Daniel Corrêa Szelbracikowski
Mestre em Direito Constitucional pelo IDP, bacharel em Direito pela UnB e sócio administrador da Advocacia Dias de Souza, em Brasília
Muitas foram as tentativas de moratória no regime de precatórios, concebido em 1934 em resposta à histórica inadimplência do Estado: o regime especial da EC 30/2000, o parcelamento da EC 62/2009 e, mais recentemente, a limitação imposta pela EC 114/2021. Em todas essas hipóteses, prevaleceu a lógica de postergação da despesa à custa da eficácia da coisa julgada.
Em 2025, uma nova ameaça à estabilidade do sistema se instaurou, desta vez, não por via de emenda constitucional, mas pela forma como as recentes decisões do CNJ passaram a ser interpretadas, resultando no cancelamento em massa de precatórios.
A atuação do CNJ se deu a partir de provocação da Advocacia-Geral da União (AGU), que relatou possíveis irregularidades na expedição de precatórios em 35 processos envolvendo a Tabela SUS/Tunep. Em resposta, a Corregedoria Nacional de Justiça emitiu orientações no PP 0003764-47.2025.2.00.0000, reiterando a correta exigência de que a expedição de precatórios deve observar o trânsito em julgado da fase de cumprimento de sentença ou, ao menos, a preclusão quanto à parcela incontroversa.
Essa orientação não representa inovação normativa. Limita-se a reafirmar o que se encontra previsto no art. 535, § 3º, I, do CPC, no art. 30 da LDO de 2025 e no art. 6º, VIII, da Resolução CNJ 303/2019, os quais condicionam a expedição de precatórios à inexistência de controvérsia ou ao esgotamento do prazo de impugnação.
Nenhum desses textos, contudo, exige a juntada de certidão apartada, autônoma ou com formato específico. Basta a existência de registro processualmente válido nos autos (certidão, despacho, termo ou anotação) que ateste a preclusão ou a concordância da Fazenda Pública com o valor requisitado.
Ocorre que alguns tribunais, como o TRF1, editaram comunicados aos magistrados determinando a revisão dos precatórios expedidos sob pena de responsabilização. Esse movimento gerou um ambiente de defensividade judicial que favoreceu a adoção de medidas genéricas e automáticas de cancelamento, inclusive em processos nos quais havia trânsito em julgado da execução, ausência de controvérsia ou mesmo concordância da Fazenda.
Em diversos casos, os juízos determinaram o cancelamento de precatórios, sem análise individualizada e intimação prévia do credor, como exige o STF[1]. Os fundamentos adotados para os cancelamentos demonstram leitura formalista, baseada em supostas ausências de “certidões”, quando o que se exige é a certificação de que houve transitado em julgado e inexiste controvérsia quanto ao valor requisitado nos campos próprios da requisição de pagamento.
Nem mesmo o direito ao recebimento da parcela incontroversa foi poupado. A jurisprudência é pacífica ao admitir a expedição de precatório referente ao valor não impugnado[2]. O Enunciado 31 da AGU reconhece a possibilidade de expedição de precatório da parte incontroversa, sem necessidade de aguardar o desfecho de toda a controvérsia[3].
O que era uma alegação pontual de irregularidade em 35 casos envolvendo a Tabela SUS/Tunep converteu-se, na prática, em um movimento de alcance generalizado, que desbordou os limites da decisão administrativa proferida no âmbito do CNJ. Até o momento, a medida alcançou 4.525 precatórios, envolvendo um montante superior a R$ 20,5 bilhões, o que evidencia a necessidade urgente de correção institucional[4].
Essa interpretação ampliativa da orientação do CNJ fragiliza a lógica constitucional do regime de precatórios e subverte garantias do processo judicial. A ausência de contraditório e de fundamentação individualizada afronta o devido processo legal, a segurança jurídica e o direito de acesso à justiça (art. 5º, incisos XXXV, LIV e LV, da CF).
Em última análise, os credores do Poder Público – que já enfrentam décadas de tramitação judicial até a expedição do requisitório – passam a ser sumariamente penalizados por uma interpretação distorcida da ordem administrativa.
Reconhecer a exigência de trânsito em julgado da fase de cumprimento de sentença ou de preclusão máxima sobre a parcela incontroversa não equivale, em nenhuma medida, a afirmar que qualquer incidente processual seja apto a obstar a expedição do precatório.
A Constituição e a legislação de regência jamais exigiram a extinção formal da execução ou o encerramento absoluto do processo para o cumprimento de requisições fundadas em créditos líquidos, certos e exigíveis. Ao contrário, o que se exige é a definitividade do título e a ausência de controvérsia sobre o valor a ser requisitado.
Isso se comprova pela certificação do trânsito em julgado da ação de conhecimento (TJ da AO), dos embargos à execução (TJ dos EEXEC) ou, nos termos do art. 30 da LDO/2025, pela preclusão da discussão quanto ao valor executado, inclusive quando houver anuência expressa da Fazenda Pública com o valor.
Admitir que a mera existência de petições incidentais, recursos meramente protelatórios ou expedientes administrativos seja suficiente para impedir a expedição de precatório premia e, pior, incentiva o abuso do direito de petição ou mesmo a litigância de má-fé da Fazenda Pública, comportamento recorrente em execuções contra o Poder Público.
Afinal, bastará a mera reiteração, por petição, no cumprimento de sentença, de questão já deduzida em processo transitado em julgado (por exemplo, na AO ou nos EEXEC) para que a Fazenda crie incidentes aptos a paralisar o processo e impedir o pagamento em um ciclo infinito de repetição dos mesmos fundamentos deduzidos e repelidos pelo Judiciário.
Parece evidente que essa interpretação ampliativa da orientação legítima do CNJ subverte a lógica garantista do regime de precatórios e transforma essa sistemática concebida para proteger o credor em um novo mecanismo de blindagem patrimonial do Estado.
Felizmente, decisões recentes de desembargadores do TRF1 vêm reconhecendo os abusos decorrentes dessa má interpretação para suspender os efeitos de ordens de cancelamento, proferidas sem o contraditório, e possibilitar a reativação de precatórios com base no art. 3º da Lei 13.463/2017, o qual, no contexto dos precatórios cancelados por ausência de saque, autorizou a reativação do requisitório com a manutenção de sua posição na ordem de pagamento e das verbas de correção monetária e juros acumulados.
O cenário sugere ao CNJ reafirmar os limites de sua orientação e coibir distorções interpretativas. Além de reiterar que a expedição de precatórios deva observar a preclusão quanto à parcela incontroversa, é preciso que o CNJ oriente os magistrados a desconsiderarem e punirem expedientes manifestamente protelatórios deduzidos pela Fazenda Pública, tendo em vista os deveres de lealdade, boa-fé e efetividade da tutela jurisdicional.
O que está em jogo é a preservação do núcleo essencial do regime constitucional de precatórios, sua vocação moralizadora e a proteção dos direitos individuais, em especial os inerentes à coisa julgada.
[1] ADI 5755, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, DJe 04-10-2022.
[2] AgInt nos EDcl no AREsp n. 1.695.723/SP, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe de 24/5/2023.)
[3] É cabível a expedição de precatório referente a parcela incontroversa, em sede de execução ajuizada em face da Fazenda Pública.
[4] https://www.cnj.jus.br/corregedoria-nacional-determina-que-tribunais-federais-facam-levantamento-de-precatorios-irregulares/ .