Igor De Lucena Mascarenhas

Luciana Dadalto

<p>No dia 15 de junho de 2021, foi publicada no Diário Oficial da União a resolução CFM 2.294/2021, que traz as novas normas deontológicas que devem embasar os médicos na utilização das técnicas de reprodução assistida. A referida resolução revoga duas anteriores, quais sejam, a resolução CFM 2.283/2020 e a resolução CFM 2.168/2017 e apresenta inúmeras modificações.</p>
<p>Inicialmente é necessário destacar a ausência de lei em sentido estrito sobre a matéria. No vácuo legal, a norma do Conselho Federal de Medicina (CFM) adquire uma relevante importância normativa, na medida em que o Estado, em especial o Poder Judiciário, deve dar respostas aos pleitos e conflitos que lhe são apresentados.</p>
<p><a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>A nova resolução do Conselho Federal de Medicina apenas ressalta a instabilidade normativa vivida no Brasil, na medida em que essa é a 6ª resolução “completa” do CFM sobre a matéria. Antes da nova resolução, já haviam sido publicadas as resoluções 1358/1992, 1957/2010, 2013/2013, 2121/2015, 2168/2017, além de diversas resoluções que alteravam, pontualmente, a norma vigente à época, como a Res. 2.283/2020 que alterou parcialmente o conteúdo da Resolução CFM nº 2168/2017.</p>
<p>Todavia, enquanto o CFM legisla sobre reprodução humana assistida, o Poder Legislativo assiste passivamente à ausência de lei sobre a matéria.</p>
<p>Considerando que não há lei, a resolução do CFM assume um protagonismo normativo e é aplicada como se lei fosse, o que não impede o questionamento e sucessivos reconhecimentos judiciais de violação ao princípio da legalidade.</p>
<p>O presente artigo pretende apontar as mudanças implementadas pela nova resolução e algumas considerações sobre o tema.</p>
<h3>Mudanças promovidas</h3>
<p><strong>Quantidade de embriões transferidos:</strong></p>
<p>Houve a alteração do número de embriões transferidos de acordo com a idade da mulher: antes, havia três faixas etárias (até 35 anos, entre 36-39 anos e com 40 anos ou mais), agora há apenas duas faixas etárias (até 37 anos e para aqueles com mais de 37 anos).</p>
<p>Na exposição de motivos, o CFM justifica essa alteração pois “os avanços tecnológicos e a melhoria das taxas de gravidez possibilitaram a redução no número de embriões transferidos, com redução do risco de gestação múltipla.”</p>
<p>Contudo, a supressão de faixas etárias cuja quantidade de embriões variava entre 02 para as mulheres mais jovens e até 04 para as mais velhas, implica em uma redução de oportunidades de êxito na primeira tentativa de transferência, encarecendo assim o processo e dificultando, portanto, o acesso.</p>
<p><strong>Retirada da previsão de objeção de consciência (do texto e da exposição de motivos)</strong></p>
<p>O CFM mantém a permissão “das técnicas de reprodução artificial para heterossexuais, homoafetivos e transgêneros” e suprime qualquer menção à autonomia do médico para recusar-se a realizar esses procedimentos.</p>
<p>Com isso, o CFM adequa-se ao ordenamento jurídico brasileiro, compreendendo que a objeção de consciência é um direito do médico, mas não pode ser usado para fins discriminatórios.</p>
<p>Contudo, a nova redação apresenta resquícios de discriminação ao usar o termo “homoafetivos” ao invés de “homossexuais”, pois, pelo paralelismo, ou falamos “heteroafetivos e homoafetivos” ou falamos “heterossexuais e homossexuais”.</p>
<p>Ademais, a previsão de uma classificação / rotulagem daqueles que poderão fazer usos das técnicas de RHA é desnecessária, posto que o item II.1 fala em “todas as pessoas capazes”, de modo que não há nenhuma utilidade, necessidade ou mesmo fundamento para a existência do item II.2.</p>
<p><strong>Registros quantitativos, perante as Clínicas, sobre os abortamentos decorrentes de procedimentos de RHA</strong></p>
<p>A nova resolução traz a nova previsão de exigir que as clínicas mantenham um registro permanente das gestações e de seus desfechos, incluindo o abortamento (item III.2). Esse tópico majora o direito à informação dos autores do projeto familiar, de modo que o dado quantitativo sobre abortamentos apenas reforça a autonomia do paciente e o processo de consentimento informado.</p>
<p><strong>Supressão da expressão “não-infertilidade” como causa para RHA em uniões homoafetivas femininas. </strong></p>
<p>As gestações compartilhadas em uniões homoafetivas trazia a previsão expressa de possibilidade em casos de “não-infertilidade”. A nova resolução trouxe a previsão de que casais homoafetivos poderão fazer uso da gestação compartilhada, sem trazer como hipótese expressa a “não infertilidade”. Considerando que casais heterossexuais podem fazer uso independentemente da existência de causa ou não de infertilidade, andou bem o CFM ao estender essa mesma previsão para casais homoafetivos.</p>
<h3>Identificação dos doadores que sejam parentes até 4º grau</h3>
<p>Agora os doadores e receptores poderão se conhecer quando o procedimento se tratar de doação de gametas para parentes até o 4º grau, desde que não incorra em consanguinidade.</p>
<p>Na exposição de motivos dessa alteração, o CFM afirmou que levou em consideração o “número significativo de decisões judiciais a favor da doação de gametas entre parentes”, razão pela qual criou essa exceção. Entende-se aqui que a exceção se aplica apenas ao projeto familiar de casais, na medida em que projetos monoparentais promoverão a consanguinidade, ressalvadas as hipóteses de parentesco civil, entre doador e receptor.</p>
<p>Especificamente em relação ao referido item citado, cria-se um empecilho para formação de embriões com material genético de parentes, incluindo primos, o que demonstra um rigor e restrição infundados, na medida em que a Lei Civil só veda, por exemplo, o casamento entre parentes até o 3º grau. Ou seja, para o Código Civil, primos podem se casar e reproduzir, mas, para o CFM, primos não poderão ser doadores/receptores nos procedimentos de RHA.</p>
<h3>Mudança da idade para doação de gametas</h3>
<p>Houve um aumento da idade máxima para doação de gametas por mulheres (35 para 37 anos) e diminuição da idade para os homens (50 para 45 anos).</p>
<p>Se um dos argumentos trazidos pela nova norma é a inovação tecnológica, por qual motivo houve a redução do direito de homens de participarem como doadores na RHA? Diferentemente das mulheres em relação à ovogênese, os homens produzem gametas a partir da puberdade e durante a vida adulta. Logo, essa redução, a pretexto de reduzir a aparente desigualdade de gênero no procedimento de RHA, desconsidera o próprio entendimento em relação à gametogênese e a evolução tecnológica.</p>
<h3>Limites máximo de embriões gerados</h3>
<p>Agora o limite máximo de embriões gerados é de 8. Pesquisa realizada pelo SisEmbrio em de 2018 demonstrou que existem no país cerca de 88.776 embriões criopreservados. Segundo a Anvisa, no ano de 2017 houve um crescimento de 17% no número de embriões criopreservados em relação ao ano anterior.</p>
<p>O Brasil tem uma das maiores populações de embriões criopreservados e na exposição de motivos dessa resolução o CFM deixou clara sua preocupação com o crescente número de embriões congelados e abandonados, assim, o objetivo dessa fixação foi diminuir o crescimento desse número. Todavia, entendemos que o CFM deveria ter incluído critérios sobre a viabilidade do embrião criopreservado.</p>
<h3>Necessidade de autorização judicial para descarte de embriões</h3>
<p>A possibilidade de descarte de embriões congelados há mais de 3 anos já estava prevista na resolução CFM 2.168/2017, contudo, inova o CFM ao prever a necessidade de autorização judicial, exigência esta não prevista na Lei de Biossegurança – Lei 11.105/2005, demonstrando que a medicina defensiva tem pautado as normas desse conselho, que prefere dificultar a pesquisa com embriões e lotar, o já assoberbado, Poder Judiciário de demandas que não deveriam ser judicializadas.</p>
<h3>Responsabilização pela escolha dos gametas/embriões</h3>
<p>Na antiga resolução, a responsabilidade pela escolha dos embriões era do médico, porém a nova resolução transferiu essa responsabilidade para os pacientes. A justificativa apresentada para essa alteração está baseada no “respeito à autonomia para a formação de sua família”, todavia, essa justificativa não parece plausível já que sob a égide da resolução anterior, era costume que os médicos incluíssem os usuários na escolha.</p>
<p>Parece aqui, mais uma vez, que o CFM adota uma postura defensiva, postura essa que não deve prosperar quando, em um caso concreto, a escolha dos usuários for viciada por negligência informacional ou por um erro técnico do médico.</p>
<p>Ou seja, as informações devem ser prestadas ao paciente para que, no exercício de sua autonomia, decida, de modo que não nos parece razoável simplesmente atribuir a responsabilidade aos usuários.</p>
<h3>Retirada da previsão doença grave</h3>
<p>A antiga resolução trazia, no momento da criopreservação, o dever de prever a destinação em caso de divórcio, dissolução de união estável, doença grave e falecimento de um ou todos os envolvidos. A nova resolução retirou a obrigatoriedade de previsão de destinação dos embriões em caso de doença grave de um dos receptores.</p>
<p>Em tese, deveria ser privilegiada a autonomia do paciente, de modo que a destinação dos embriões em caso de doença grave que inviabilize a manifestação de vontade ou que comprometa o discernimento já deveriam estar previstas, evitando-se que terceiro represente o potencial usuário em razão da doença.</p>
<h3>Vedação que a clínica intermedie a cessão temporária de útero</h3>
<p>Apesar da a cessão temporária de útero ser gratuita, andou bem o CFM ao vedar a participação da clínica na intermediação, constituindo essa vedação em mais uma trava para que não ocorra a comercialização e a negociação da gestação de substituição, de modo que a cessão se baseie, única e exclusivamente, em critérios de fraternidade e solidariedade.</p>
<h3>Exigência que a cedente de útero já tenha 1 filho</h3>
<p>Trazendo previsão que não possui correspondência com a resolução anterior, o CFM exige que a cedente de útero já tenha um filho. Ou seja, criou-se uma previsão normativa que exige que a mulher já tenha filhos, gerando uma presunção de que a mulher que não tem filhos pode ter criar conflitos com o(s) autor(es) do projeto familiar.</p>
<p>Essas foram as mudanças implementadas, porém, entre erros e acertos, o CFM se vê em verdadeira encruzilhada, posto que assume uma responsabilidade imposta pela omissão legislativa. Em um cenário ideal, normas sobre Reprodução Humana Assistida não deveriam ser discutidas exclusivamente pela classe médica através da Câmara Técnica de Reprodução Assistida do CFM, Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida, Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, Sociedade Brasileira de Reprodução Humana e conselheiros federais e regionais de Medicina, mas deveria ser produto de um debate plural, democrático e transparente.</p>
<hr />
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JOTA

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