Davi Tangerino

Thamires Maciel Vieira

O <a href="https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2022/04/fianca-de-torcedor-do-boca-acusado-de-racismo-foi-paga-por-consulado-argentino.shtml">cidadão argentino Leonardo Ponzo foi preso em flagrante por injúria racial</a> praticada durante o jogo entre Boca Juniors e Corinthians no último dia 26 de abril. A ele foi imposta fiança de R$ 3.000, o que gerou controvérsia no mundo jurídico, já que o crime de racismo, nos termos da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm">Constituição Federal</a> (art. 5º, XLII) é “inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.
A regulamentação do mandado criminalizador constitucional veio em 5 de janeiro de 1989, por meio da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm">Lei 7.716</a>, que, além de diversas figuras específicas, geralmente incriminando condutas que impeçam o acesso a direitos específicos (desde inscrição de aluno em estabelecimento de ensino até atendimento em restaurante e afins), criou, ainda, um tipo aberto, no art. 20: “praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, por religião, etnia ou procedência nacional”, com pena de reclusão, de 2 a 5 anos e multa.
Não se pode perder de vista a denúncia realizada há anos por parte da crítica de que a criminalização pelo diploma legal das condutas individuais de racismo explicaria parte dos obstáculos à sua eficácia. Isso porque estaríamos no Brasil diante de um racismo que raramente se apresenta de forma aberta.
Esse marco punitivo foi alterado em 1997, por meio da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9459.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%209.459%2C%20DE%2013,7%20de%20dezembro%20de%201940.">Lei 9.459</a>, que, em síntese: a) retirou o recorte do meio de comunicação, b) incluiu a palavra “cor” como forma de preconceito, c) diminuiu a pena privativa de liberdade para 1 a 3 anos, e d) criou uma forma qualificada de injúria preconceituosa, punida com reclusão de 1 a 3 anos e multa.
O novo desenho atendia, em parte, à percepção de que o tipo de racismo do art. 20 era de difícil aplicação, e acabava sendo desclassificado para crime contra a honra. Assim, melhor seria um crime de injúria qualificada, com a mesma pena do art. 20. Por um caminho ou por outro, o agente de crime de discriminação responderia pela mesma sanção.
Em 2021, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal</a> (STF), ao julgar o HC 154.248/DF, enquadrou a injúria racial, como espécie, como um crime de racismo, como gênero, tornando-o, assim, igualmente inafiançável e imprescritível, na linha de decisões congêneres do Superior Tribunal de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/superior-tribunal-de-justica">STJ</a>).
Tal como desenhado pelo STF, efetivamente ao senhor Leonardo Ponzo não se poderia ter arbitrado fiança.
O caso concreto, todavia, talvez revele um certo efeito retórico da decisão do STF, apenas no que diz respeito à fiança. Em 1988, quando da promulgação da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/constituicao-federal">Constituição Federal</a>, a prisão cautelar tinha forte prevalência, com diversos casos de prisões automáticas; o Código Penal autorizava medidas alternativas à pena para sanções muito baixas: até 1 ano, em crimes dolosos, desde que não fosse o sujeito reincidente. A fiança, no que interessa ao debate, entre 1988 e 2011, era uma contracautela da prisão em flagrante, isto é, impunha um ônus econômico ao acusado, que se não comparecer aos atos processuais, perde o valor depositado, e já assegura eventual pagamento de pena de multa ou de prestação pecuniária, em caso de condenação. Realmente, a impossibilidade de prestar fiança, naquele desenho, dava ampla margem para prisão cautelar.
Esse marco, porém, foi sendo alterado, tanto pela via da jurisprudência, que extirpou as prisões automáticas, submetendo-as todas grosso modo ao regime geral da prisão preventiva (até mesmo a prisão temporária, conforme julgamento recente), como por sucessivas alterações no marco processual penal. Desde 1994, incluíram-se como motivos autorizadores da prisão cautelar a conveniência da instrução criminal, assegurar a aplicação da lei penal e a garantia das ordens pública ou econômica.
Mas foi em 2011 que o tema foi profundamente alterado, estabelecendo-se métrica desatrelada à possibilidade ou não de prestar fiança, porém, antes, à gravidade em abstrato do crime (dolosos e puníveis com pena privativa de liberdade superior a 4 anos) ou à situação ao acusado (existência de condenação prévia, transitada em julgado, por crime doloso, observado o prazo depurador de 5 anos, para fins de reincidência ou ter descumprido medida protetiva de urgência, no âmbito da violência doméstica).
De maneira ainda mais eloquente, o CPP proibiu prisões automáticas (art. 313, § 2º) e criou diversas medidas cautelares diversas da prisão, no art. 319, nessas incluídas a fiança. O novo desenho prestigia a garantia constitucional da presunção de inocência, reservando a prisão cautelar a casos particularmente graves, com claro prestígio à liberdade e, alternativamente, a medidas menos invasivas que a prisão.
Chega-se ao cerne do debate: presos em flagrante por racismo têm, observados os demais requisitos, direito a medidas diferentes da prisão cautelar, já que a pena máxima do referido crime é de 3 anos. Assim, em que pese a fiança ser expressamente proibida para crimes de racismo, nos termos do art. 323, I, do CPP, outras medidas são aplicáveis, a exemplo do comparecimento periódico em juízo, proibição de ausentar-se da Comarca, recolhimento domiciliar no período noturno etc.
Afirmar, portanto, o crime de racismo como inafiançável, embora tecnicamente correto, não tem o mesmo significado prático que tinha em 1988, diante de medidas diversas da prisão. Em verdade, hoje a classificação de um crime como inafiançável perdeu sentido efetivo. Mesmo para casos odiosos, como o racismo, há que se observar o marco geral das prisões cautelares, que nada mais fazem que concretizar outra garantia constitucional: a presunção de não culpabilidade. Assim, a prisão preventiva de réu primário, por injúria racial, deve ser excepcional e fundada em elementos tipicamente cautelares, para além, portanto, da gravidade do fato em si.

STF justiça

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JOTA

Afirmar que racismo é crime inafiançável, embora tecnicamente correto, não tem o mesmo significado prático de 1988

Injúria racial e fiança: um debate desfocado

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