Rogério Fernando Taffarello

Dias após a votação do impeachment no Plenário da Câmara dos Deputados, o Brasil ainda discute não apenas o seu resultado e implicações políticas e jurídicas como também, e lamentavelmente, os constrangimentos que muitos sentiram ao assistir à longa sessão do último domingo.
Um dos episódios que tem causado intensas polêmicas é o da altercação havida entre os deputados Jair Bolsonaro e Jean Wyllys, que culminou no já famoso cuspe disparado por este em direção àquele. Ante tantas dúvidas, cabe a indagação: alguém, ali, ou ambos, teria(m) agido em conformidade com o direito?
A questão não comporta resposta simples, e, por isso mesmo, merece reflexão.
Por primeiro, informo ao leitor que não procurei assistir a todos os vídeos disponíveis sobre o evento, à exceção de apenas um, aparentemente o mais divulgado na internet, e apenas por uma vez. Suscitaram-se versões diferentes acerca dos momentos anteriores, mas isso pouco aqui importa, pois esse texto não se propõe a investigar e menos ainda a julgar os fatos ou seus protagonistas; ao revés, pretende trazer ao leitor algumas questões jurídicas implicadas no episódio, as quais, naturalmente, nada têm a ver com a disputa ideológica que dali emergiu e as preferências pessoais relacionadas.
Eis os dados fáticos que essas linhas tomam como premissa: (i) o deputado Jean Wyllys disparou um cuspe contra o deputado Jair Bolsonaro no plenário da Câmara dos Deputados, pouco após ter dado seu voto ao microfone; (ii) afirma aquele que fora insultado antes por este, razão por que houve por assim responder; (iii) segundo se relata, registros audiovisuais não captaram com clareza a existência de tais ofensas verbais, tampouco (iv) que palavras exatamente teriam proferidas, ou, ainda, (v) em que medida houve, se houve, efetiva relação de imediatidade entre os atos de um e de outro.
Dito isso, o ato captado com maior clareza pelas imagens, o cuspe, inegavelmente constitui uma agressão, a qual, sob o ângulo penal, pode, em tese, ser qualificada como uma injúria. Isso não basta, no entanto, para afirmar a sua eventual contrariedade ao direito, porquanto ele deve ser apreciado à luz do contexto e daquilo que lhe precedeu, ou seja, da completa dinâmica dos fatos.
De se ver que, tendo havido ofensas anteriores, em um mesmo contexto temporal, a (inegável) agressão praticada pelo deputado Jean Wyllys pode perfeitamente estar acobertada pelo direito, sob diferentes ângulos – os quais, repito-o, analiso somente em tese, pois aqui não se examinam elementos de prova sobre como exatamente teriam se dado os fatos.
Assim é que, se o deputado Jair Bolsonaro efetivamente ofendeu o deputado Jean Wyllys, injuriando-o, a resposta dada por este, ainda que esteticamente mais desagradável (o que não necessariamente traduz maior gravidade, sobretudo se a alegada ofensa anterior teve índole preconceituosa – talvez menos impactante pelo só fato de não se captar por imagens), pode perfeitamente ter se constituído em legítima defesa, autorizada pelos arts. 23, II e 25 do Código Penal. Nessa hipótese, na medida em que se trataria de uma agressão com vistas a fazer cessar uma agressão anterior, ou a evitar uma reiteração desta, ter-se-ia um ato lícito, voltado a garantir o livre exercício de não ser moralmente agredido. Afinal, sabe-se, “ninguém pode ser obrigado a suportar o injusto” [1].
Embora frequentemente associada a casos que envolvem violência física como resposta a violência praticada por outrem, a legítima defesa é instituto jurídico que se presta a proteger o exercício de qualquer direito, ou seja, à tutela de qualquer bem jurídico – e não apenas a vida ou a integridade corporal. Tampouco é preciso que a agressão esteja a ocorrer no momento em que respondida, devendo ela ser “atual ou iminente” (CP, art. 25), ou seja, basta a probabilidade real de a agressão injusta estar em vias de ocorrer – tendo ou não já ocorrido previamente. É preciso, no entanto, que a defesa agressiva seja necessária à fruição do direito afetado, e que a resposta não consubstancie agressão imoderada.
Preenchidos esses requisitos, uma pessoa moralmente insultada que, em resposta, agride (moderadamente) seu ofensor, age justificada pela – outrora famosa, atualmente pouco lembrada – legítima defesa da honra, sem embargo de poder estar a defender também outros bens jurídicos, sobretudo se se tratara de ataque preconceituoso.
Caso a hipótese concreta não permita afirmar-se legítima defesa, em tese terá o deputado Jean Wyllys praticado, ao menos formalmente, o delito de injúria contra o deputado Bolsonaro. Todavia, ainda assim, parece perfeitamente viável considerar que se trate de conduta impunível. Isso porque, em meio às disposições atinentes ao crime de injúria (CP, art. 140), o Código Penal expressamente prevê hipóteses em que o juiz pode – ou melhor, deve [2]– não aplicar punição “quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria” (CP, art. 140, § 1º, I) ou “no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria” (CP, art. 140, § 1º, II). Em outras palavras, a injúria, ainda que aperfeiçoada como ato ilícito, não é punível quando tenha sido provocada por outrem ou quando configure resposta a injúria anterior.
Note-se, aqui, uma diferença relevante entre essas duas hipóteses e a anterior: na hipótese de legítima defesa, o ato agressivo é plenamente lícito; aqui, o ato é formalmente típico e ilícito, porém não é revestido de punibilidade [3]. São, portanto, situações jurídicas diferentes, a que o direito reserva consequências diferentes: trata, pois, mais generosamente a ofensa praticada em legítima defesa do que aquela praticada após injusta provocação ou como retorsão imediata a ofensa anterior (ainda que, do ponto de vista prático, todas elas não sejam passíveis de punição, acabando por tornar-se, igualmente, irrelevantes penais [4]). E, porque as trata diferentemente, há de se observar que o suporte fático de cada hipótese não pode ser o mesmo: se a legítima defesa supõe uma relação de imediatidade entre a agressão e a resposta, há que se compreender que, especificamente no caso da retorsão, a conexão temporal entre as duas injúrias deva ser diversa – pressupõe uma injúria anterior devidamente cessada, que já não apresenta qualquer atualidade ou iminência de reiteração. Situação que pode ter ocorrido no último domingo, e que, neste caso, à luz da hierarquia de valores que norteia o sistema jurídico-penal, não pode conduzir a uma punição daquele que, por meio de uma nova ofensa, pouco fez senão reagir à ofensa anterior.
De toda sorte, há ainda um fator complicador dessa discussão: ambos os envolvidos são parlamentares federais, e prevê a Constituição que, como tais, “são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” (CRFB, art. 53, caput). Não pretendo, aqui, detalhar o tema da imunidade (material) parlamentar, seu conteúdo e limites; cumpre, todavia, não deixar de assinalar esse dado e observar que, conforme muitos entendem, manifestações orais ou escritas de deputados ou senadores no exercício do mandato e em razão de suas funções – mormente quando dentro das instalações do Congresso Nacional – não podem, sob qualquer hipótese, ser objeto de reprimenda jurídica, desnaturando-se-lhes o caráter eventualmente injurioso.
É possível, por outro lado, considerar que tanto eventual ofensa verbal de cunho pessoal e preconceituoso proferida por um deputado a outro quanto, e com maior razão, uma cusparada dirigida por este àquele, ultrapassariam o nexo de causalidade com o exercício do mandato parlamentar, constituindo, formalmente e em tese, injúrias penalmente relevantes [5]– hipótese que parece ter sido a do entrevero do último domingo. Nada obstante, é igualmente possível que, para análise da eventual justificação de uma conduta ofensiva, leve-se em conta uma anterior ofensa moral ainda que acobertada pela imunidade parlamentar. Por isso mesmo, as inviolabilidades parlamentares não parecem excluir, para a hipótese, a necessidade de analisar as questões jurídicas acima expostas.
E a análise da polêmica sob a ótica da hierarquia de valores consagrada em nossa legislação penal tende a indicar que, se efetivamente presentes as ofensas anteriores alegadas pelo deputado Jean Wyllys, e, claro, se ausente uma premeditação à realização do específico ato por ele praticado em desfavor do deputado Bolsonaro [6], ter-se-á um ato de gosto questionável, e bastante desagradável de ser visto pelas câmeras de tv; porém – e por fundamentos jurídicos mais que razoáveis – lícito, ou, se muito, impunível.
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[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, vol. 1, 7ª Ed. rev. e atual., 2ª tir. São Paulo: RT, 2008, p. 498.
[2] Não há, nesse mister, espaço de discricionariedade para o julgador: presente uma das duas hipóteses arroladas no § 1º do art. 140 do CP, impõe-se, por força do princípio da isonomia, reconhecer a existência de direito público subjetivo à não aplicação de pena.
[3] Acerca dos muitos meandros doutrinários que a punibilidade como categoria da teoria do delito implica, ver, na doutrina nacional: CARVALHO, Érika Mendes de. Punibilidade e delito. São Paulo: RT, 2008, passim.
[4] FRAGOSO, Heleno Cláudio. “Pressupostos do crime e condições objetivas de punibilidade”. In: FRAGOSO, Heleno Cláudio. Estudos de direito e processo penal em homenagem a Nelson Hungria. Rio de Janeiro - São Paulo: Forense. 1962, p. 175.
[5] “[...] tal inviolabilidade em nada protege o deputado federal ou senador nos casos em que as imputações moralmente ofensivas se apresentarem completamente desvinculadas do desempenho de qualquer das atribuições inerentes ao ofício congressual”. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional, 6ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 1085.
[6] Repito, ainda uma vez, que essas reflexões deliberadamente passam ao largo de maiores detalhes e circunstâncias do episódio concreto, pois se pretendeu, aqui, partir do concreto para uma reflexão jurídica sobre hipóteses fáticas possíveis que uma tal situação pode implicar.

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JOTA

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