Gustavo Haddad Braga

Acostumados que estamos com os filmes hollywoodianos, associamos quase sempre a ideia de julgamentos por júri ao sistema jurídico da Common Law e, particularmente, aos Estados Unidos. A Sexta Emenda à Constituição Norte-Americana proclama<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, com efeito, o direito de qualquer acusado, em todas as causas criminais, de ser julgado por um júri imparcial, no estado em que a infração penal deva ter ocorrido. O que poucos sabem, porém, é que esse mesmo direito, com a mesma amplitude, já existiu no Brasil.
Nossa <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm">Constituição Imperial</a>, de 1824, com efeito, já previa, em seus    arts. 151 e 152, que o Poder Judiciário (na época “Poder Judicial”) compunha-se por juízes, togados, e jurados, leigos, estes que se pronunciariam sobre matérias de fato, aqueles, sobre as de direito. A fórmula se estendia, vale mencionar, também às causas cíveis: enquanto nos Estados Unidos a Sétima Emenda instituiu<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> o julgamento por júri em todas as causas cíveis cujo valor em discussão fosse superior a 20 dólares, aqui se previa que os jurados teriam lugar “assim no Civil, como no Crime”, nos casos, e pelo modo, que os Códigos determinassem.
É fato que a competência do júri foi sendo, no Direito brasileiro, progressivamente restringida, tendo muitos, inclusive, cogitado de sua completa proscrição do nosso ordenamento pelo advento da Constituição de 1937, que já não o previa, sequer expressamente<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Se bem que com atenuações, contudo, o instituto sobreviveu, e chegou aos dias atuais com os contornos que nos são bem conhecidos: elevado, enfim, ao status de garantia individual pétrea, foi-lhe assegurada a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, a saber, o homicídio doloso, o infanticídio, o aborto e a instigação ao suicídio, quer consumados, quer meramente tentados (art 5º, XXXVIII, “d”, da CF, e art. 121, § 1º, do CPP).
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A questão que se põe é no que respeita à possibilidade de ampliação dessa competência, em face do sistema constitucional vigente. Tramita no Senado Federal a <a href="https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoideia?id=75224">Ideia Legislativa n. 75.244</a>, de minha autoria, para tornar de competência do tribunal do júri o julgamento de qualquer crime comum praticado por detentores de mandato eletivo, nas esferas federal, estadual, municipal e distrital. Trata-se de medida que, tendo em vista a grande repercussão na vida política do País que o julgamento de representantes eleitos do povo costuma ter, seria tendente a trazer mais legitimidade às decisões do Poder Judiciário, evitando acusações, que frequentemente se veem, de que este ou aquele magistrado estaria atuando politicamente ao condenar, ou, ao revés, de que teria cedido ao jogo político ao absolver. Nesse momento, sequer aos olhos da população, muitas vezes apaga-se a importante linha que separa o que seria um agir político – algo absolutamente incompatível com os elevados deveres da Magistratura – do que seria um agir com meros reflexos no mundo político – estes, naturalmente, inevitáveis quando se trata do julgamento de personalidades conhecidas da vida política nacional.
Ao fim e ao cabo, serviria a proposta mesmo para resguardar de exposições e críticas desnecessárias o próprio Poder Judiciário. É de sabença e aceitação geral, afinal, que uma separação mínima entre o fazer judicial e o fazer político é necessária, e não apenas a separação em si, mas a percepção genérica sobre ela, é importante. Evidentemente, em que pese aos postulados constitucionais do secretismo da deliberação (art 5º, XXXVIII, “b”) e da soberania dos veredictos (alínea “c” do mesmo dispositivo), o fato de se tratar de julgamento por júri não excluiria – como já não exclui nos casos atualmente julgados pelo tribunal do júri – o adequado e necessário controle técnico-judicial prévio, concomitante e posterior do processo.
No que tange ao controle prévio, há de se notar a necessidade de preclusão da sentença pronúncia para que o acusado vá a júri (art. 421, caput, do CPP). Trata-se, como de se nota, de uma fase do julgamento, em que a denúncia é escrutinada, pelo magistrado, de modo muito mais profundo do que o juízo meramente delibatório praticado por ocasião de seu recebimento.
Quanto ao controle concomitante, aplica-se no tribunal do júri, integralmente, a vedação a provas colhidas ou produzidas ilicitamente (art 5º, LVI, da CF), sendo bem assim vedado, na esteira do que já praticado na jurisprudência norte-americana, a apresentação aos jurados de elementos que, sem valor probatório, tencionem persuadi-los por mero argumento de autoridade, como seria o caso de referências indevidas à própria sentença de pronúncia   (art. 478, I, do CPP).
Mais ainda, a soberania dos veredictos não é interpretada como sinônimo de absoluta intangibilidade jurídico-processual. Nesse sentido, é pacífica assim a doutrina como a jurisprudência, de longa data<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> e em conformidade com os ditames legais (art. 593, III, do CPP), acerca da possibilidade de apelação da sentença proferida pelo tribunal do júri, cabendo igualmente, da decisão do tribunal, recurso especial ou extraordinário, conforme o caso.
Por fim, não merecem prosperar críticas no sentido de que a ampliação de competência proposta sobrecarregaria o funcionamento do júri. O Código de Processo Penal, em seu art. 425, já exige que cada comarca do País aliste anualmente jurados, em número tão maior quanto maior for sua população, e já são realizados <a href="http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/84128-mes-nacional-do-juri-realiza-mais-de-2-900-julgamentos-no-pais">milhares de julgamentos mensalmente</a>, de modo que a ligeira ampliação proposta não configuraria nenhuma sobrecarga minimamente apreciável.
Ainda assim, muitos questionamentos, de diversas ordens, poder-se-iam levantar quanto à conveniência da proposição. Não se tem aqui a pretensão de rebatê-los um a um, perfazendo verdadeira defesa do mérito da matéria. O que se quer é, uma vez apresentados, como foram, os indícios de factibilidade e funcionalidade do modelo proposto (quais sejam, sua larga utilização no direito alienígena<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, a utilização prévia no próprio Brasil e os mecanismos de controle já existentes), discutir amiúde a admissibilidade da proposta, especificamente no que tange à sua constitucionalidade.
É certo que não há como argumentar que o júri seja em si mesmo inconstitucional, porque a própria Constituição em seu texto originário o prevê, não havendo que se falar, no Direito pátrio, em inconstitucionalidade do texto originário da Constituição. Já em 1996, na ADI 815, procedente do Distrito Federal, a Supremo Tribunal Federal firmou jurisprudência no sentido de que “a tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras e incompossível com o sistema de Constituição rígida”. Os possíveis argumentos pela suposta inconstitucionalidade do júri, então, só poderiam tratar a respeito de sua expansão.
São, à primeira vista, argumentos que não persuadem. Com efeito, há mesmo na doutrina quem defenda a possibilidade de expansão da competência do júri por meio de mera lei ordinária, sem nem mesmo necessidade de emenda à Constituição. Nesse sentido, é de colacionar as lições de Fernando da Costa Tourinho Filho, para quem “nada impede sejam criados Tribunais do Júri para o julgamento de outras infrações, e muito menos se inclua na sua competência o julgamento destas. O que não é possível é a subtração do julgamento de um crime doloso contra a vida ao Tribunal do Júri.” (Manual de Processo Penal, 11a edição, Ed. Saraiva, p. 178)
É coisa que, aliás, já se dá, quando há concurso entre a competência do júri e a de outro órgão da jurisdição comum, caso em que o Código de Processo Penal (art. 78, I) preceitua deva prevalecer a competência daquele.
Apesar de tal determinação, amplamente conhecida e bastante tradicional no Direito brasileiro, e cuja inconstitucionalidade, do que nos consta, parece jamais ter sido sequer aventada, a doutrina majoritária tende a se posicionar no sentido de que o rol constitucionalmente determinado (crimes dolosos contra a vida) seria taxativo, e não meramente exemplificativo. Nesse sentido, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados já proferiu <a href="http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1416763&amp;filename=PRV+1+CCJC+%3D%3E+PL+779/2007">parecer</a> desfavorável à ampliação de competência do tribunal do júri por meio de lei ordinária, em <a href="http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=348619">projeto</a> que visava a tornar de sua competência o julgamento também de crimes contra o patrimônio de que resultasse morte da vítima, a exemplo do latrocínio.
Ainda a prevalecer a tese de que o rol constitucional de competência do tribunal do júri seja taxativo, contudo, não significaria isso que fosse ele inalterável. A Constituição consagra, sim, os direitos e garantias individuais como cláusulas pétreas, mas a garantia aqui não é a de não ser julgado por júri, senão justamente a de sê-lo. É, afinal, da tradição constitucional brasileira considerar a possibilidade de julgamento por seus próprios pares um direito do réu, jamais um ônus, especialmente em face de todas as garantias que são inerentes a esse processo, em particular o direito não apenas a uma defesa ampla e técnica, mas a uma defesa plena (art. 5º, XXXVIII, “a”, da CF), expressão que compreende, inclusive, a possibilidade de invocação de alegações extrajurídicas. Guilherme de Souza Nucci preleciona, em sua obra Código de Processo Penal comentado (2002, p. 632), que:
“A cláusula pétrea no direito brasileiro, impossível de ser mudada pelo Poder Constituinte Reformador, não sofre nenhum abalo, caso a competência do júri seja ampliada, pois sua missão é impedir justamente seu esvaziamento.”
Pois bem. Se não há vedação constitucional quer à existência júri, quer à ampliação de sua competência (ao menos por emenda à Constituição), uma terceira e última possibilidade a se analisar é se haveria alguma restrição ao critério segundo o qual tal ampliação poderia ser feita. De que não há vedação à ampliação da competência do júri em razão de matéria (“ratione materiae”) parece não haver dúvida; que dizer, contudo, em relação à competência em razão de pessoa (“ratione personae”)?
Também aqui não parece ser possível alegar plausivelmente que inconstitucionalidade haveria. É que a competência em razão de pessoa também já existe no texto constitucional originário, particularmente na instituição de foro especial por prerrogativa de função, ou “foro privilegiado”, como ficou popularmente conhecido. E, similarmente, também já foi outrora ampliada por emenda à Constituição: a própria <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc23.htm">Emenda Constitucional n. 23, de 1999</a>, que criou o Ministério da Defesa, atribuiu foro especial (no Supremo Tribunal Federal) aos que então passaram à condição de Comandantes das três Forças Armadas.
Poder-se-ia alegar que o caso do júri é, contudo, o oposto: um foro “desprivilegiado”. Muitos alegam, com efeito, que o júri condena com substancialmente mais frequência do que juízes singulares. Trata-se de argumento, contudo, falacioso, porque deixa de considerar a existência de controle judicial prévio à instauração do júri – a fase de pronúncia, como acima vimos – muitíssimo mais rígido do que o mero recebimento da denúncia que ocorre nos demais crimes (e que também ocorre no júri, previamente à fase de pronúncia).
Mas ainda que a taxa efetiva de condenações do júri – calculada não sobre o total de réus pronunciados, como se costuma fazer, mas sobre o total de denúncias efetivamente recebidas – fosse maior do que a dos juízes singulares, é importante lembrar que o cognome “foro privilegiado” é usado entre aspas por um motivo: o foro especial por prerrogativa de função, embora alegadamente possa servir indiretamente a esse propósito, não tem como justificativa formal conferir um “privilégio” ao detentor do cargo; e a justificativa formal, se menos importante ao debate político, aqui é tudo que importa, porque é dela que se extrai o fundamento constitucional de validade da norma.
Por outras palavras, a justificativa para a existência de foros especiais não é que por meio deles se conceda qualquer privilégio especial ao detentor de elevado cargo público; antes de proteger a pessoa, serve para proteger o cargo, resguardando-o de influências políticas espúrias ao delegar o julgamento de certas autoridades a juízes de maior hierarquia, sem preocupações com promoção ou ascensão na carreira, e atuando em órgãos colegiados, que estariam, portanto, pelo menos em tese, menos propensos a deixar-se levar por indevidos fatores exógenos, quer para condenar, quer para absolver.
Ora, se isso vale como justificativa para existência do “foro privilegiado”, com ainda mais força justificaria a transferência desses julgamentos para o tribunal do júri. Porque o Conselho de Sentença só é escolhido – e, portanto, conhecido – na hora do julgamento, e fica a partir de então incomunicável (art. 466, § 1º, do CPP), seria muito mais difícil aplicar a ele pressões indevidas ou mesmo corromper algum de seus membros. Soma-se a isso o fato de que o voto de cada jurado não é nem jamais será conhecido, o que também esvazia a possibilidade de pressões externas em um sentido ou em outro. A única alegação que resta é a de que os jurados poderiam ser inerentemente incautos, é dizer, não em decorrência de fatores externos, mas por razão que lhes fosse ínsita.
Em relação a isso, parece-nos que a legislação de regência do júri, particularmente o Código de Processo Penal, já fornece importantes salvaguardas. A principal delas talvez seja a possibilidade de recusa imotivada de jurados (art. 468 do CPP), que permite tanto à defesa quanto ao Ministério Público recusar jurados que lhes pareçam desaconselháveis. A necessidade de comprovada idoneidade moral para serviço no júri é outro exemplo (art. 436, também do CPP). E a legislação, é claro, poderia ser aperfeiçoada para minorar ainda mais a possibilidade de que houvesse condenações “no calor do momento”, prescrevendo, por exemplo, quorum qualificado para a proferição de veredicto condenatório. Respeitadas as imposições constitucionais – a saber, a plenitude de defesa, o sigilo das votações e a soberania de seus veredictos –, o instituto do júri é suficientemente plástico, podendo ser continuamente moldado e aperfeiçoado pela legislação infraconstitucional, para, preservadas as vantagens que lhe são inerentes, mais bem se adequar ao novo fim que lhe seria atribuído: o julgamento de políticos.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “In all criminal prosecutions, the accused shall enjoy the right to a speedy and public trial, by an impartial jury of the State and district wherein the crime shall have been committed, which district shall have been previously ascertained by law, and to be informed of the nature and cause of the accusation; to be confronted with the witnesses against him; to have compulsory process for obtaining witnesses in his favor, and to have the Assistance of Counsel for his defence.”
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “In Suits at common law, where the value in controversy shall exceed twenty dollars, the right of trial by jury shall be preserved, and no fact tried by a jury, shall be otherwise re-examined in any Court of the United States, than according to the rules of the common law.”
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> O Decreto-Lei n. 167, de 5 de janeiro do ano seguinte, ao regular a instituição do júri, acabou por corroborar a visão defendida por Francisco Campos, então Ministro da Justiça e um dos subscritores da carta constitucional de 1937, para quem a manutenção do júri, embora não expressamente prevista, fundava-se no permissivo genérico, do art. 183, de que continuariam em vigor, enquanto não revogadas, as leis que não contrariassem, explícita ou implicitamente, as disposições constitucionais.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Vide, por exemplo, o HC 66.954, da 1ª Turma do colendo Supremo Tribunal Federal, relator o Min. Moreira Alves.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Além dos Estados Unidos, com efeito, o modelo de júri é também largamente empregado em países como o Reino Unido, Austrália, Canadá, entre outros.

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JOTA

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