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Inquérito civil na seara eleitoral: comentários à jurisprudência do TSE

Retorno ao antigo entendimento representará uma grave retrocesso ao regime democrático brasileiro

Crédito Antonio Cunha/ASICS /TSE

No ano de 2009, a Lei das Eleições (Lei n. 9.504/97) sofreu múltiplas alterações, por conta da edição da Lei n. 12.034, merecendo destaque o acréscimo do artigo 105-A. O aludido dispositivo dispõe expressamente que “em matéria eleitoral, não são aplicáveis os procedimentos previstos na Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985”.

A citada Lei n. 7.347/1985 – cujos procedimentos “não são aplicáveis” em matéria eleitoral – não é nada mais nada menos que a Lei da Ação Civil Pública, o núcleo central do microssistema processual coletivo. O que espantou, todavia, não foi o enunciado normativo em si, mas si a dimensão que lhe atribuiu a interpretação restritiva originariamente empregada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no julgamento do RO n. 4746-42.

Naquela ocasião, entendeu o TSE que o Ministério Público Eleitoral não pode se valer do inquérito civil público no âmbito eleitoral, entendimento que foi reafirmado posteriormente em alguns precedentes:

[…]. 3. Conforme decidido por esta Corte no julgamento do RO nº 4746-42/AM, o Ministério Público Eleitoral não pode se valer do inquérito civil público no âmbito eleitoral, consoante a limitação imposta pelo art. 105-A da Lei nº 9.504/97. Ressalva do entendimento do relator. […].” (Ac. de 27.2.2014 no RO nº 489016, rel. Min. Dias Toffoli.)

A partir de tais precedentes, naturalmente, muitos sustentaram a inconstitucionalidade do art. 105-A da Lei das Eleições. Não é disso que se trata, contudo. A verdade é que o citado dispositivo sequer veda a utilização do inquérito civil no âmbito eleitoral, merecendo uma interpretação conforme a Constituição.

Ora, como cediço, à luz das contribuições teóricas de autores como de Antonio Gidi[1] e Mafra Leal[2], entende-se por ação coletiva aquela proposta por um legitimado extraordinário (ou substituto processual), em defesa de um direito naturalmente ou acidentalmente coletivo, apta à produção de uma decisão final cujos efeitos são extensíveis a uma comunidade ou coletividade.

Assim sendo, é claro que as ações propostas pelo Ministério Público, na seara eleitoral, ostentam a feição coletiva. Em tais casos, o órgão ministerial exerce a função de tutela da sociedade, em defesa do regime democrático (art. 127, CRFB/88), na qualidade de substituto processual (legitimado coletivo).

A razão de ser do art. 105-A da Lei das Eleições é bem simples: às ações eleitorais deve ser aplicado um procedimento próprio, com normas especiais que levam em consideração a celeridade exigida no período eleitoral. Os prazos são diversos, a instrução é diversa, enfim, o procedimento é diverso. Isso, contudo, não aniquila o processo eleitoral, apenas reconhecendo o caráter especial de suas normas.

O mesmo não pode ser dito em relação ao inquérito civil, vez que seu regramento não encontra previsão especial correlata na legislação eleitoral. E nem queria o legislador tratar de elementos extrajudiciais ao editar o art. 105-A da Lei n. 9.504/97. Não bastasse isso, sequer o dispositivo em questão seria capaz de vedar a utilização do inquérito civil, eis que tal instrumento se encontra previsto na própria Constituição (art. 129, III), na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei n. 8.625/1993, art. 10, IX, “d”) e na Lei Orgânica do Ministério Público da União (LC 75/1993, art. 6º, VII; art. 7º; art. 38, I e art. 150, I).

Por fim, é importante notar que todas as medidas investigativas do inquérito civil se encontram também previstas fora da Lei n. 9.504/97, a exemplo do amplo poder de requisição, notificação, acesso e recomendação (arts. 7º e 8º da LC n. 75/93 e art. 26 da Lei n. 8.625/1993). Assim sendo, ainda que não fosse cabível o inquérito civil, seriam cabíveis todas as medidas que lhe são próprias, bastando a mudança do nome do procedimento a ser aplicado – a exemplo do Procedimento Preparatório Eleitoral (PPE). E aqui vale a crítica: algo vai mal no Direito, quando a simples mudança de nome de algo resolve o imbróglio…

Em bom tempo, o próprio Tribunal Superior Eleitoral alterou a sua jurisprudência, em especial a partir de 2014:

[…] Eleições 2014. Governador. Representação. Conduta vedada a agentes públicos. Omissão. Contradição. Obscuridade. Inexistência. Rejeição. […] 3. A jurisprudência inicialmente firmada quanto à impossibilidade de instauração de inquérito civil público no âmbito desta Justiça incidiu apenas para as Eleições 2010 e 2012. Por conseguinte, a mudança desse entendimento para o pleito de 2014 em diante (caso dos autos) não constitui afronta à segurança jurídica (art. 16 da CF/88)” (Ac. de 3.5.2016 no ED-AgR-REspe nº 131483, rel. Min. Herman Benjamin).

Assim sendo, de acordo com o entendimento da Corte que passou a valer para as eleições de 2014, não devem ser consideradas ilícitas as provas colhidas pelo MP no âmbito de inquérito civil ou procedimento preparatório eleitoral (REspe 545-88/MG, Rel. Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJe 4.11.2015; AgR-REspe 1314-83/PI, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJe 11.3.2016; AgR-RO 4981-09/AM, Rel. Min. LUIZ FUX, DJe 27.10.2016).

Em síntese, passou o TSE a entender que o art. 105-A da Lei 9.504/97 deve ser interpretado conforme o art. 127 da CF/88, no qual se atribui ao Ministério Público prerrogativa de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e de interesses sociais individuais indisponíveis, e o art. 129, III, que prevê inquérito civil e ação civil pública para proteger interesses difusos e coletivos (REspe n. 14272/PI).

Espera-se que tal entendimento siga firme a forte nos próximos anos, devendo o TSE observar o disposto no art. 926 do NCPC, que inaugurou o dever de estabilidade e coerência dos tribunais em relação à sua jurisprudência. O retorno ao antigo entendimento representará certamente uma grave retrocesso ao regime democrático brasileiro e um duro atentado à lógica jurídica.

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[1] GIDI, Antonio. El concepto de acción colectiva. In: ______; MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer (Coord.). La tutela de los derechos difusos, colectivos e individuales homogéneos: hacia um código modelo para Iberoamérica. 2. ed. México: Porrúa, 2004. Disponível em: <http://www.gidi.com.br/publications/>. Acesso em: 14 jun. 2016, p. 14.

[2] LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 13.