Márcio Monteiro Reis

Há alguns dias, durante cerimônia oficial realizada no Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro afirmou estar em estudo a edição de um decreto para garantir o exercício dos direitos fundamentais dos cidadãos, como o direito de ir e vir, a liberdade de culto e a liberdade de trabalho<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
A irresignação do presidente tem alvo nas medidas que vêm sendo adotadas por governadores e prefeitos, desde o início da pandemia, com o objetivo de conter a disseminação do vírus Sars-Cov-2, como o fechamento de comércio e de outras atividades econômicas, restrição de circulação e uso de espaços públicos, uso de máscara e outras medidas restritivas das liberdades individuais.
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Segundo as palavras do presidente, a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em abril do ano passado, teria sido uma “excrescência”, por permitir o exercício de “competências esdrúxulas” aos governantes locais. Daí sua disposição de editar um decreto para reforçar tais direitos constitucionais, o que ele próprio qualificou como um “pleonasmo”, asseverando que, caso o decreto seja editado, ninguém deveria ousar descumpri-lo.
A ideia de usar um decreto para reforçar um comando constitucional equivaleria a pretender reforçar com gesso uma laje de concreto, razão pela qual não merece maiores considerações. Igualmente não se justifica a pretensão de que um decreto não possa ser questionado. Decretos são atos administrativos provenientes dos chefes de Poder Executivo. Normalmente têm cunho normativo e, neste caso, podem ser sustados pelo parlamento, quando exorbitem do poder regulamentar. No caso de um decreto presidencial, pelo Congresso Nacional, por força do disposto no artigo 49, V da Constituição. É sempre possível também a sua anulação pelo Poder Judiciário, a quem pode recorrer todo aquele que tiver seu direito lesado ou ameaçado, como estabelece o próprio artigo 5º da Constituição, em seu inciso XXXV.
De todo modo, é importante compreender como funciona, especialmente no que se refere às medidas necessárias para o enfrentamento à pandemia, o exercício do poder do Estado e o jogo federativo de distribuição desses poderes.
Inicialmente, é importante recordar que o inciso II do artigo 5º da Constituição estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude lei. Como se vê, ao passo que protege a autonomia e as liberdades individuais, a Constituição também admite a sua limitação por meio das leis, aprovadas nos parlamentos pelo voto dos representantes do povo.
Nesse sentido, não há dúvida sobre a garantia do direito de ir e vir, mas se o cidadão quiser se deslocar conduzindo um carro, deverá se habilitar previamente a dirigir e obter a sua carteira de motorista. É o que exige o Código de Trânsito, uma lei devidamente aprovada.
O exercício das profissões também é livre, mas algumas delas são regulamentadas e exigem a inscrição no conselho respectivo como uma condição inescapável. É o que ocorre com as profissões de médico, engenheiro, advogado, profissional de educação física, farmacêutico, economista, dentre tantas outras.
Todos são livres para realizar atividades econômicas, mas quem abre um bar ou um restaurante deve atender às regras estipuladas na legislação de vigilância sanitária e, caso as descumpra, poderá ser multado e até ver o seu estabelecimento interditado.
Para o combate à pandemia, o Supremo Tribunal Federal já decidiu, no julgamento da ADPF 672<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, que a Lei nº 13.979/2020 — resultado da conversão em lei da medida provisória 926, editada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro — autoriza a adoção de uma série de medidas restritivas, dentre as quais “a imposição de distanciamento ou isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos”.
A adoção dessas medidas, portanto, não significa desrespeito ao regime constitucional de proteção aos direitos e liberdades individuais. Mesmo porque, diante da tragédia atualmente vivenciada no Brasil, em que milhares de vidas se perdem todos os dias em decorrência da Covid, e diante das constantes recomendações de médicos e cientistas diversos quanto às providências necessárias para conter a disseminação desse vírus, parece difícil caracterizar decisões deste tipo como absurdas ou irrazoáveis.
Mas a maior irresignação do presidente parece advir de uma sensação de usurpação do seu próprio poder. Deveria ser dele a decisão de quais medidas adotar e quando adotá-las e não de autoridades locais. Daí o enorme aborrecimento que frequentemente demonstra quanto ao teor do que decidiu o Supremo, em abril do ano passado, no julgamento da ADI 6341<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, quando reconheceu os poderes de governadores e prefeitos para adotar, no âmbito dos entes que governam, as medidas que entenderem cabíveis para a contenção sanitária da pandemia. Sua irritação, no entanto, não se justifica.
Não é difícil compreender a decisão da Suprema Corte. Antes de mais nada, se funda no fato de que a Constituição estabelece, em seu artigo 23, como competência comum, a ser exercida tanto pela União, como por Estados e Municípios, as ações de proteção à saúde da população. Há que se considerar, no entanto, que ao adotarem medidas restritivas de liberdade e do exercício de atividades econômicas, as autoridades públicas devem buscar preservar ao máximo a autonomia dos indivíduos. A intervenção estatal deve ser a mínima necessária para atingir as finalidades de interesse público.
Assim, além do exercício de uma função de coordenação dos esforços federativos, com indicação de critérios e parâmetros que possam ser seguidos de modo uniforme pelas autoridades locais ou de ações necessárias para preservar o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, cabe ao presidente da República impor aquelas medidas restritivas que devam ser aplicadas em todo o território nacional. Pode-se referir, assim, como medidas que seriam esperadas em um decreto federal, a determinação do uso obrigatório de máscaras, a proibição de realização de eventos com aglomeração ou de reuniões que envolvam presença de um grande número de pessoas.
Tendo em vista o tamanho continental do país, no entanto, com enormes diversidades, pode não ser considerada como justificável uma decisão de completo fechamento da economia nacional. Já no plano local, isso pode se revelar necessário. Recentemente, o prefeito de Araraquara adotou medida deste tipo em seu município, com sucesso na reversão de uma tendência de colapso da rede municipal de saúde<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Diante de uma crise local mais profunda, incumbe, portanto, ao governante local uma ação mais intensa. Essas medidas mais duras devem ser tomadas apenas onde, de fato, se revelem imprescindíveis.
Por exemplo, quando ocorreu uma crise de gravidade épica no fornecimento de oxigênio em Manaus, diante de uma tragédia humanitária que se avizinhava, talvez fosse justificável uma decisão do governador de fechar as estradas e hidrovias do Estado, de modo a impedir que a nova cepa do vírus se alastrasse e chegasse ao interior e a outros estados. Já o prefeito poderia ter decretado um lockdown rigoroso, fechando totalmente a economia, deixando apenas serviços essenciais em funcionamento. Por outro lado, provavelmente não fizesse sentido fechar a economia no Estado todo. Se o isolamento da cidade de Manaus fosse bem sucedido e os índices de contágio das demais cidades permanecesse sob controle, as atividades econômicas podiam manter o mesmo regime então vigente.
<blockquote class="jota-article__eye">As decisões mais restritivas devem ser tomadas no nível local, onde as autoridades competentes têm condições de avaliar melhor os dados e decidir se as restrições já existentes nos planos federativos superiores são suficientes ou se devem, na área do Estado ou do Município, ser intensificadas.</blockquote>
Obviamente, seria ineficiente, se não impossível, pretender que o presidente da república acompanhasse a evolução dos dados em cada um dos 5.570 municípios do país e atualizasse diariamente as medidas a serem adotadas em cada localidade.
Considerando um regime constitucional que assegura autonomia e liberdade aos indivíduos e distribui poderes estatais por três planos federativos, a lógica não poderia ser diferente. As medidas adotadas pelos entes federativos superiores devem ser mais genéricas e mais brandas, de modo a não impor restrições a áreas do país onde não seriam necessárias. As peculiaridades regionais e locais devem ser tratadas pelas autoridades de cada ente federativo, aplicando restrições mais intensas apenas onde justificáveis, à luz da realidade local e conforme as informações e conhecimentos científicos disponíveis.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Entre diversos outros veículos de mídia, a notícia foi veiculada em https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-ameaca-editar-decreto-para-garantir-direito-de-ir-vir-avisa-nao-ouse-contestar-1-25003978.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> STF, ADPF 672 MC-Ref, Relator Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 13/10/2020, DJe-260, publicado em 29/10/2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> STF, ADI 6341 MC-Ref, Relator p/ Acórdão: Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 15/04/2020, DJe-271, publicado em 13/11/2020.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-04/covid-19-prefeitura-diz-que-lockdown-foi-positivo-em-araraquara

Presidente Jair Bolsonaro

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JOTA

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