Elysangela Rabelo

Simone Dainezi Rabelo

A crise de sustentabilidade enfrentada pela saúde suplementar alcançou em 2022 níveis alarmantes de prejuízos para as operadoras de planos de saúde (principal segmento de saúde suplementar), que registraram déficits operacionais estimados em R$ 11 bilhões<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, uma situação que certamente repercutirá em todo o sistema de saúde brasileiro – público, privado e suplementar.
A busca por soluções que possam trazer eficiência ao setor tem ganhado destaque ao longo dos últimos anos com a revolução da saúde digital. A inovação tecnológica ganha relevância não apenas no contexto do desenvolvimento de novas soluções em saúde, mas também para a criação de novos métodos de otimização de processos e compartilhamento de dados.
É nesse contexto que a interoperabilidade ganha relevância, considerando as possibilidades que pode trazer em termos de acesso, troca, integração e cooperação de dados de maneira coordenada entre diferentes organizações, para permitir a portabilidade de informações e a otimização da saúde da população.
Diariamente médicos, hospitais, laboratórios e demais prestadores de saúde trocam informações entre si, porém cada um utiliza de soluções tecnológicas sem padronização, o que resulta na fragmentação do acesso a essas informações, afetando, consequentemente, o cuidado clínico do paciente e, não menos importante, a eficiência e o custo de saúde.
Além disso, em termos de gestão em saúde, apesar de uma alta produção e digitalização de dados de saúde, nem sempre esses dados são transformados em evidências e indicadores que permitam um entendimento mais aprofundado do sistema de saúde.
Não há dúvida de que a interoperabilidade de dados poderá trazer avanços significativos, incluindo a disponibilização de tratamentos mais céleres e eficazes, além de contribuir para a racionalização de recursos financeiros e humanos, além de que o compartilhamento de dados de saúde de forma mais ampla e estruturada permitiria a implementação de modelos inovadores como o open health<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, criando-se um ecossistema de dados de saúde totalmente integrado que otimizaria os serviços de saúde.
Entretanto, a viabilização e implementação da interoperabilidade depende de fatores relacionados, principalmente, (i) à regulamentação do tema em lei, (ii) à proteção e segurança de dados, (iii) à forma de padronização desses dados e (iv) à uniformização de sistemas e formas de compartilhamento dos dados de saúde.
No que diz respeito à regulamentação da interoperabilidade de dados de saúde, no Brasil já existem normas que contemplam a matéria, porém cabe-nos entender se essas seriam suficientes para a efetiva implementação da interoperabilidade no sistema de saúde.
A Portaria 2.073/2011 do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ministerio-da-saude">Ministério da Saúde</a>, alterada pela Portaria de Consolidação 1/2017, do mesmo ministério, definiu padrões de informações, terminologias, premissas e especificações técnicas de saúde, assim como a interoperabilidade de dados entre o SUS e os sistemas de saúde privado e de saúde suplementar.
Embora o Título VII da Portaria supracitada cite que os padrões de interoperabilidade serão instituídos visando permitir o compartilhamento de informações entre os estabelecimentos envolvidos na atenção à saúde do SUS, também é verdade que o item I do artigo 231 estabelece que o objetivo da norma é definir conceitos e modelos padronizados de representação da informação, de forma a tornar mais ágil o acesso a informações relevantes e fidedignas sobre o usuário dos serviços de saúde.
Por outro lado, a Portaria 2/2017 em seu Anexo XLII prevê a Política Nacional de Informação e Informática em Saúde, com o objetivo de orientar os setores público e privado no tocante aos princípios norteadores para a integração dos sistemas de informação em saúde.
Assim sendo, em tese, tais portarias poderiam ser interpretadas como uma primeira diretriz para a implementação de sistemas interoperáveis para além dos muros do sistema público de saúde.
Contudo, não se trata apenas de se ter ferramentas tecnológicas adequadas e uma padronização de sistemas de informática, mas também um estruturado compliance regulatório, ético e legal por parte das entidades envolvidas, porque o assunto envolve o compartilhamento de informações relacionadas à saúde do indivíduo, definida pela <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lgpd">Lei Geral de Proteção de Dados</a> (LGPD) como um dado pessoal sensível.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Com efeito, a LGPD traz regras para o compartilhamento de dados de saúde que podem ocorrer:
<ol>
<li>mediante o consentimento do seu titular;</li>
<li>sem o consentimento do titular, desde que nas seguintes circunstâncias:
<ol>
<li>para o cumprimento de uma obrigação legal ou regulatória;</li>
<li>para à execução, pela administração pública, de políticas públicas previstas em leis ou regulamentos;</li>
<li>para à tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária.<a style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a></li>
</ol>
</li>
</ol>
É dizer que o compartilhamento de dados de saúde é possível mediante o consentimento do paciente ou em virtude de lei ou regulamento que discipline o tema, e desde que não seja realizado de forma a discriminar os beneficiários de planos privados de saúde.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Vale salientar que o artigo 40 da LGPD prevê que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) poderá estabelecer padrões de interoperabilidade.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> Entretanto, até o momento, a ANPD não contemplou o tema em nenhuma de suas resoluções ou portarias, tampouco em sua agenda regulatória.
Em relação à uniformização de sistemas e formas de compartilhamento das informações, a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS)<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> , plataforma nacional de interoperabilidade em saúde criada pelo Ministério da Saúde em conjunto com o Datasus, é tida como a plataforma que visa à interoperabilidade entre o sistema público e privado conforme estabelece o artigo 254-A da Portaria de Consolidação 1/2017<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
Segundo o Ministério da Saúde, “até 2028, a RNDS estará estabelecida e reconhecida como a plataforma digital de inovação, informação e serviços de saúde para todo o Brasil, em benefício de usuários, cidadãos, pacientes, comunidades, gestores, profissionais e organizações de saúde”.<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
Ou seja, a RNDS, que hoje é utilizada pelo sistema público de saúde, também poderia ser uma solução tecnológica para o sistema privado e suplementar. Tal hipótese, inclusive, está contemplada no projeto conduzido pelo Comitê Gestor de Saúde Digital, que conta com representantes do Ministério da Saúde, Conselhos Nacionais e agências reguladoras, que visa à integração da RNDS com a saúde suplementar.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>
Apesar das legislações trazidas, a interoperabilidade ainda é uma realidade distante, sobretudo por não haver uma lei que estabeleça o tema como obrigatório para o sistema de saúde, de modo que as iniciativas ainda ficam sujeitas aos interesses individuais dos players do setor.
Verifica-se que o setor público vem atuando de forma mais concreta para a interoperabilidade de dados de seus usuários, principalmente após o enfrentamento da pandemia da Covid-19, que exigiu uma rápida digitalização dos dados de saúde.
Já no sistema privado e suplementar, o compartilhamento de dados ainda é tímido e normalmente está relacionado a interações dentro da estrutura de grandes hospitais e laboratórios.
Por fim, é primordial o debate sobre os principais entraves para a implementação da interoperabilidade no sistema de saúde, dentre os quais destacamos (i) os desafios enfrentados pelo setor privado para o compartilhamento de dados de saúde, (ii) a possibilidade de vazamento e responsabilização dos players pelo uso indevido desses dados, (iii) a necessidade de altos investimentos em infraestrutura de tecnologia da informação pelos prestadores de serviços de saúde e (iv) a necessidade de criação de leis que regulamentem o tema.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> https://www.gov.br/ans/pt-br/assuntos/noticias/sobre-ans/ans-divulga-dados-economico-financeiros-do-4o-tri-2022
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/dezembro/open-health-ministerio-da-saude-atua-para-otimizar-servicos-de-saude-no-brasil
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Lei 13709/2018. Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se:
II - dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural;
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Art. 11. O tratamento de dados pessoais sensíveis somente poderá ocorrer nas seguintes hipóteses:
I - quando o titular ou seu responsável legal consentir, de forma específica e destacada, para finalidades específicas;II - sem fornecimento de consentimento do titular, nas hipóteses em que for indispensável para:
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Art. 11, § 5º É vedado às operadoras de planos privados de assistência à saúde o tratamento de dados de saúde para a prática de seleção de riscos na contratação de qualquer modalidade, assim como na contratação e exclusão de beneficiários.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Art. 40. A autoridade nacional poderá dispor sobre padrões de interoperabilidade para fins de portabilidade, livre acesso aos dados e segurança, assim como sobre o tempo de guarda dos registros, tendo em vista especialmente a necessidade e a transparência.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Portaria GM/MS nº 1.434/2020
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> “Fica instituída a Rede Nacional de Dados em Saúde - RNDS, componente do Sistema Nacional de Informações em Saúde - SNIS, de que trata o art. 47 da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que consiste em uma plataforma nacional voltada à integração e à interoperabilidade de informações em saúde entre estabelecimentos de saúde públicos e privados e órgãos de gestão em saúde dos entes federativos, para garantir o acesso à informação em saúde necessário à continuidade do cuidado do cidadão".
§ 3º A integração na RNDS das informações previstas no § 1º será feita de forma gradativa até a concretização dessa rede como a via única de interoperabilidade nacional em saúde, devendo as demais iniciativas nacionais de interoperabilidade em saúde convergirem para sua arquitetura.”
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/seidigi/rnds
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/seidigi/rnds/estrutura-do-projeto/estrutura-do-projeto

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JOTA

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