Olavo Evangelista Pezzotti

Fábio Ramazzini Bechara

O Projeto de Lei nº 8.045/2010, que tramita na Câmara dos Deputados e visa instituir o novo Código de Processo Penal, recebeu formalmente, no dia 26 de abril de 2021, novo texto substitutivo, apresentado pelo relator, deputado João Campos<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Entre outros temas, a proposta introduz a denominada “investigação defensiva”, sustentada nas garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, desde a fase pré-processual.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Embora se reconheça a importância da matéria e não se negue a necessidade de regulamentação, a redação proposta revela problemas teóricos e vícios de constitucionalidade à luz do devido processo legal, notadamente nos pontos que expressam quebra da paridade de armas, usurpação de funções constitucionais da polícia judiciária e do Ministério Público, violação à garantia do procedimento – com potenciais ofensas a direitos de vítimas e testemunhas – e, igualmente, pela redução de eficácia da vedação constitucional das provas ilícitas.
No que se refere à paridade de armas, tem-se que o projeto de lei trata de forma desequilibrada a investigação defensiva e a investigação oficial. Isso porque o texto isenta a investigação privada de qualquer tipo de controle, diferentemente do que ocorre com os procedimentos promovidos pelos órgãos estatais de persecução penal, que se sujeitam a procedimentos claramente desenhados pela legislação, especialmente se houver perspectiva concreta de restrição a direitos fundamentais.
As investigações conduzidas pela Polícia e pelo Ministério Público passam por constante escrutínio do Poder Judiciário, do próprio investigado e até mesmo da vítima. E mais, a Polícia está sujeita ao controle externo do Ministério Público, assim como o Ministério Público está sujeito ao controle externo do Conselho Nacional do Ministério Público.
Nesse sentido, instituem mecanismos de controle sobre as investigações oficiais: a) o art. 129, VII, da Constituição Federal; b) o art. 41, VIII, da Lei nº 8.625/93; b) o art. 3º, bem como o art. 9º da Lei Complementar nº 75/93; c) o art. 10, §3º, e o art. 17, ambos do Código de Processo Penal vigente; d) os parâmetros estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal, em regime de repercussão geral, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 593.727 (STF. Tribunal Pleno. Relator min. Cezar Peluso; redator do acórdão min. Gilmar Mendes. Julgamento em 14/05/2015), que impõem a submissão do Procedimento Investigatório Criminal à fiscalização do Poder Judiciário; e) a Resolução nº 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público; f) os próprios dispositivos do projeto em questão, nos pontos correlatos às competências do juiz das garantias (art. 15 e seguintes).
<blockquote class="jota-article__eye">Não existe no direito brasileiro, como se vê, investigação criminal desprovida de controle, isenta do acompanhamento do Poder Judiciário.</blockquote>
De forma contrastante, o sistema de investigação que se projeta no substitutivo não se submeterá a qualquer mecanismo de controle, o que se extrai da simples leitura do art. 48, parágrafo único, da proposta:
Art. 48 [...] 
Parágrafo único. O advogado, o defensor público e os outros profissionais que prestarem assistência na investigação não têm o dever de informar à autoridade judicial ou policial os fatos investigados defensivamente.
Ao afastar a fiscalização judicial, a redação abre espaço para o cometimento de abusos, pelo simples de fato de que a investigação será realizada sem qualquer controle e sem qualquer prévia definição em relação ao procedimento que deverá observar, o que acaba por comprometer a paridade de armas, a pretexto de se provar inocência.
O projeto de lei, no mesmo parágrafo único do artigo 48, legitima a usurpação das funções constitucionais da polícia judiciária e do Ministério Público, ao permitir que os advogados investiguem quaisquer fatos, independentemente daqueles que constituem objeto de uma investigação oficial ou ação penal em curso.
O limitador de fato natural da investigação defensiva deve coincidir com o objeto da investigação criminal ou da ação penal ajuizada, não havendo qualquer espaço para legitimar a possibilidade da investigação defensiva sobre objetos diversos, ao menos no processo penal.
Se a intenção fosse permitir a investigação defensiva mais ampla, proativa, como ocorre no âmbito corporativo, no contexto dos programas de integridade, por exemplo, a sua regulação não deveria ocorrer na legislação processual penal, mas sim nas leis de defesa da concorrência e anticorrupção, as quais tratam do tema de forma específica.
Sem balizamentos e limites claros, portanto, a investigação defensiva pode se alargar para alcançar fatos e elementos que não se fazem presentes na investigação oficial, o que certamente colocaria em perigo os direitos dos seus potenciais alvos.
Nesse caso, o art. 48, parágrafo único, ofenderia o disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, por excluir da apreciação do Poder Judiciário instrumento caracterizador de lesão ou ameaça de lesão a direitos fundamentais.
Não se presta a afastar o alegado vício de constitucionalidade o argumento de que a ausência de informação espontânea do advogado ou do defensor público ao Poder Judiciário não impediria insurgências dos titulares dos direitos ameaçados.
Por não prever formalidades mínimas, o modelo proposto também viola a garantia do procedimento. Terceiros interessados dificilmente conheceriam as práticas investigatórias que poderiam afetá-los. Sem registros dos atos, também restaria impossibilitado um controle judicial efetivo, mesmo quando acionado Poder Judiciário.
Ademais, a proposta não tutela adequadamente os direitos fundamentais de vítimas e testemunhas que podem ser alcançadas pela investigação defensiva. Nas investigações relacionadas a crimes violentos e delitos sexuais, por exemplo, a simples tomada de depoimentos, mesmo que em ambiente seguro, pode sujeitar o ofendido a um processo de “revitimização” ou de “vitimização secundária” (BITENCOURT, Luciane Potter. A vitimização secundária de crianças e adolescentes e a violência sexual intrafamiliar. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de Direito, PUC-RS, Porto Alegre, 2007).
Por essa razão, entre outros diplomas que protegem essas categorias, a Lei nº 13.431/2017 estabelece procedimentos especiais para a tomada de “depoimentos sem dano” de crianças e adolescentes que sejam vítimas de crimes sexuais.
Na contramão, o projeto em análise não retira do alcance da investigação defensiva quaisquer vítimas ou testemunhas, as quais poderão ser chamadas a depor pelo defensor do imputado, nos moldes do art. 47, independentemente da natureza do crime investigado ou de procedimentos de cautela.
Mesmo que o advogado atue com a esperada boa-fé na condução de tal atividade, a simples intervenção defensiva direcionada direta e pessoalmente à vítima ou à testemunha, sem qualquer intermediação do Estado, tende a causar grande temor naqueles que vivenciaram ou testemunharam crimes sexuais ou violentos, ofendendo direitos dessas pessoas e prejudicando a higidez da atividade probatória a ser desenvolvida futuramente em juízo.
Para fins de comparação, nos ordenamentos jurídicos que já contam com modelos de investigação defensiva, vítimas e testemunhas recebem proteção contra os reflexos negativos que podem decorrer da atividade investigatória privada.
No Codice di Procedura Penale italiano, por exemplo, assegura-se que as pessoas já ouvidas pelas autoridades estatais não serão questionadas sobre as perguntas que lhes tenham sido formuladas ou sobre as respostas que tenham dado (art. 391-bis, comma 4).
Igualmente, é possível que as autoridades estatais proíbam por tempo limitado que pessoas ouvidas na investigação oficial prestem declarações relacionadas a fatos ou circunstâncias que são objeto de investigação, protegendo tanto a integridade da investigação do Estado quanto as vítimas e as testemunhas que poderiam ser negativamente atingidas pela revelação precoce de fatos (art. 391-quinquies).
De forma semelhante, nos Estados Unidos da América, no Sistema Federal, a Rule 16 das Federal Rules of Criminal Procedure não impõe ao Estado o dever de revelar à defesa o nome de suas testemunhas, com exceção de peritos (expert witness).
Quanto a esse aspecto, a doutrina assevera que tal recorte se justifica para preservação da segurança daqueles que serão futuramente ouvidos no processo criminal, apresentando dados estatísticos que indicam que 36% das vítimas e testemunhas chamadas a depor efetivamente sofreram ameaças.
Dentre aqueles que não foram ameaçados, 57% temem represálias por terem prestado depoimentos (STUNTZ, William J. et al. Comprehensive Criminal Procedure. 4th Ed. New York: Wolters Kluwer, p. 1.190).
O modelo de investigação defensiva contido no projeto ignora tais aspectos de realidade e em nenhuma medida protege vítimas e testemunhas, submetendo-as ao potencial constrangimento de serem interpeladas pelos representantes do investigado, para que prestem esclarecimentos sobre fatos possivelmente associados a medos, traumas e outros fatores psicológicos negativos.
Não menos importante, o projeto viola a garantia constitucional que veda as provas ilícitas, ao não dispor sobre o procedimento de introdução das provas colhidas pela investigação defensiva no processo, tão relevante quanto à forma de obtenção dos elementos de informação.
Diferentemente do que se verifica nos modelos estrangeiros citados, não há obrigação de formação de autos de investigação defensiva, tampouco de documentação dos meios e técnicas de investigação empregados. Referida lacuna inviabiliza até mesmo o controle a posteriori, pelo Poder Judiciário, da própria atividade investigatória.
Dois problemas daí decorrem.
Primeiro, a Constituição Federal garante que “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (art. 5º, LVI). A ausência de documentação fiel da atividade investigatória inviabiliza qualquer avaliação sobre a autenticidade e integridade dos elementos de informação apresentados, bem como sobre a licitude dos procedimentos de coleta empregados na investigação defensiva, reduzindo a efetividade da norma constitucional referida.
Ainda que doutrinária e jurisprudencialmente se autorize, diante de certos casos, a utilização excepcional de provas ilícitas em prol da defesa (RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 16. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 426), há necessidade de se aferir a proporcionalidade concreta entre meios e fins, ou seja, não é qualquer prova ilícita admissível pro reo.
A ausência de controle, nesses moldes, cederia demasiado e inadmissível espaço para a produção de provas ilícitas, inclusive pela imputação de fatos a terceiros.
Nesses termos, não é razoável que se admita em nenhuma hipótese, por exemplo, prova colhida mediante tortura, mesmo em prol da defesa, pois haveria patente desproporcionalidade entre o direito violado e a finalidade do ato – investigação defensiva.
Por isso, a documentação adequada de todo o procedimento de investigação defensiva deve necessariamente integrar um projeto que acolha tal modelo, garantindo-se a mínima rastreabilidade dos atos praticados.
O segundo problema, é que por consequência da ausência de documentação dos atos, o autor de eventual ação penal não poderá exercer razoável contraditório sobre os elementos de investigação defensiva. A propósito, a Constituição Federal assegura aos litigantes, não só ao réu, o direito ao contraditório (art. 5º, LV, da Constituição Federal).
Todos os procedimentos investigatórios hoje existentes se submetem ao crivo do contraditório, ainda que excepcionalmente diferido, permitindo que a parte contrária exerça atividade probatória própria em torno dos elementos apresentados. No recorte atual do projeto, tais vetores constitucionais se tornam inaplicáveis.
Por fim, recorde-se que agentes públicos que cometem abusos em investigações criminais sujeitam-se a diversas hipóteses de responsabilização criminal. Por meio de normas penais incriminadoras, o legislador busca fortalecer o controle sobre as atividades investigatórias, ratio subjacente à Lei de Abuso de Autoridade, nº 13.869/19, verbi gratia.
Exemplificativamente, o art. 25 do citado diploma tipifica a conduta daquele que “proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito”. Os responsáveis por investigações defensivas, caso aprovado o projeto, ficariam fora do alcance normativo dessa e de outras normas criminalizadoras.
Para um adequado equilíbrio na relação entre poder, controle e fiscalização, seria necessário ampliar o âmbito de incidência de figuras típicas dessa espécie, de maneira a abarcar atos abusivos praticados em investigações defensivas.
Os questionamentos suscitados neste breve ensaio não se prestam a esgotar as discussões que dizem respeito à investigação defensiva. Ao contrário, apenas destacam o quão complexa é a matéria e a diversidade de pontos que demandam estudos mais profundos.
A açodada aprovação do modelo proposto, sem prévio e exauriente debate, poderá causar consideráveis prejuízos ao regular funcionamento do sistema penal, especialmente em relação aos direitos de vítimas, testemunhas e de indivíduos que possam ser afetados pela investigação defensiva. É indispensável que um regramento de investigação defensiva consagre mecanismos de controle e imponha limites concernentes ao objeto de investigação e aos direitos de terceiros potencialmente atingidos.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão Especial Destinada a Proferir Parecer ao Projeto de Lei nº 8045. Parecer nº 1. Brasília: Câmara dos Deputados, 2021. Disponível em: &lt;<a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0pby7efjilt8a1uu3xo9rm215x4601135.node0?codteor=1998273&amp;filename=Tramitacao-PL+8045/2010">https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0pby7efjilt8a1uu3xo9rm215x4601135.node0?codteor=1998273&amp;filename=Tramitacao-PL+8045/2010</a>&gt;. Acesso em: 03 de maio de 2021.

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