Marcos Canecchio Ribeiro

Apesar de instituídos pela Lei No. 11.076 de dezembro de 2004, os certificados de recebíveis do agronegócio - CRA ainda não tinham sido objeto de regulamentação específica da Comissão de Valores Mobiliários – CVM. Isso, entretanto, não impediu o desenvolvimento do mercado para esse tipo de título de crédito, tendo em vista o entendimento adotado pela CVM desde 2008 de que poderiam ser aplicadas às ofertas públicas de CRA as disposições da Instrução CVM No. 414, que regula as ofertas públicas de certificados de recebíveis imobiliários – CRI.
Durante esse período de 10 anos, foram nos últimos 5 em que observamos um aumento mais vertiginoso no volume de ofertas públicas desses títulos. O volume total de CRA ofertados saltou de aproximadamente R$1,2 bilhão em 2013 para aproximadamente R$13,3 bilhões em 2017 (abaixo dos R$14,2 bilhões que chegaram a ser alcançados em 2016, mas ainda assim mantendo-se em um patamar bastante expressivo). Se, por um lado, o volume total de Ofertas de CRA foi ligeiramente mais baixo do que o observado no ano anterior, por outro, 2017 destacou-se pelo número de 56 ofertas de CRA realizadas, o maior registrado até então<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>.
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Esse crescimento vertiginoso está relacionado ao dinamismo do setor do agronegócio nacional, que historicamente contribui de forma relevante para o crescimento da economia brasileira. O crescente aumento da produção agropecuária nacional e a adoção de equipamentos de tecnologias cada vez mais avançadas no cultivo dos mais diversos produtos exigem volumes cada vez mais expressivos de investimentos no campo. Por outro lado, as fontes tradicionais de financiamento para o setor, tais como os bancos públicos e de fomento e os subsídios governamentais, tem se mostrado cada vez mais escassas, devido à radical deterioração fiscal e aos déficits orçamentários que temos experimentado nos últimos anos. Em um cenário como esse, foi inevitável o desenvolvimento de novas fontes de financiamento para o setor e, nesse contexto, explica-se o vertiginoso aumento das ofertas de CRA como fonte alternativa de financiamento do agronegócio no Brasil.
Assim, a mesma expectativa que se tem no setor de infraestrutura em relação a um papel mais relevante a ser desempenhado pelo mercado de capitais brasileiro como fonte de financiamento de projetos, também no setor do agronegócio é esperado que o mercado de capitais assuma crescente importância como fonte alternativa de financiamento. Por todos esses motivos, o mercado saudou com muito entusiasmo a edição da Instrução CVM No. 600, importante marco regulatório que passa a disciplinar a emissão pública de CRA no Brasil a partir de novembro de 2018. 
Apesar da inexistência de regulamentação específica por parte da CVM não ter impedido o desenvolvimento do mercado de CRA no Brasil, a situação regulatória estava longe da ideal. Muitos foram os desafios enfrentados pelos participantes do mercado no exercício de utilizar regras que haviam sido pensadas para os CRI para regular os CRA. Nesse cenário, foi importante o processo de amadurecimento do mercado e da própria CVM, conquistado na prática, por meio da estruturação dos mais diferentes tipos de ofertas de CRA que eram levadas a registro junto à CVM. Nesse processo, as análises e manifestações da CVM, seja por meio de sua Superintendência de Registro de Valores Mobiliários, seja por meio de seu Colegiado, passaram a nortear as práticas de mercado, tornando o processo em certa medida parecido com o sistema de direito consuetudinário. Através de suas decisões, a CVM esclarecia dúvidas que existiam no mercado, possibilitando o desenvolvimento do CRA no Brasil. 
Dentre tais decisões, cumpre destacar a proferida por seu Colegiado no que ficou conhecido como o caso Burger King. Em tal oportunidade, a CVM decidiu que uma debênture emitida por uma empresa que não se enquadra na definição de produtor rural pode servir de lastro para CRA desde que os recursos obtidos com a emissão sejam integralmente destinados a pagamentos devidos a produtores rurais no âmbito de operações comerciais envolvendo produtos agropecuários. Essa decisão abriu caminho para inúmeras outras ofertas estruturadas por empresas que não necessariamente eram produtores rurais, mas que mantinham relações comerciais com parceiros do setor. 
Em decorrência de toda essa experiência prévia, a minuta apresentada pela CVM para discussão no âmbito da audiência pública que resultou na edição da Instrução CVM No. 600 já apresentava soluções satisfatórias para muitos dos desafios enfrentados. Ainda assim, a versão final da Instrução CVM No. 600 apresentou aperfeiçoamentos importantes, resultantes das sugestões apresentadas por diversos participantes do mercado no âmbito da audiência pública. 
Entre os pontos que merecem destaque da Instrução CVM No. 600, podemos mencionar o reconhecimento da possibilidade de revolvência nas ofertas de CRA (assim entendida a aquisição de novos direitos creditórios do agronegócio com a utilização dos recursos provenientes do pagamento dos direitos creditórios originais vinculados à emissão), desde que observadas certas regras e procedimentos. A revolvência é especialmente importante no mercado de CRA, já que os prazos de vencimento dos recebíveis do setor são usualmente mais curtos que os prazos de vencimento dos CRA. Sensível a essa realidade do mercado, a CVM já havia estabelecido parâmetros para permitir a revolvência em decisões, memorandos e ofício circular anteriores à edição da Instrução CVM No. 600. 
Igualmente em linha com decisões anteriores da CVM, a Instrução CVM No. 600 também reconhece a possibilidade de títulos de dívida emitidos por empresas que não são produtoras rurais serem utilizados como lastro de CRA, desde que os recursos obtidos sejam integralmente destinados a operações comerciais com produtores rurais. Em relação a esse ponto, apesar de em princípio estar em linha com o posicionamento adotado no caso Burger King, cabe um alerta importante que, a nosso ver, pode impactar muitas ofertas estruturadas com esse tipo de lastro.
De acordo com o disposto no Parágrafo 8º do Art. 3º da Instrução CVM No. 600, a destinação dos recursos a produtores rurais (que como dissemos acima é uma condição para que o título possa ser lastro de CRA) “deve ser comprovada por meio de contrato ou outro documento vigente entre o terceiro e o produtor rural, em montantes e prazos compatíveis com os da emissão do certificado”. Dentre nossas sugestões enviadas à CVM no âmbito da audiência pública, sugerimos que tal dispositivo fosse alterado para que não se exigisse a existência de um “contrato ou outro documento vigente” em montante e prazo compatíveis com os do CRA no momento da emissão do CRA. Nossa sugestão decorre da simples constatação de que, em vários setores do agronegócio, os negócios celebrados entre produtores rurais e suas contrapartes não são formalizados em contratos de longo prazo de elevados valores. Ao contrário, é muito comum a celebração de negócios no mercado spot, em que as compras de produtos agropecuários são feitas junto a diversos produtores rurais (frequentemente muitas dezenas ou mesmo mais de centena deles), sem a celebração de um contrato específico, mas simplesmente por meio da emissão de faturas para compras individualizadas, que podem ocorrer de forma sucessiva durante o ano ou em determinado período do ano, dependendo do produto agropecuário em questão. 
Imagine-se, por exemplo, uma empresa do setor de alimentos que tem em seu orçamento anual R$100 milhões para a compra de matéria prima de uma centena de produtores rurais, tais como pequenos e médios produtores de grãos, criadores de gado etc. Se tal empresa desejasse financiar a aquisição de matéria prima por meio de um CRA, de acordo com a regra do Parágrafo 8º do Art. 3º da Instrução CVM No. 600 mencionada acima, seria necessário comprovar que, no momento da emissão, existiam contratos vigentes entre a empresa e os produtores rurais em valor de, no mínimo, R$100 milhões. Se a empresa do exemplo acima atuar em um mercado em que não é praxe ou não é viável a celebração de contratos de volumes maiores com valores já pré-definidos, o CRA deixará de ser uma alternativa de financiamento para suas atividades, mesmo que tal empresa efetivamente realize anualmente compras junto a produtores rurais em volume superior a R$100 milhões.
Para remediar tal situação, nossa sugestão (que não foi a única nesse sentido no âmbito da audiência pública) era a de que, no exemplo acima, bastaria que a empresa comprovasse a utilização dos R$100 milhões durante o prazo de duração do CRA, ou seja, a comprovação não ocorreria por meio de contratos vigentes no momento da emissão mas sim por meio de contratos, faturas ou notas fiscais que evidenciassem relações comerciais realizadas no futuro, durante a vigência do CRA. Até mesmo porque, a existência de contratos vigentes na data da emissão não garante que tais contratos serão de fato performados durante a vigência dos CRA.
Em resposta a tal sugestão, a CVM esclareceu em seu relatório de análise da audiência pública que, no seu entendimento, a ausência de uma relação contratual pré-existente impossibilitaria a determinação do volume da emissão. Além disso, ressaltou que, se não houver negócios em volume suficiente ao longo da vigência do CRA, restaria configurada uma emissão sem o respectivo lastro. Concluiu então que “não bastaria a comprovação posterior, sendo necessária a vinculação a uma relação comercial existente e, portanto, as sugestões não foram aceitas.”
Apesar de entendermos as legítimas preocupações manifestadas pela CVM, com a devida vênia, discordamos de sua decisão de não aceitar as sugestões. Conforme mencionado acima, a existência de contratos no momento da emissão não nos parece garantir a destinação dos recursos a produtores rurais, tendo em vista que tais contratos podem não ser performados pelos mais diversos motivos. Tanto assim que o próprio Parágrafo 8º do Art. 3º da Instrução CVM No. 600 estabelece a obrigação do agente fiduciário de verificar a correta destinação dos recursos semestralmente. Ou seja, a própria CVM reconhece que a existência dos contratos no momento da emissão não garante a correta destinação de recursos, caso contrário, não seria necessária a posterior verificação. Portanto, nos parece que o mais relevante é mesmo a obrigação de verificação semestral da efetiva utilização dos recursos durante o prazo do CRA, de modo que a pré-existência de contratos no valor total da emissão não deveria ser condição sine quo non para a emissão de CRA. 
Ademais, vale ressaltar que obrigação semelhante a essa não existe em relação a outros títulos isentos, como é o caso das debêntures de infraestrutura emitidas sob a égide da Lei nº 12.431, de junho de 2011. Em relação a esse título, não se exige a pré-existência de contratos comerciais associados ao projeto de infraestrutura a ser financiando no volume total da emissão.
Por todo o exposto, entendemos que, em relação a esse ponto, poderia ter havido por parte da CVM maior flexibilização diante de uma realidade de mercado (qual seja, a inviabilidade e inexistência de contratos de longo prazo pré-definindo preço e volume de compra de produtos agropecuários), assim como houve flexibilidade ao se permitir a revolvência diante da constatação de outra realidade de mercado (qual seja, o descasamento dos prazos dos recebíveis do setor e os prazos desejáveis para a colocação dos CRA no mercado).
Esse ponto nos parece particularmente relevante tendo em vista o crescente volume de ofertas de CRA estruturadas por empresas que, muito embora não sejam produtoras rurais, transacionam expressivos volumes com tais produtores e, portanto, fomentam o agronegócio brasileiro.
Apesar desse ponto que, em nosso modesto entender merece reparo, é inegável que a Instrução CVM No. 600 representa um grande marco regulatório para a indústria da securitização no Brasil e para o setor do agronegócio brasileiro. Esperamos que sua entrada em vigor já em novembro de 2018 permita o contínuo desenvolvimento do mercado de CRA como uma efetiva fonte de financiamento para agronegócio brasileiro.
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<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> Todos os dados obtidos no Anuário Uqbar 2018 – Certificados de Recebíveis do Agronegócio (cuja leitura recomendamos) disponível em <a href="http://www.uqbar.com.br/download/UqbarAnuarioCRA2018.pdf">http://www.uqbar.com.br/download/UqbarAnuarioCRA2018.pdf</a>
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JOTA

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