Gabrielle Tatith Pereira

O Plenário do Supremo Tribunal Federal analisará, no dia 10 de junho de 2020, pedido do Procurador-Geral da República para que sejam suspensas as investigações do Inquérito (Inq) nº 4781 STF até que o colegiado estabeleça os limites e as balizas para a tramitação do inquérito, resguardando-se os preceitos fundamentais consagrados na Constituição Federal.
O inquérito foi instaurado pelo Presidente da Corte, Dias Toffoli, com o objetivo de apurar “notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus calumniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”. Como relator, foi designado o Ministro Alexandre de Moraes.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico" target="_blank" rel="noopener noreferrer"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
O pedido cautelar foi protocolado nos autos da ADPF nº 572, ajuizada ainda em 2019 pelo Partido Rede Sustentabilidade com o propósito de declarar a inconstitucionalidade da portaria que instaurou de ofício o Inquérito nº 4781, e constituiu resposta ao cumprimento de medidas cautelares penais contra diversos investigados bolsonaristas, inclusive deputados federais, a despeito da manifestação contrária do Parquet quanto às diligências.
Sustenta o chefe do órgão ministerial que a possibilidade de instauração atípica de inquérito judicial pelo Poder Judiciário não admite a desconsideração, na fase pré-processual, dos direitos e das garantias fundamentais dos investigados e da indispensável supervisão do Ministério Público nas diligências que impliquem a participação da polícia judiciária ou a restrição de direitos individuais.
Duramente criticado desde a sua instauração por se tratar de iniciativa da própria Corte e por não ter como objeto fatos e investigados claramente delimitados, o Inquérito nº 4781 provocou reação da então Procuradora-Geral da República, Raquel Dogde, que oficiou ao relator ressaltando a violação às atribuições constitucionais do Ministério Público, a imprestabilidade das provas produzidas e a imperiosidade do seu arquivamento.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
<blockquote class="jota-article__eye">O imbróglio coloca no centro do debate jurídico nacional o papel do Supremo Tribunal Federal na investigação de autoridades com prerrogativa de foro. O instituto constitui garantia indispensável ao livre e pleno desempenho do cargo público e se reveste de natureza funcional, e não pessoal, dissociando-se, portanto, da ideia de privilégio.</blockquote>
O art. 102, inc. I, alínea b, assenta a competência jurisdicional do STF para processo e julgamento de crimes comuns praticados por Presidente e Vice-Presidente da República, membros do Congresso Nacional, ministros da Corte e Procurador-Geral da República.
Muito embora o dispositivo não faça expressa referência ao momento da investigação criminal, a efetividade da garantia constitucional da prerrogativa de foro depende da supervisão judicial do STF durante toda a fase de investigação, retirando-se do delegado de polícia a atribuição de instaurar e presidir o inquérito policial, bem como de indiciar a autoridade investigada. Esse entendimento tem sido reafirmado pelo STF desde o voto condutor do Ministro Gilmar Mendes na Questão de Ordem nos autos do Inquérito nº 2.411,<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> em que se reconheceu a nulidade da instauração do inquérito, da investigação e do indiciamento promovido pela autoridade policial em face de parlamentar federal.
Tratando-se de autoridade com prerrogativa de foro, a Corte tem entendido que o inquérito deve ser supervisionado pelo Ministro relator e presidido pelo Procurador-Geral da República, a quem incumbe a instauração da investigação e o seu impulso oficial, com o requerimento de diligências e de medidas cautelares penais. À autoridade policial incumbe uma atuação colaborativa como polícia judiciária, mas sempre sob o crivo e o controle da autoridade ministerial e da autoridade judicial.
Disso resultam duas consequências de ordem constitucional quanto à investigação de autoridade com prerrogativa de foro: a atribuição da autoridade policial no inquérito supervisionado por Ministro do STF é distinta da atribuição de investigação nos inquéritos policiais em geral; a iniciativa da investigação e de todas as diligências investigatórias, em especial as medidas cautelares de natureza penal, é atribuição exclusiva do Procurador-Geral da República, titular da ação penal pública incondicionada, tanto sob a perspectiva da legalidade quanto sob a perspectiva da conveniência e da oportunidade,<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> do que resulta a impossibilidade de o Ministro supervisor deferir medidas cautelares à revelia ou contrariamente à manifestação de vontade do órgão de investigação e de acusação.
Como regra, o inquérito policial rege-se pelo princípio da oficiosidade, de modo que a autoridade policial, tomando conhecimento de fato que possa configurar crime de ação penal pública incondicionada, deve iniciar de ofício as investigações. Em atenção ao modelo acusatório, o juiz, na fase pré-processual, permanece alheio aos fatos e às provas, à exceção das medidas cautelares reservadas à jurisdição, hipótese em que atua como juiz de garantias, ou seja, atua para preservar direitos e garantias fundamentais do acusado.
O sistema acusatório adotado pela Constituição Federal de 1988 sustenta-se na separação das funções de investigação e acusação, de um lado, e julgamento, de outro. É garantia fundamental do cidadão ser processado e julgado por juiz imparcial, que não tenha sofrido influência (ou contaminação) das provas produzidas na fase inquisitorial. A diferenciação funcional entre órgão de acusação e órgão de julgamento é garantia nuclear da legitimidade do processo penal.
Qual, então, o sentido da supervisão do inquérito que investiga autoridade com prerrogativa de foro por um Ministro do Supremo Tribunal Federal? Se o Juiz, no sistema acusatório, deve estar afastado dos atos de investigação, interferindo em situações excepcionais para a salvaguarda dos direitos fundamentais do cidadão acusado, a supervisão do inquérito de autoridade com prerrogativa de foro por Ministro do Supremo Tribunal Federal (que também detém prerrogativa de foro) somente pode ter o sentido de salvaguardar as prerrogativas inerentes ao cargo público, porque, em relação às garantias e direitos fundamentais, essas autoridades equiparam-se a qualquer outro cidadão.
A proteção constitucional da prerrogativa de foro direciona-se à função pública e à preservação da independência entre os poderes da República, evitando-se a utilização política da investigação. O Ministro supervisor do inquérito tem a nobre e relevantíssima missão constitucional de viabilizar a investigação sem prejudicar ou reduzir as prerrogativas inerentes ao cargo público. Esse é, precisamente, o sentido da supervisão dos atos investigatórios de autoridades com prerrogativa de foro.
Essa compreensão está em consonância com o modelo acusatório e com a impossibilidade de que o juiz tenha iniciativa probatória na fase investigatória, como, aliás, tem sido defendido pelo STF em reiterados precedentes. No julgamento do HC n. 82.507/SE,<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> por exemplo, a Corte decidiu pela impossibilidade de o juiz requisitar de ofício novas diligências probatórias quando o Ministério Público tenha se manifestado pelo arquivamento do inquérito que investigava autoridade com prerrogativa de foro.
A mesma ratio aplicada para o pedido de arquivamento deve ser aplicada para o caso de diligências investigatórias no inquérito instaurado para apurar a conduta de autoridade com prerrogativa de foro. O Ministro supervisor do inquérito não pode determinar a realização de diligências, especialmente o cumprimento de medidas cautelares penais, à revelia ou contrariamente à vontade do Procurador-Geral da República, titular da investigação e da ação penal.
Admitir-se o deferimento de medidas cautelares penais à revelia ou contrariamente à manifestação do órgão de acusação (no caso, o Procurador-Geral da República) na fase pré-processual implica admitir, via reversa, a produção de prova ex officio pela autoridade judicial, o que contraria frontalmente o sistema acusatório. Reitere-se, a supervisão judicial da investigação de autoridade com prerrogativa de foro é garantia da função pública e da preservação da independência entre os poderes da República. Não pode, portanto, representar um minus em relação ao sistema acusatório constitucionalmente assegurado a todos os cidadãos.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> TUROLLO JR., Reynaldo; FABRINI, Fábio. Dogde enfrenta STF e diz que arquivou inquérito sobre Fake News. Folha de São Paulo, 16 de abril de 2019. Disponível em <a href="https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/04/dodge-envia-oficio-ao-stf-afirmando-ter-arquivado-inquerito-sobre-fake-news.shtml">https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/04/dodge-envia-oficio-ao-stf-afirmando-ter-arquivado-inquerito-sobre-fake-news.shtml</a>. Acesso em 05 jun. 2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Supremo Tribunal Federal. Plenário. Questão de Ordem no Inquérito 2411 QO. Relator Ministro Gilmar Mendes. 10/10/2007. No mesmo sentido: Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Agravo Regimental na Reclamação nº 13093. Relator Ministro Edson Fachin. 06/10/2015.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ressalte-se que o STF reconheceu a constitucionalidade dos poderes investigatórios do Ministério Público no julgamento do RE n. 593727.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> “[...] III. Ministério Público: iniciativa privativa da ação penal, da qual decorrem (1) a irrecusabilidade do pedido de arquivamento de inquérito policial fundado na falta de base empírica para a denúncia, quando formulado pelo Procurador-Geral ou por Subprocurador-Geral a quem delegada, nos termos da lei, a atuação no caso e também (2) por imperativo do princípio acusatório, a impossibilidade de o juiz determinar de ofício novas diligências de investigação no inquérito cujo arquivamento é requerido”. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma. Habeas Corpus nº 82507. Relator Ministro Sepúlveda Pertence. 10/12/2002.

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JOTA

A diferenciação funcional entre órgão de acusação e órgão de julgamento é garantia nuclear da legitimidade do processo penal

Inquérito das fake news: STF na investigação de autoridades com prerrogativa de foro

A diferenciação funcional entre órgão de acusação e órgão de julgamento é garantia nuclear da legitimidade do processo penal