Marcio Valadares

Em meio à crise fiscal que assola o País, governantes e legisladores debatem a viabilidade de securitizar direitos creditórios dos entes da Federação. Espera-se que tal medida gere fluxo de caixa para União, Estados e Municípios e, assim, viabilize o cumprimento de obrigações e a realização de projetos políticos. Estimativas divulgadas pela imprensa apontam que, no plano federal, a securitização poderia injetar cerca de R$ 55 bilhões nos cofres estatais[1].
O atendimento dessas expectativas depende, contudo, da aptidão dos valores mobiliários frutos daquela operação financeira para despertar o interesse dos seus potenciais adquirentes. E a incerteza jurisdicional apresenta-se como um dos principais empecilhos – senão o principal – à atração de investidores e, em consequência, ao êxito da securitização.
O objetivo deste artigo é antecipar e debater uma objeção de ordem jurídica que se possa opor à proposta de emissão de papéis atrelados a direitos creditórios originalmente titularizados pela Administração Pública. Trata-se da alegação de que, por depender da cessão de créditos com deságio, a securitização violaria o princípio da indisponibilidade do interesse público, que condena a tomada de decisões autointeressadas pelos administradores. Um argumento nesse sentido presumiria que aquela operação necessariamente teria viés de curto prazo, isto é, geraria benefícios imediatos em sacrifício da estabilidade fiscal – e do bem-estar da população – no futuro. 
O termo securitização é um anglicismo derivado da expressão securities, ou valores mobiliários, e designa um processo resultante na emissão de títulos ou cotas. Para fins analíticos e com simplificações, tal operação pode ser dividida em duas etapas. Na primeira delas, o ocupante do polo ativo de uma série de obrigações (chamado de ‘originador’) cede seus créditos a uma sociedade de propósito específico (SPE) ou fundo de investimento em direitos creditórios (FIDC). A segunda etapa da securitização é a emissão de títulos ou cotas por SPE ou FIDC, respectivamente. Por meio da negociação desses papéis, que prometem a devolução do valor investido (principal) e o pagamento de remuneração (uma taxa de juros), os cessionários obtêm o dinheiro necessário para pagar o originador pela cessão de créditos. 
SPE e FIDC devem ser capazes de cumprir as obrigações assumidas em decorrência da emissão de valores mobiliários. Para que isso ocorra, é preciso que os seus passivos – cujos componentes principais são (i) a obrigação de pagar principal e juros aos adquirentes de seus valores mobiliários e (ii) o pagamento devido ao originador pela cessão de créditos – sejam iguais ou menores do que os seus ativos – formados pelos créditos de que são cessionários. A cessão de créditos com deságio é fundamental para que os valores mobiliários possam ser remunerados. 
Mas, afinal, negociar direitos creditórios com desconto pode ser vantajoso para a Administração ou é uma medida desaconselhável? Em linguagem jurídica mais tradicional: tal transação violaria o princípio da indisponibilidade do interesse público? 
Em primeiro lugar, é preciso ter presente que perguntas como essas contêm uma imprecisão. O deságio praticado na cessão de créditos não é a referência adequada para o cálculo da quantia financeira de que a Administração Pública irá dispor. A uma, porque o originador costuma adquirir parte dos valores mobiliários emitidos por SPE ou FIDC, pelo que receberá a remuneração relativa a eles. A duas, pois a Administração Pública pode ser paga pela SPE para executar o serviço de recebimento de prestações junto aos devedores da obrigação cedida. [2]
De qualquer maneira, com a securitização, parte do valor de face dos créditos da Administração será, de fato, destinada a terceiros. A opção pelo recebimento de um valor nominal menor no presente em detrimento de um maior no futuro atende a anseios imediatistas em sacrifício da estabilidade fiscal em horizontes de tempo mais amplos? 
Observadas determinadas precauções, a resposta é não. Uma troca como aquela pode gerar benefícios e se mostrar vantajosa para Administração Pública e administrados. Suponha-se que despesas especiais ou extraordinárias ameacem a capacidade de um ente da Federação cumprir suas obrigações. Admita-se, ainda, que o inadimplemento de algum de seus compromissos acarrete a exigência de encargos legais ou contratuais geradores de novas despesas e que o valor desses gastos seja superior àquele de que o ente disporia caso cedesse seus direitos creditórios. Em semelhante cenário, a securitização será válida se for o caminho menos custoso para habilitar a Administração a permanecer adimplente e evitar a exigência dos mencionados encargos.
Por outro lado, se os ganhos decorrentes do recebimento imediato não se sobrepuserem à quantia que a Administração deixará de receber, a securitização não será recomendável. Daí a importância da realização de análise do tipo custo-benefício, a fim de certificar a preservação do interesse público. Análises desse gênero devem ser submetidas a controle, para garantir que sejam funcionais e responsivas. E os instrumentos de accountability da securitização, que podem incluir outros mecanismos para assegurar o comprometimento de administradores, devem ser previstos em lei. Dessa maneira, a disciplina legal contribuirá para dissipar preocupações em torno da manutenção do equilíbrio fiscal no longo prazo. 
Em síntese, a securitização de direitos creditórios dos entes da Federação será válida quando se ampare em análises de custo-benefício passíveis de controle. A previsão em lei de instrumentos de accountability tem potencial para reduzir a incerteza jurisdicional da operação e aumentar seu retorno financeiro. Quanto ao cálculo dos custos da securitização, é preciso ter presente que o deságio praticado na cessão de direitos creditórios não é a referência adequada para se aferir o percentual do valor de face dos créditos que não serão destinados aos entes da Federação. 
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[1] Como aponta matéria publicada em Estadão em julho passado. O texto está disponível no seguinte endereço eletrônico <a href="http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,para-fazer-caixa-governo-quer-vender-dividas-que-tem-a-receber,10000062571">http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,para-fazer-caixa-governo-quer-vender-dividas-que-tem-a-receber,10000062571</a>. Acesso em 5 de setembro de 2016.
[2] É comum que as SPEs remunerem os originadores por esse serviço. Cf. Philip Wood. The Law and Practice of International Finance. University Edition. Sweet &amp; Maxwell, Londres, 2008. No modelo proposto pelo Projeto de Lei do Senado n. 204, de 2016 – Complementar, do Senador José Serra, a Administração Pública permanece responsável pela execução judicial de créditos após sua cessão.

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JOTA

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Securitização de direitos creditórios estatais e incerteza jurisdicional

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