: Caderno de finanças públicas. Escola de Administração Fazendária – nº 12 (dez. 2012) – Brasília: Esaf, 2000-Anual.
SOBOTA, Anna. The Plain Language Movement and Modern Legal Drafting. In: Comparative Legilinguistics: International Journal for Legal Communication. 2016. Disponível em: &lt;<a href="https://pressto.amu.edu.pl/index.php/cl/article/view/6519">https://pressto.amu.edu.pl/index.php/cl/article/view/6519</a>&gt;. Acesso em: 9 maio 2022.

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