Vicente Braga

No subtítulo de seu livro recentemente publicado, Bruno Garschagen lança uma interessante provocação: por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o estado? Por que ao decidirmos “se” o estado deve fazer alguma coisa, não pensamos em “quem” vai fazer?
A provocação serve para diversos momentos da vida jurídica e o dia 15/10/2015 foi um desses.
Para entender a razão disso, algumas questões preliminares precisam ser esclarecidas. Passemos a elas.
Nesse dia, a convite da Câmara dos Deputados, reuniram-se no Congresso Nacional – mais especificamente na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio – para uma audiência pública os representantes de diversas entidades que, de um modo ou de outro, vivenciam o tema da autorregulação do mercado de capitais brasileiro.
A audiência pública, que contou com a participação de representantes de autoridades reguladoras e associações de classe que possuem iniciativas de autorregulação, foi convocada pelo edital de audiência pública fruto do requerimento nº 42/2015. No referido requerimento, a justificativa para a convocação questionou “se o atual modelo de autorregulação ainda se mostra adequado”, afirmou que a atual estrutura de autorregulação da Bolsa “apresenta riscos relevantes ao seu melhor funcionamento e devido cumprimento de sua função pública” e alegou que a essa estrutura “tem nos privado de um modelo autorregulatório com efetiva representatividade de participantes do mercado, de segurança jurídica suficiente e de mecanismos eficazes de combate a conflitos de interesses e a barreiras de entrada”.
Em termos teóricos, a regulação em sentido amplo se divide em hetero regulação e autorregulação. Como o próprio nome sugere, a primeira feita é por um agente externo ao ambiente regulado e a segunda por um agente que faz parte desse ambiente. No nosso modelo de estado, a figura da hetero regulação é tão predominante que mesmo sendo espécie, já tomou para si o nome do gênero (regulação), deixando com que apenas a autorregulação precise se diferenciar.
Mesmo assim, no âmbito do mercado de valores mobiliários brasileiro a autorregulação tem uma atuação forte, diferenciando-se internamente entre autorregulação de base legal e autorregulação de base contratual. O primeiro tipo diz respeito àquela autorregulação que, embora levada a cabo por um ente privado, tem em normas estatais a fonte de sua coercitividade. Um exemplo é a autorregulação da bolsa de valores. Já a autorregulação de base voluntária tem toda a sua coercitividade baseada no direito privado, em contratos que estabeleçam essa relação entre regulador e regulado. O exemplo mais notório sendo a autorregulação da indústria de fundos de investimento, levada a cabo por uma associação de classe.
A (hetero) regulação promovida pelo estado alega ser expressão do interesse público, em tese perseguido pelo poder executivo. Goza de um alto grau de coercitividade, mas tem, em geral, pouca flexibilidade em sua aplicação, estando bastante presa a procedimentos e previsões normativas cuja atualização é tarefa árdua. Além disso, não raro se ouvem críticas de que falta aos reguladores conhecimento de mercado para regular, bem como para prever os efeitos práticos de sua atuação.
Já a autorregulação é promovida com recursos privados e, naturalmente, busca concretizar os interesses da indústria, sejam esses quais forem (promoção de melhores práticas, profissionalização de serviços, criação de selos, proteção da confiança na indústria, etc.), desde que não conflitantes com a regulação estatal. Obviamente, goza de menor coercitividade, mas tem a seu favor uma estrutura que pode ser flexibilizada a fim de que se atinjam melhores resultados regulatórios. Além disso, por ser uma regulação feita pela indústria, para a indústria, há em tese um maior conhecimento técnico em sua formulação e uma previsão mais acurada de seus efeitos práticos.
Respondidas essas perguntas, voltamos à questão de por que a provocação de Garschagen serviu para o dia 15/10/2015.
O Brasil tem um estado grande, caro e que retorna poucos serviços à sua população. Mais do que isso, a visão geral é de que o estado, vez que ineficiente e com pretensões megalomaníacas, encontra-se com muitos problemas e poucos recursos – inclusive tempo – para resolvê-los. Curiosamente, contudo, em um momento como esse, ao invés de questionar como a nossa regulação estatal (leia-se “aquela que é paga com o dinheiro da população”) permitiu que a situação chegasse ao patamar que chegou na maior empresa do país – que ainda calha de ser uma estatal –, nosso Congresso parece mais preocupado em pensar formas de “regular” a autorregulação (leia-se: “aquela que é paga com dinheiro dos próprios participantes do mercado e que está sujeita a todas as leis vigentes”), para que ela cumpra uma “função pública” que, ao que tudo indica, a própria regulação estatal tem dificuldades em cumprir.
Justiça seja feita, esse não é um problema estritamente brasileiro. Afinal, conforme estudo desenvolvido recentemente demonstrou, a autoridade reguladora de valores mobiliários dos EUA maquia seus relatórios de produtividade. Relatórios esses que envolvem, inclusive, ironia das ironias, diversos processos por manipulação de relatórios de desempenho por parte de companhias abertas.
Assim, não há dúvidas de que o debate sobre a autorregulação é salutar. Não há dúvidas de que a autorregulação pode ser aprimorada – a revisão constante dos códigos dos principais autorreguladores do mercado brasileiro é prova disso. Contudo, há dúvidas sim, e muitas, sobre a competência do estado para impor esses aprimoramentos. A esperança, aqui, é que a sociedade (em suas diversas esferas), antes de decidir “se” quer regular a autorregulação, lembre-se de “quem” vai regular. Afinal, fazendo referência à exordial clássica da obra de Dickens que inspira o título deste artigo, e como os últimos anos do mercado de valores mobiliários brasileiro nos demostraram de forma assaz eloquente, a diferença entre a primavera da esperança e o inverno do desespero pode ser uma vírgula.