André Mendes Moreira

Fernando Daniel de Moura Fonseca

Aluizio Porcaro Rausch

No início de março, o Supremo Tribunal Federal (STF), julgando o Recurso Extraordinário nº 851.108 (Repercussão Geral), decidiu, por sete votos a quatro, pela não incidência do ITCMD sobre doações e heranças provenientes do exterior<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Em síntese, os fatos do caso concreto envolviam: (i) um transmitente testamentário residente/domiciliado na Itália, sem residência/domicílio no Brasil; (ii) uma receptora residente/domiciliada no Brasil; (iii) um bem imóvel localizado na Itália e uma quantia em euros depositada em uma conta bancária italiana; e (iv) lei do Estado de São Paulo prevendo a incidência de ITCMD sobre heranças e doações quando o bem fosse localizado ou o transmitente fosse residente/domiciliado no exterior (ambas as condições eram satisfeitas no caso concreto). 
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>Nos termos do voto vencedor do ministro Relator Dias Toffoli, os estados e o Distrito Federal ficam impedidos de tributar as heranças e doações do exterior dada a inexistência de lei complementar regulando a incidência de ITCMD nesses casos<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Ademais, conforme entendimento do ministro Roberto Barroso, cujo voto foi vencedor por maioria de nove quanto à modulação de efeitos, a decisão deve produzir efeitos (A) ex nunc a contar da publicação do acórdão e (B) para as ações judiciais em curso anteriormente à publicação do acórdão do STF em sede de repercussão geral.
A decisão possui implicações de relevo, que deverão orientar a edição de futura lei complementar sobre a matéria. A seguir, far-se-á análise dos pontos que merecem atenção face à ratio decidendi, com base em cenários hipotéticos (embora passíveis de ocorrência na prática) que levam em conta: (1) o local de residência/domicílio do transmitente, (2) o local de situação do bem, e (3) o local de residência/domicílio do receptor. Confira-se.
Primeiro cenário: transmitente residente/domiciliado e bem situado na mesma Unidade Federativa. Este cenário é o mais simples. Aqui não há risco de conflito de competência entre estados e Distrito Federal, muito menos com jurisdição estrangeira, porque ambos os elementos principais de conexão – isto é, (1) e (2) – dizem respeito a uma única Unidade Federativa.
Segundo cenário: transmitente residente/domiciliado em Unidade Federativa diferente daquela de situação do bem. Neste segundo cenário, existe potencial conflito de competência entre estados e Distrito Federal, porque há elemento de conexão tanto com a Unidade Federativa de residência/domicílio do transmitente quanto com a Unidade Federativa de situação do bem.  Reconhecendo essa potencialidade, a própria Constituição (art. 155, §1º, I e II) prevê solução mediante exclusividade de tributação de acordo com a natureza do bem: se bem imóvel e direitos reais correlatos, prevalece a Unidade Federativa de situação do bem; se bem móvel, inclusive títulos e créditos, prevalece a Unidade Federativa onde se processa o inventário ou arrolamento<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> ou o doador tiver domicílio. Portanto, aqui, também não há risco de dupla tributação (ademais, tampouco qualquer jurisdição estrangeira é envolvida).
Terceiro cenário: transmitente residente/domiciliado no Brasil e bem situado no exterior.  Este terceiro cenário não corresponde aos fatos que deram causa ao RE nº 851.108. Contudo, também está abrangido pela decisão, dada a exigência constitucional de lei complementar reguladora.
Seja como for, observe-se que, no segundo cenário, o risco de conflito de competência entre Unidades Federativas decorrente da multiplicidade dos elementos de conexão não se concretiza, porque a própria Constituição o previne mediante exclusividade de tributação.  Neste terceiro cenário, contudo, haveria, sim, concorrência concreta entre a Unidade Federativa de residência/domicílio do transmitente e a jurisdição estrangeira em que situado o bem, porque ambas possuem elemento de conexão com o fato gerador.
Isso, claro, caso existissem, para a Unidade Federativa de residência/domicílio, lei complementar e lei estadual ordinária prevendo a tributação (como manda a Constituição), e, para a jurisdição estrangeira, semelhante autorização de tributação em conformidade com as normas forâneas aplicáveis. Assim, do ponto de vista brasileiro, a partir do momento em que vigente lei complementar regulando o ITCMD sobre heranças e doações do exterior, concretiza-se a concorrência tributária.
Supondo que fosse cumprido o apelo do ministro Roberto Barroso para que o Congresso Nacional supra a referida ausência de lei complementar<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, a concorrência tributária, neste terceiro cenário, existiria na interação com inúmeras jurisdições estrangeiras. Afinal, o Brasil não é único em tributar de heranças e doações. Assim, tanto a Unidade Federativa de residência/domicílio do transmitente quanto a jurisdição estrangeira tributariam a mesma transferência de bens. Também concretizando-se, portanto, a dupla tributação decorrente da concorrência tributária.
Haveria aqui, então, pelo menos três métodos possíveis para a prevenção de dupla tributação neste caso: (a) a Unidade Federativa competente prever isenção de ITCMD; (b) o Brasil celebrar tratado sobre heranças e doações com a jurisdição estrangeira; ou (c) a mesma lei complementar prever creditamento/dedução do tributo estrangeiro contra o ITCMD incidente. Entende-se que os métodos (a) e (b) não são realistas, respectivamente porque: se a tributação já é tentada mesmo sem lei complementar autorizadora, é de se imaginar que os Estados e Distrito Federal não se conteriam após a existência desta; e tratados sobre heranças e doações não são internacionalmente populares, tampouco no Brasil que, atualmente, não possui algum que esteja vigente.
Logo, o método (c), a previsão de creditamento/dedução do tributo estrangeiro, parece o mais acertado, especialmente porque unilateralmente implementável; de aplicação nacional e independente da benesse direta dos Estados e do Distrito Federal; e abrange todas as possíveis interações com jurisdições estrangeiras.
Vale notar que o risco de dupla tributação, neste caso, não é mera conjectura acadêmica. Veja-se, por exemplo, o Projeto de Lei Complementar nº 363/2013, pronto para apreciação pelo Plenário da Câmara dos Deputados, que expande o âmbito de incidência do ITCMD para heranças e doações do exterior sem prever qualquer método para se evitar a dupla tributação naturalmente decorrente.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Quarto cenário: transmitente residente/domiciliado e bem situado no exterior. Este quarto cenário é exatamente correspondente aos fatos do RE nº 851.108. Observe-se que, aqui, o único nexo tributário com o Brasil é a residência/domicílio do receptor, fator este que, nos outros três cenários, era irrelevante. Logo, não parece exagero afirmar que a residência/domicílio do receptor é nexo tributário residual, especialmente considerando que diversas jurisdições estrangeiras não o empregam. De todo modo, o RE nº 851.108 também afasta a incidência de ITCMD neste quarto cenário. Contudo, caso lei complementar venha a permiti-lo, as observações feitas acima sobre dupla tributação e métodos para combatê-la são inclusive pertinentes aqui.
Além dos quatro cenários e considerações acima, existem outros aspectos importantes a serem contemplados. O RE nº 851.108 é silente quanto à situação em que o transmitente residente/domiciliado no Brasil detém participação societária em uma holding estrangeira. Essa participação societária, quando por si só analisada, claramente deve ser considerada bem no exterior para fins de ITCMD. Isso porque, da perspectiva brasileira, as ações, quotas, equity, etc., dessa holding estrangeira são bens móveis cujo local de situação é o de registro/constituição da holding<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
No entanto, caso o local de situação dos bens detidos por essa holding estrangeira seja o Brasil, seria permitido desconsiderar a relação direta entre o transmitente e a entidade, olhar através da personalidade jurídica e fazer incidir o ITCMD sobre os bens localizados no país? Talvez a resposta a essa pergunta requeira perguntas adicionais: a entidade estrangeira é meramente uma holding ou possui também atividades operacionais?;  tem fundamentação negocial legítima ou foi empregada exclusiva ou eminentemente para afastar o ITCMD?;  está localizada em paraíso fiscal? Seja como for, na hipótese de futuramente haver lei complementar regulando a incidência de heranças/legado e doações do exterior, este são pontos importantes sobre os quais ela igualmente deveria versar.
Por fim, diferentemente do estado de São Paulo, nem todas as Unidades Federativas possuem normas de incidência de ITCMD em relação ao terceiro e quarto cenários.  Logo, quanto a essas Unidades Federativas, atualmente bastaria encerrar a residência/domicílio em seu território para se afastar a tributação.
A jurisprudência brasileira, contudo, contém casos de incidência do ITCMD em decorrência de simulação quanto a esse encerramento, isto é, a pessoa falsamente representa não mais residir naquela Unidade Federativa exclusivamente para evitar a tributação ali . Estes casos, porém, não são, em última análise, um cenário adicional, mas meramente uma recaracterização da narrativa defendida pelo contribuinte, o que leva a enquadramento no primeiro ou no segundo cenários.
Em conclusão, caso lei complementar seja promulgada para suprir as lacunas indicadas no RE nº 851.108, o diploma igualmente deverá versar sobre contramedidas à dupla tributação que certamente adviria dessa incidência adicional do ITCMD, e sobre as consequências em relação às holdings estrangeiras. Do contrário, o legislador complementar, buscando resolver um problema, criaria outros que são desde já previsíveis e, portanto, solucionáveis.
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O episódio 55 do podcast Sem Precedentes discute o silêncio do STF diante da crise militar do governo Bolsonaro. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=WAU2xWiR5DQ&list=PLfhZjWODW9JVuLFe6U_ulxCduBHTeECHC&index=1
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Os votos já publicados podem ser acessados pelo seguinte link: <a href="http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4667945">http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4667945</a>.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (“CRFB”), art. 155, §1º, III, “a” e “b”.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Pela regra geral, a UF competente, nestas hipóteses, é a do foro de domicílio do transmitente – CPC art. 48.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> “11. Faço ainda um apelo ao Poder Legislativo para que supra tal omissão e discipline a matéria do art. 155, § 1o, III, da Constituição, por meio de lei complementar. Não posso deixar de destacar que estamos diante de uma situação de clara tensão entre a Justiça tributária e a reserva de lei, que demanda a atuação do legislador.”  Trecho do voto do Ministro Roberto Barroso.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> “Art. 1º A competência para a instituição e cobrança do ITCD (...) será exercida nos seguintes termos: (...) III – nos casos em que houver conexão relevante com o exterior: a) pelo Estado onde for domiciliado ou residir o donatário, se o doador tiver domicílio no exterior, ou o Distrito Federal; b) pelo Estado onde tiver domicílio ou residir o herdeiro, se o de cujus tiver seu inventário ou arrolamento processado no exterior, ou o Distrito Federal; c) pelo Estado onde se processar o inventário ou arrolamento, se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado no exterior, ou o Distrito Federal”. Disponível em: <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01r2nt4k2pachx1je31xthihul838642.node0?codteor=1200985&amp;filename=PLP+363/2013">https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node01r2nt4k2pachx1je31xthihul838642.node0?codteor=1200985&amp;filename=PLP+363/2013</a>.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, arts. 8º, 9º e 11.

itcmd

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JOTA

Decisão do STF possui implicações de relevo, que deverão orientar a edição de futura lei complementar sobre a matéria

ITCMD e bens no exterior: considerações sobre o RE nº 851.108

ITCMD: decisão do STF possui implicações de relevo, que deverão orientar a edição de futura lei complementar sobre a matéria