Luiz Felipe Monteiro Seixas

<blockquote class="jota-article__quote">“The ever accelerating progress of technology and changes in the mode of human life give the appearance of approaching some essential singularity in the history of the race beyond which human affairs, as we know them, could not continue.”
<footer class="jota-article__quote-cite">(Frase atribuída ao matemático John von Neumann, por volta da década de 1950)</footer>
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<footer>Não sou dado a exercícios de futurologia, sobretudo porque não disponho de conhecimento científico para tanto. No entanto, neste breve ensaio vou me arriscar a trazer algumas reflexões, apontamentos e perguntas sobre o(s) possível(eis) futuro(s) do conhecimento jurídico (e da sua produção e difusão) em razão das inovações tecnológicas observadas em tempos recentes. Mais especificamente uma inovação: o ChatGPT [https://beta.openai.com/], a inteligência artificial desenvolvida pela empresa OpenAI.IA’s similares ao ChatGPT, que trabalham com processamento de linguagem natural, machine learning e deep learning, não são <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tecnologia">tecnologias novas</a>. Inclusive o ChatGPT é derivado de outra IA, seu “irmão” mais velho, o GPT-3 [https://openai.com/blog/chatgpt/]. A sigla “GPT” significa Generative Pre-Training Transformer, algo como “Transformador Generativo Pré-Treinado”. Mas o que o ChatGPT faz, afinal?
Como me propus a descrever no título deste ensaio, a denominação que eu daria ao ChatGPT é a de que ele funciona como uma inteligência artificial do cotidiano, um chatbot que interage com o usuário por meio de mensagens de texto, trazendo respostas coerentes, com uma linguagem fluída e natural.
Aqui, destaco dois pontos importantes sobre o GPT. O primeiro deles corresponde ao fato de que se trata de um programa aberto, com uma interface amigável e de fácil compreensão e utilização, sendo seu uso praticamente intuitivo. O segundo ponto diz respeito às possíveis aplicações do <a href="https://openai.com/blog/chatgpt/">ChatGPT</a>: ele pode responder perguntas formuladas pelo usuário, criar/analisar/resumir textos, corrigir erros de gramática, resolver problemas de matemática, realizar tarefas de tradução, programar (realizando funções de programação mais simples, corrigindo bugs ou criando algoritmos), dentre outros.
A variedade de tarefas do ChatGPT é imensa (vale a pena fazer um teste na plataforma, que “lê” – e responde – em português).
Não obstante tais fatores, uma das funções do ChatGPT que mais me causou curiosidade, surpresa e – por que não – espanto é aquela relacionada à análise e produção textual. Eu não conseguiria explicar aqui a dimensão do que o ChatGPT é capaz de fazer (sobretudo porque não cheguei a testar todas as funções do programa), mas posso afirmar com alguma segurança que a forma como será construído e difundido o conhecimento jurídico (sobretudo o acadêmico) alcançou um novo paradigma. Fazendo uso de uma expressão de efeito, eu diria que o direito – e campo das ciências humanas e sociais em geral – alcançou um verdadeiro ponto de “singularidade acadêmica”.
O conceito de singularidade (em especial, a singularidade tecnológica) diz respeito aos avanços decorrentes da inteligência artificial (ou melhor, de uma superinteligência) que irão resultar numa mudança de paradigma da civilização humana como a conhecemos<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Conforme descrito na epígrafe deste texto<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, o progresso tecnológico está alcançando (ou já alcançou) tamanha singularidade ao ponto de modificar para sempre a nossa condição de sujeitos no mundo, sobre os mais variados aspectos, incluindo a forma pela qual produzimos conhecimento. E é aqui onde reside uma das revoluções do ChatGPT e inteligências artificiais congêneres.
O direito, em essência, possui como principal ferramenta a palavra, em especial a palavra escrita, sendo ela a forma pela qual as ideias e conceitos são apresentados pelo emissor e recebidos pelos receptores. Não sem razão, trabalhos escritos tem sido um componente central nas práticas pedagógicas do campo jurídico, influenciando inclusive a forma como ensinamos a pesquisar, escrever e refletir sobre determinado problema.
Provas, redações, fichamentos, resenhas, artigos, monografias, dissertações, teses. Todos esses típicos trabalhos escritos utilizados como instrumentos avaliativos das mais variadas formas, verdadeiros pilares da pedagogia jurídica. Agora imagine essa “tradição pedagógica” sofrendo uma alteração tão profunda ao ponto de se questionar seus fundamentos e sua legitimidade. Isto porque todas essas formas de produção textual já podem ser realizadas por meio de uma inteligência artificial, a exemplo do ChatGPT. E os resultados são incríveis (além de assombrosos).
Ora, se para a aprovação em determinada matéria exige-se a elaboração de um texto dissertativo, ou se para a obtenção do título de doutor é necessária a escrita de uma tese, o que fazer quando esses processos forem automatizados de tal maneira a ponto de ser praticamente impossível diferenciar uma produção acadêmica humana de uma produção feita por uma inteligência artificial? Quais os critérios para definir se uma produção textual feita por uma máquina representa plágio, tendo em conta que a máquina não é pessoa (e, em essência, o que é plágio)? Quais deverão ser os parâmetros da ética acadêmica a partir de agora? E, o mais importante, qual o papel que os professores e pesquisadores do direito deverão assumir enquanto educadores, criadores e difusores de conhecimento jurídico?
Essas não são perguntas fáceis e creio que ainda estejamos longe de ter respostas minimamente suficientes. Mas são as perguntas que deveriam estar sendo colocadas no centro do debate da academia jurídica.
Numa análise preliminar, diante das revoluções observadas no âmbito da inteligência artificial, antevejo dois caminhos ou comportamentos por parte daqueles profissionais que lidam com a produção de conhecimento jurídico. De um lado, os críticos ferrenhos, abominando as novas formas pela qual o conhecimento jurídico será produzido, mas sem possuir um entendimento mais profundo desses processos e tecnologias, seja por comodismo, negação e/ou desespero (uma espécie de neoludismo acadêmico). De outro, os que se preocuparão em compreender essa nova realidade (inclusive para ser possível o exercício da crítica), refletir sobre seu papel enquanto professores e pesquisadores do campo jurídico e procurar fazer uso de diferentes abordagens, metodologias, práticas pedagógicas e tecnologias, das mais variadas formas – esse segundo grupo tende a ser uma minoria, infelizmente, e espero incluir-me nele.
Entendo que o cenário atual não permite mais uma afirmação genérica de que determinado campo do conhecimento jurídico é importante, mas exige que seus professores e pesquisadores expliquem por que o que fazem, como fazem e para que fazem é importante, inclusive para legitimar seu papel perante a sociedade e a comunidade acadêmica. Comportamentos em sentido contrário, autocentrados e alheios as mudanças tecnológicas, sociais e culturais que estamos vivenciando, beiram a irresponsabilidade intelectual e profissional, além de trazer consequências diretas – e negativas – para os alunos e alunas que estão sendo formados (incluindo para onde e para que estão sendo formados).
Talvez em um futuro não muito distante, sequer esse ensaio seria escrito por mim, mas por uma superinteligência (similar ou superior ao ChatGPT) dotada de profunda compreensão de discussões relativas às inovações tecnológicas e à epistemologia e pedagogia do campo jurídico. E isso não é algo ruim, ao contrário, em particular quando um texto escrito por uma inteligência artificial conseguir transmitir uma mensagem com qualidade – sintática, semântica e intelectual – igual ou superior à humana, bem como possa ser acessada por uma quantidade significativa de receptores.
No entanto, a verdade é que ninguém está preparado para como a inteligência artificial irá transformar a academia. Adaptando uma frase clássica de Shakespeare, na peça The Tempest: “O brave new world, that has such technologies in it!”
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Sobre o tema, cf.: CHALMERS, David J. The singularity: A philosophical analysis. In: SCHNEIDER, Susan (ed.). Science fiction and philosophy: From time travel to superintelligence. 2. ed. New Jersey: John Wiley &amp; Sons, 2016. p. 171-224.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Atribui-se à John von Neumann a utilização da expressão “singularidade” no contexto do progresso tecnológico. ULAM, Stanislaw. Tribute to John von Neumann. Bulletin of the American Mathematical Society, v. 64, n. 3, part 2, p. 1-49, 1958.
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JOTA

Como a tecnologia está determinando a produção e disseminação do conhecimento no campo das ciências humanas e sociais

Inteligência artificial, singularidade e o futuro do conhecimento jurídico

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