Alberto Esteves Ferreira Filho

Andreia de Andrade Gomes

Diálogo, não tão fictício, entre João e Maria: – Pode usar, é folclore! – Mas você não sabe que foi o índio que fez? – Imagina, é domínio público, autor desconhecido, pode copiar, coloca aí!
Lamentavelmente, essa é uma conversa muito comum. Há quem pense que as criações indígenas são criações sem autor e, consequentemente, sem proteção. Não é bem assim.
A Lei de Direitos Autorais (LDA) indica que são de domínio público as obras de autor desconhecido, ressalvando expressamente a proteção legal de conhecimentos étnicos e tradicionais. Ao mesmo tempo, a mesma lei categoriza que um autor é uma pessoa física.
No caso da lenda do Saci, embora saibamos que é folclore brasileiro, não sabemos quem a criou e a contou pela primeira vez. Assim, ela pode ser objeto de uma produção cinematográfica, sem que seu diretor tenha que se preocupar em buscar o autor da lenda.
Nas obras indígenas, entretanto, temos uma peculiaridade, já que o autor não é desconhecido como no caso de uma lenda folclórica, mas tampouco é uma pessoa física. O autor é, originariamente, um coletivo étnico.
Embora certamente um índio possa praticar atos próprios, inclusive criar algo individual, o coletivo é visto como um aspecto de unicidade e não de pluralidade reunida. A aplicação e a força do conceito de grupo entre etnias indígenas são diferentes daquele usado em nossa sociedade caraíba (brancos, não índios).
Segundo a historiadora e indigenista, Maria Eduarda Souza, apelidada de Duda Kamayurá pela etnia de mesmo nome, “a referência indígena não é um atributo individual, mas um movimento coletivo que mantêm laços históricos culturais com as organizações sociais indígenas pré-colombianas. Há indivíduos indígenas porque eles são membros de comunidades indígenas, e não o inverso”.
Já na LDA “caraíba”, o conceito de obra coletiva é de uma criação feita por iniciativa de uma pessoa que reúne participações de diferentes autores, fundindo-as em uma criação autônoma. Como acontece numa coletânea, por exemplo. Entre nós, o coletivo é aplicado como uma união de pessoas, que podem ser individualizadas.
Enquanto isso, o Estatuto do Índio prevê a aplicação das normas caraíbas aos índios dentro de suas especificidades. Esse mesmo aspecto é também objeto, dentre outras normas, da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, ratificado e internalizado no Brasil. A convenção expressamente indica que a aplicação da legislação nacional para os povos indígenas deverá levar em consideração os seus costumes.
Dessa forma, negar a existência de um direito autoral indígena através de um coletivo originário, justificando-se pela mera existência de um dispositivo da LDA que qualifica o autor como “pessoa física”, seria tão questionável quanto restringir casamento de pessoas do mesmo sexo em razão da estrita redação de nosso Código Civil.
Concebendo a arte indígena como obra protegida por direito autoral, deve ser lembrado que seu uso por terceiros depende de autorização. As formas de representação dos povos, assim como da obtenção das autorizações são variáveis caso a caso, de acordo com cada costume específico. Especialmente no Brasil, que reúne diversas comunidades indígenas de diferentes etnias, essa questão é complexa e ainda demanda acompanhamento e reflexões por parte de especialistas.
Todavia, uma coisa é certa: uma pesquisa no Google, que busca uma obra indígena a ser copiada, poderia encontrar a sua origem, da mesma forma. A impossibilidade de localizar o povo criador ou de obter sua autorização não é justificativa válida para permitir o livre uso. Ou você acha que, por não conseguir contatar a Walt Disney, o filme Pocahontas se tornaria domínio público?

Bolas de cipó

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JOTA

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