Gabriel Felipe Nami Inácio

A democracia e a liberdade de expressão são temas recorrentes em diversos estudos e debates, sendo que os diversos autores discordam, por exemplo, quanto à justificativa para cercear ou não liberdades em prol de determinado modelo de democracia. Desse modo, passa-se à análise da justificativa histórica da valorização da liberdade de expressão nos Estados Unidos e também do pensamento de Jeremy Waldron.
Em sua obra “The harm in hate speech”, o autor realiza um raciocínio histórico inicial, segundo o qual se observa que o pecado da blasfêmia exigia que as cortes encontrassem uma maneira de compreender o Cristianismo como indispensável aos governos. Na metade do século 19, as cortes americanas não obtiveram sucesso e interromperam as perseguições judiciais por blasfêmia, tendo em vista que o Cristianismo deixou de integrar a organização do controle social exercido pelo Estado.
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A partir disso, o poder do Estado começou a ser visto, nos Estados Unidos, como uma ameaça ao indivíduo. Dessa forma, com a Convenção Internacional de Direito Civis e Políticos, mais especificamente em razão de seu artigo 20 (2)<a href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>, vários países promulgaram leis que proíbem expressões que incitem a violência, hostilidade ou discriminação, criando restrições aos discursos proferidos pelas pessoas.
<blockquote class="jota-article__eye">Nesse sentido, têm-se que a proibição de discursos de ódio pode representar uma vantagem à democracia, uma vez que tais discursos podem instigar as massas ao ódio contra determinadas pessoas, as quais poderão ter a sua própria liberdade de expressão restringida em razão do ódio em massa causado por um discurso público.</blockquote>
Além disso, discursos de ódio não poderiam prejudicar a igualdade, uma vez que, se não regulados, poderiam ser utilizados como justificativas de exclusão.
Com efeito, uma democracia liberal deve proteger o respeito mútuo em detrimento de ataques violentos e exclusões. Waldron ainda afirma que a razão histórica de tal afirmação é explicada pela experiência europeia com o holocausto.
Nesse contexto, a difamação e os demais crimes contra a honra, por exemplo, interferem na possibilidade de um grupo ou de pessoas difamadas viverem em paz e alçarem harmonia social, tendo por corolário uma sociedade desordenada.
Waldron utiliza ainda os princípios fundamentais abstratos de John Rawls para afirmar a necessidade de uma sociedade orientada por uma “razão pública”: um discurso respeitoso e mutuamente compreendido em matéria de senso comum.
Além disso, o autor afirma, na esteira de Rawls, que uma sociedade bem-ordenada é uma sociedade na qual cada um aceita e sabe que todos aceitam o mesmo princípio de justiça. Em outras palavras, para Rawls, uma sociedade bem ordenada é aquela na qual há um consenso de justiça.
Waldron afirma que as leis contra o discurso de ódio são fundamentadas não em detalhes controversos de uma concepção de justiça favorita de alguém, mas sim nos fundamentos de justiça: que todos são pessoas dotadas de dignidade e merecem proteção contra qualquer forma de violência, exclusão, indignidade e subordinação.
Desse modo, a difamação contra grupos e o discurso de ódio nega essa premissa fundamental de justiça. Nas palavras de Waldron (2012, p.85):
A dignidade de uma pessoa não é apenas um fato decorativo sobre o indivíduo. É uma questão de status e em grande parte normativa: é algo que permite a uma pessoa exigir respeito dos outros e do Estado.
Ora, à luz da teoria do referido autor, é possível verificar que a decisão do Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº. 26, ao equiparar a homotransfobia ao crime de racismo, encontra amparo nos pilares fundamentais da democracia: a dignidade da pessoa humana e a liberdade de expressão.
<blockquote class="jota-article__eye">Isso porque não há liberdade de expressão sem dignidade e vice-versa. Sendo ambas as normas fundamentais à democracia, é possível inferir que não existe conflito entre ambas, mas sim exercício de complementariedade.</blockquote>
Destarte, uma sociedade democrática deve possuir um interesse sistêmico e estrutural na preservação da dignidade humana, sendo que o papel do Poder Legislativo é criar obrigações que dificultem a violação desse bem público (a dignidade) por meio de discursos de ódio e difamação de grupos minoritários. O discurso de ódio não apenas mina o bem público, mas cria um bem público rival.
Portanto, observa-se que dois argumentos de Jeremy Waldron têm o condão de justificar e explicar a manifestação democrática no controle de constitucionalidade realizado pelo Supremo no âmbito da ADO nº. 26. O primeiro sustenta que cada indivíduo deve aceitar que a sociedade não é tão somente para ele, mas também para outras pessoas com opiniões, pensamentos e modos de vida diversos.
Com efeito, cada pessoa deveria ter a garantia de não ser discriminada para viver sua vida em paz, sem exclusão ou preconceito. Além disso, as pessoas em geral, incluindo as que foram marginalizadas no passado, possuem o aparato básico necessário para serem tratadas e respeitadas pelos demais: a dignidade (WALDRON, 2012).
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<h3>Referências</h3>
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade Por Omissão nº 26.
WALDRON, Jeremy. The harm in hate speech. Cambridge: Harvard University Press, 2012.
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<div id="sdfootnote1">
<a href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> CIDH, Artigo 20 (2): “Toda a apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade ou à violência estará proibida por lei.” Cf.: <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm">http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm</a>
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JOTA

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