Alonso Freire

Carlos Alexandre de Azevedo Campos

Felipe de Melo Fonte

“É um momento excitante para o Direito Constitucional Comparado”, “disciplina energizada no começo do século 21” e em “rápido amadurecimento”. São afirmações de Rosalind Dixon e Tom Ginsburg, expoentes do tema e organizadores de importante obra dedicada, especificamente, ao estudo comparado do Direito Constitucional. [1] Coletâneas, [2] obras individuais [3] e papers sobre a matéria [4] nunca foram tão abundantes. [5] É verdade que o Direito Constitucional Comparado possui raízes antigas. A análise comparada de constituições já se fazia presente na Grécia Antiga com Aristóteles em seu Politica. Pensadores como Maquiavel, Montesquieu e Stuart Mill investigaram diferentes possibilidades comparadas de desenhos e formas políticas. O estudo das origens e desenvolvimento de instituições jurídicas, dirigido à comparação de modelos, tornou-se particularmente relevante no contexto das revoluções norte-americana e francesa (século XVIII). No século seguinte (XIX), contudo, a prática foi negligenciada ante a centralidade do Direito Privado e a dificuldade em se encontrar elementos universais no Direito Constitucional naquela época. [6]
Todavia, esse campo de estudo começou a ser revigorado com as ondas constituintes surgidas a partir do início do século XX, [7] embora seu reconhecimento como disciplina acadêmica autônoma só tenha ocorrido tempos depois, com o fim da Segunda Guerra Mundial. De lá para cá, muita coisa mudou e outras ondas de constitucionalismo surgiram. Nas últimas duas décadas, tal como sucedeu no direito comparado geral, esse campo de estudo tem sofrido grandes impactos decorrentes da globalização, passando a enfrentar desafios cada vez mais difíceis e surpreendentes. Tais desafios talvez sejam um dos principais fatores responsáveis pelo seu vigoroso renascimento. Hoje, dentro do quadro geral do Direito Comparado, o Direito Constitucional Comparado ganha em importância e magnitude, especialmente por oferecer importantes contribuições para a arquitetura e para a consolidação de novas democracias e novas cortes.
O desenvolvimento superior da disciplina, a partir do início do século XX, também é tributário da formação da Ciência Política como disciplina moderna, de modo que, a partir de então, “o estudo do direito constitucional comparado passou a ser concebido como uma extensão da política comparada”. [8] Mas foi com o chamado neoinstitucionalismo, movimento recente na Ciência Política, marcado pela preocupação acadêmica com a formação e funcionamento das instituições, em reação à emergência das abordagens comportamentalistas, [9] que o direito constitucional comparado ganhou maior vigor e fôlego. Com o término da Segunda Guerra Mundial e consequente necessidade de reconstitucionalização de muitos países, os estudos de engenharia constitucional ou desenho constitucional comparativo ganhou a atenção de cientistas políticos. Esse interesse se estendeu após a “terceira onda de democratização”,[10] iniciada na década de 70 do século passado e alcançando, principalmente, países da Europa Oriental, América Latina e África - com reverberações atuais na Asia.
Desde então, cientistas políticos e constitucionalistas viraram suas atenções para o estudo comparado de constituições com o propósito de elaborar, do ponto de vista normativo, desenhos institucionais capazes de contribuir para a consolidação da democracia nessas regiões. No âmbito dessas recentes preocupações, destaca-se a atenção voltada ao estudo das cortes constitucionais e superiores, com poder de controlar, em única ou última instância, a constitucionalidade das leis de seus países. O propósito desses estudos é propor a melhor forma de composição e organização dessas cortes, seus poderes e competências, de como atuar em regimes em transição e lidar com o fenômeno crescente e mundial da judicialização da política. Nesse contexto, a disciplina, mormente a partir do início deste século, tornou-se singularmente relevante, passando a ser chamada por alguns não mais como direito constitucional comparado, mas estudos constitucionais comparativos. [11]
O estudo comparado das cortes constitucionais e de suas decisões mais paradigmáticas levou o Direito Constitucional Comparado ou os estudos constitucionais comparativos a um novo e superior patamar. O fenômeno é bem explicado por Rosalind Dixon e Tom Ginsburg:
Com o levantar proeminente de cortes constitucionais como locus de importantes decisões sociais e políticas, tornou-se claro que alguns dos problemas que as cortes estavam enfrentando eram recorrentes em diferentes países. Muitas novas democracias, por exemplo, tinham que lidar com temas de justiça de transição, transformação econômica e questões eleitorais. Essas cortes, muito naturalmente, começaram a prestar atenção em como as questões eram resolvidas em outros países, especialmente em democracias estabelecidas com jurisprudência bem desenvolvida sobre questões similares. Cortes estão também em diálogo sobre a interpretação de instrumentos internacionais de direitos humanos, e quais limitações podem ser aceitas dentro de uma sociedade livre e democrática. Esse fenômeno de diálogo judicial transnacional é, de fato, velho, mas recebeu renovada atenção e foi pesadamente criticada por conservadores nos Estados Unidos. A crítica implicou uma enxurrada de trabalhos sobre o papel apropriado dos empréstimos judiciais entre jurisdições. De fato, em parte por esta razão, o começo do século XXI tem visto uma autêntica explosão de interesse na disciplina. [12] 
De fato, tem-se observado que a globalização tem promovido uma desterritorialização do Direito, reduzindo os obstáculos naturais e legais para uma interação entre jurisdições nacionais e internacionais.[13] Diz-se, não sem razão, que “a interpretação constitucional está tomando um caráter cada vez mais cosmopolita” [14] e que o “direito tornou-se um bem intercambiável”. [15] Essas conclusões decorrem de uma constatação inegável: a comunicação entre tribunais intensificou-se consideravelmente nas últimas décadas e as fronteiras políticas não mais limitam tão facilmente a circulação do Direito entre as mais distintas jurisdições. Com isso, e devido também a outros fatores que têm contribuído para o aprofundamento desse processo, [16] os “[t]ribunais constitucionais e cortes supremas de todo o mundo”, como muito bem observa o Professor Luís Roberto Barroso, “começaram a se engajar em um crescente diálogo constitucional, envolvendo citação mútua, conferências de intercâmbio acadêmico e organização de fóruns públicos como a Comissão de Veneza”. [17] Sem embargo, as ordens jurídicas estatais têm se tornado cada vez mais permeáveis às influências estrangeiras e internacionais.
Não obstante o diálogo crescente e interesses cada vez mais amplos e compartilhados entre as diferentes cortes constitucionais e supremas, o propósito do direito constitucional comparado não pode ser considerado o de fornecer respostas universais a casos e situações que se repetem em muitos países.  É bem verdade existirem padrões de similitude entre os problemas enfrentados por diferentes cortes constitucionais. Mas isso não permite afirmar a identidade universal dessas questões. Além do mais, mesmo que os problemas sejam os mesmos, as soluções não são ou podem não ser necessariamente idênticas. Ante as diferenças entre sistemas constitucionais, mormente decorrentes de fatores culturais e políticos, respostas podem variar embora os problemas possam ser idênticos ou semelhantes. [18] Dessa forma, o propósito do direito constitucional comparado é o compartilhamento de experiências sem se descuidar de fornecer respostas apropriadas a contextos específicos, e não, necessariamente, respostas universais.
Por outro lado, é exagero pensar que não existem problemas comuns entre democracias constitucionais atuais. Em alguns casos, é possível que o direito constitucional comparado forneça respostas idênticas a problemas semelhantes identificados em diferentes comunidades políticas. [19] Pensar o contrário o tornaria irrelevante. Do mesmo modo, é ilusório pensar que ele pode fornecer sempre respostas adequadas. Isso, por sua vez, o tornaria arbitrário. Deve-se, portanto, reconhecer que é possível haver muita identidade e muita diferença entre sistemas constitucionais ao redor do mundo. Consequentemente, é possível que comunidades distintas enfrentem problemas semelhantes, do mesmo modo que é possível que algumas comunidades enfrentem desafios específicos, e por diversas razões. Essa última possibilidade não retira a importância do direito constitucional comparado, antes o justifica, já que não há sentido em comparar fenômenos idênticos. [20] A própria existência do direito comparado indica que há uma pluralidade de sistemas jurídicos, tradições legais, instituições, normas e institutos jurídicos que podem ser diferentes ou similares.
Um ponto em particular envolve a questão a propósito de uma convergência no que diz respeito às técnicas de interpretação constitucional. Desde a emergência do papel social e político das cortes constitucionais, estudiosos passaram a observar, especialmente tendo em conta o alcance e a estrutura comum de direitos fundamentais previstos em diferentes constituições, uma linha similar na forma de aplicar esses direitos e no uso das técnicas modernas de interpretação e de decisão. Ponderação, proporcionalidade, interpretação conforme à Constituição, eficácia horizontal de direitos fundamentais, sentenças manipulativas, aditivas, modulação de efeitos fazem parte de uma gramática decisória utilizada, em maior ou menor medida, por diferentes cortes constitucionais em diferentes regiões do planeta. Tais circunstâncias reforçam a ideia de “empréstimos” entre cortes serem algo bem mais usual do que se possa, a princípio cogitar. Não haveria apenas relativa similitude entre os problemas e as soluções, mas também em relação à própria forma de operar as constituições pelas cortes. É devido a esses empréstimos que tem se afirmado que as ideias constitucionais estão “migrando". [21]
A grandeza e atualidade desses fenômenos motivaram o Jota a implementar uma coluna especial sobre o Direito Constitucional Comparado com foco na atuação das cortes constitucionais e supremas: o JOTAMundo. Coordenado pelos professores Alonso Freire, [22] Carlos Alexandre de Azevedo Campos [23] e Felipe de Melo Fonte, [24] o JOTAMundo reunirá, quinzenalmente, textos de acadêmicos sobre a estrutura, o funcionamento e as decisões mais relevantes das cortes constitucionais e supremas de países como Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Itália, França, Espanha, Portugal, bem como do Reino Unido. Os artigos também serão voltados a cortes que costumam receber menor atenção, mas que inegavelmente podem oferecer, em igual medida, materiais relevantes para a pesquisa comparada, tais como as da Colômbia, Costa Rica, México, Chile, Hungria, Polônia, África do Sul, Egito, Índia, Israel, Indonésia, Turquia, Austrália, entre outras. Todas essas Cortes se equiparam em um ponto nuclear: enfrentam os mais variados e complexos problemas morais e políticos do mundo contemporâneo.
O propósito principal da coluna é oferecer materiais normativos, extraídos dessas experiências comparadas, que possam ser utilizados na solução dos conflitos constitucionais, de ordens social e moral, mais relevantes que, contemporaneamente, chegam ao Supremo Tribunal Federal e reclamam decisões cruciais. Entender como casos complexos similares foram resolvidos por cortes estrangeiras, como essas cortes se comportaram diante de contextos político-institucionais particulares, e as fórmulas interpretativas e as técnicas de decisão utilizadas pode contribuir para a construção de nossas melhores decisões sobre as mais difíceis questões. O objetivo do JotaMundo é instigar os leitores a refletirem e identificarem como isso é possível. Vamos em frente!
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* Este texto é baseado, principalmente, nas pesquisas realizadas por um dos coordenadores do JotaMundo, Alonso Freire, voltadas à elaboração de sua tese de doutorado.
[1] - GINSBURG, Tom; DIXON, Rosalind. Introduction. In: GINSBURG, Tom; DIXON, Rosalind (eds.). Comparative Constitutional Law. Cheltenham: Edward Elgar, 2011, p. 1 e ss.
[2] - Cf., por exemplo, ROSENFELD, Michel; SAJÓ, András (eds.). The Oxford Handbook of Constitutional Law. Oxford: Oxford University Press, 2012; GINSBURG, Tom; DIXON, Rosalind (eds.). Comparative Constitutional Law. Op. cit.
[3] - Cf., por exemplo, TUSHNET, Mark. Advanced Introduction to Comparative Law. Cheltenham: Edward Elgar, 2014; HIRSCHL, Ran. Comparative Matters: The Renaissance of Comparative Constitutional Law. Oxford: Oxford University Press, 2014.
[4] -  Cf., entre outros, HIRSCHL, Ran. The Rise of Comparative Constitutional Law: Thoughts on Substance and Method. Indiana Journal of Constitutional Law, vol. 1, n. 02, 2008, p. 11-37; TUSHNET, Mark. The Possibilities of Comparative Constitutional Law. The Yale Law Journal, vol. 108, n. 6, 1999, p. 1225-1309; FORBATH, William E.; SAGER, Lawrence. Comparative Avenues in Constitutional Law: An Introduction. Texas Law Review, vol. 82, n. 7, 2004, p.1654-1669; FONTANA, David. The Rise and Fall of Comparative Constitutional Law in the Postwar Era. Yale Journal of International Law, vol. 36, 2011, p. 1-53; KOMMERS, Donald P. The Value of Comparative Constitucional Law. The John Marshall Journal of Practice and Procedure, vol. 9, 1976, p. 685-695; KAHN, Paul W. Comparative Constitutionalism in a New Key. Michigan Law Review, vol. 101, 2003, p. 2677-2705.
[5] - Até mesmo um periódico específico sobre essa disciplina foi “criado para satisfazer uma necessidade originada por uma recente tendência voltada para a globalização das normas constitucionais e pelo crescente uso da análise comparativa na jurisdição constitucional e na academia”, como justificaram seus editores, Michel Rosenfeld e Norman Dorsen, em seu primeiro número. Trata-se do já respeitado International Journal of Constitutional Law. Cf. Note to Readers, vol. 1, n. 1, janeiro, 2003, p. 1.
[6] - ROSENFELD, Michel; SAJÓ, András. Introduction. In: ROSENFELD, Michel; SAJÓ, András (eds.). The Oxford Handbook of Constitutional Law. Op. cit., p. 3.
[7] - TUSHNET, Mark V. Comparative Constitutional Law. In: REIMANN, Mathias; ZIMMERMANN, Reinhard (eds.). The Oxford Handbook of Comparative Law. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 1226.
[8] - HIRSCHL, Ran. Comparative Matters: The Renaissance of Comparative Constitutional Law. Oxford: Op. cit., p. 155-156.
[9] - Cf. GINSBURG, Tom; KAGAN, Robert. A. (Ed.) Institutions &amp; Public Law. Comparative Approaches. New York: Peter Lang, 2005; MAVEETY, Nancy. (Ed.) The Pioneers of Judicial Behavior. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2006; MILLER, Mark C.; BARNES, Jeb. (Ed.) Making Policy, Making Law. Washington: Georgetown University, 2004.
[10] - HUNTINGTON, Samuel P. The Third Wave. Democratization in the Late Twentieth Century. Norman: University of Oklahoma Press, 1991.
[11] - HIRSCHL, Ran. Comparative Matters: The Renaissance of Comparative Constitutional Law. Op. cit., p. 151 e ss.
[12] - GINSBURG, Tom; DIXON, Rosalind. Introduction. In: GINSBURG, Tom; DIXON, Rosalind (eds.). Comparative Constitutional Law. Op. cit., p. 3-4.
[13] - Cf. SLAUGHTER, Anne-Marie. A Global Community of Courts. Harvard Journal of International Law, vol. 44, n. 1, 2003, p. 191-219.
[14] - CHOUDHRY, Sujit. Globalization in Search of Justification: Toward a Theory of Comparative Constitutional Interpretation. Indiana Law Review, vol. 74, 1999, p. 820.
[15] - ALLARD, Julie; GARAPON, Antonie. Os Juízes na Mundialização: A Nova Revolução do Direito. Lisboa: Instituto Piaget, 2005, p. 7.
[16] - “Em primeiro lugar, os países onde o Estado de Direito foi instaurado mais recentemente se espelham, com frequência, na experiência de democracias mais sedimentadas. [...] O segundo fator envolve o compartilhamento de experiências entre as democracias mais maduras e tradicionais”. BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: a Construção de um Conceito Jurídico à Luz da Jurisprudência Mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 34, 35.
[17] -  Idem., p. 34.
[18] - SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: Teoria, História e Métodos de Trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 454: “[o]s aportes internacionais e do Direito Comparado são relevantes, mas há que se atentar sempre para as particularidades do nosso ordenamento constitucional positivo, para as especificidades do quadro empírico brasileiro, para os desígnios concretos de nosso povo”.
[19] - BEATTY, David. A Essência do Estado de Direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.
[20] - DANNEMANN, Gerhard. Comparative Law: Study of Similarities or Differences?, Op. cit., p. 384.
[21] - CHOUDHRY, Sujit. Migration as a New Metaphor in Comparative Constitutional Law. In: CHOUDHRY, Sujit. (ed.). The Migration of Constitutional Ideas. New York: Cambridge University Press, 2005, p. 1-35.
[22] - Doutorando em Direito Público pela UERJ. Mestre em Direito Constitucional pela UFMG. Professor Assistente da UFMA. Professor e Pesquisador da UNICEUMA. Foi Yale Law School Linkage (2015).
[23] - Mestre e Doutor em Direito Público pela UERJ. Professor-Adjunto de Direito Tributário da UERJ. Professor UCAM/FDC. Assessor de Ministro do STF. Advogado licenciado.
[24] -  Mestre e Doutorando em Direito Público pela UERJ. Mestrando em Direito (LL.M.) pela Harvard Law School. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Advogado.
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JOTA

Cortes supremas lidam com os mais variados e complexos problemas morais e políticos contemporâneos

JOTAMundo: A relevância dos estudos constitucionais comparativos

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