Lucas Fucci Amato

Nas últimas semanas temos assistido a disputas públicas entre os Três Poderes pela prerrogativa de decidir <a href="https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/09/senado-ve-interferencia-do-stf-e-avalia-retomar-temas-julgados-pelo-tribunal.shtml?utm_campaign=jota_info__direito_na_midia_-_19092023&amp;utm_medium=email&amp;utm_source=RD+Station">pautas sensíveis, como drogas, aborto e imposto sindical</a>. Observamos, de um lado, a tentativa legislativa de reverter o julgamento do STF sobre a inconstitucionalidade do marco temporal para a demarcação de terras indígenas e, de outro, a <a href="https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/10/09/lula-e-pressionado-a-nao-vetar-marco-temporal-e-tema-abre-divergencia-no-governo.ghtml">disputa, dentro do Executivo, sobre o possível veto presidencial à lei</a>, veto este que poderá ser derrubado no parlamento, sem que nada impeça potenciais novas ações judiciais sobre o tema.
Finalmente, o Senado insinua tomar a dianteira nas propostas de reforma do desenho institucional e da dinâmica decisória do Supremo, <a href="https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/10/04/ccj-senado-projeto-decisoes-monocraticas-stf.htm">limitando as decisões monocráticas</a>, pondo em discussão a possibilidade de <a href="https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/10/05/apos-pecs-que-limitam-stf-pacheco-nega-afronta-a-judiciario.htm">mandato para os ministros da corte</a> e até levantando o debate sobre alguma forma de <a href="https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/10/04/barroso-nao-ve-razao-para-mudanca-no-stf-mas-pondera-nenhum-tema-e-tabu.htm">revisão das decisões do STF pelo Congresso</a>, em direção a um modelo de controle judicial de constitucionalidade mais “fraco”. Da parte do Supremo, seu novo presidente <a href="https://congressoemfoco.uol.com.br/area/justica/barroso-se-opoe-a-pec-do-senado-que-limita-decisoes-individuais-do-stf/">repudia que reformas do tipo sejam encaminhadas legislativamente</a>, mas também já admite, estrategicamente, <a href="https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2023/10/barroso-diz-que-aborto-precisa-de-mais-debate-e-nao-sera-pautado-no-stf.shtml#:~:text=O%20presidente%20do%20STF%20(Supremo,que%20ser%C3%A1%20pautado%20ou%20n%C3%A3o.">retirar de pauta julgamentos sobre temas controversos como descriminalização do aborto</a>.
A última década registra outros exemplos interessantes de teste dos limites de atribuição de cada Poder. É o caso de <a href="https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2020/03/ministro-do-stf-envia-minuta-de-pec-de-semipresidencialismo-a-politicos-que-o-procuram-sobre-crise.shtml">PEC sugerida por ministro do STF para mudar o sistema de governo em direção ao “semipresidencialismo”</a>. Igualmente, é ilustrativa a reação do Congresso ao STF por meio da emenda constitucional 96/2017, que incluiu o §7º no art. 225 da Constituição: “não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais”. Tratou-se justamente de uma reversão legislativa (backlash) do julgamento da ADIn 4.983 de 2016, quando o tribunal considerou <a href="https://www12.senado.leg.br/institucional/presidencia/noticia/eunicio-oliveira/pec-da-vaquejada-e-promulgada-em-sessao-solene-do-congresso">inconstitucional lei estadual que regulava a vaquejada</a>.
Podemos analisar esses embates institucionais a partir de uma analogia entre a formação de preços na economia, a formação de consenso na política e a determinação da validade e do sentido das normas jurídicas. A inflação ocorre quando as transações, as decisões ou as interpretações presumem estar sustentadas por mais confiança do que realmente podem gerar; a deflação ocorre quanto as operações econômicas, políticas ou jurídicas se restringem e deixam de usar o apoio e a confiança disponíveis.
Assim, na economia a inflação desvaloriza a moeda e reduz o poder de compra: a demanda supera a oferta e os preços sobem. Na deflação, os preços caem e os mercados se retraem, pois se reduzem as transações: o consumo e o comércio ficam aquém da produção e da oferta. Na política, promessas demagógicas inflacionam e desvalorizam o poder; geram expectativas além do apoio social disponível para concretizá-las. Já governos conservadores subutilizam o poder do Estado e o apoio disponível para reformas; mantêm intocados as estruturas sociais e os privilégios incrustados.
Chegando ao que mais de perto nos interessa: quando juízes deixam de concretizar o sentido da constituição, em suas instituições fundamentais e naquelas normas que mais claramente se depreendem do texto constitucional, estão eles subutilizando a constitucionalidade, a validade, o apoio textual e normativo disponível para sua tomada de decisão. Deflacionam a Justiça.
Por outro lado, quando juízes avançam em interpretações polêmicas, com baixo amparo na programação predefinida pelas normas aplicáveis, caminham em direção a uma inflação jurisdicional, a qual desvaloriza socialmente o Poder Judiciário, corroendo a confiança na instituição. Mais problemática ainda é a situação em que o constrangimento dos procedimentos, papéis e programas decisórios típicos da jurisdição é driblado por expedientes como os abusos no exercício de poderes de agenda, pedidos de vista, decisões monocráticas e/ou liminares. Mais sistematicamente, a hiper-exposição individual de juízes pelos meios de comunicação os incentiva a observar mais o brilhante espelho da opinião pública do que o espectro mais restrito e minucioso da consistência jurídica e dos direitos e deveres constitucionalizados – haja vista a <a href="https://www.scielo.br/j/rdgv/a/6ztd4ZxFHNQw8qpd8WxjrtM/?format=pdf&amp;lang=pt">estratégia midiática de combate à corrupção orquestrada pela Operação Lava Jato</a>.
A questão é que a inflação das expectativas e esperanças se depara ciclicamente com a deflação, na forma de desilusão e deslegitimação. O excesso de demanda diante da oferta é “enxugado” pela diminuição de crédito, com aumento dos juros. O excesso de promessas de reformas, para além do apoio social e político disponível, gera perda de credibilidade do governo e pode alimentar reações na forma de derrotas eleitorais ou mesmo de golpes que alijam do poder as forças transformadoras. Após duas décadas de magnificação da exposição individual e institucional do STF à opinião pública – a partir de julgamentos criminais (como o mensalão) e ações de controle abstrato de constitucionalidade –, os ataques e as defesas legislativas e judiciais que se têm registrado procuram rebalancear o jogo mútuo entre os Poderes.
É uma característica institucional do Poder Judiciário a inafastabilidade da jurisdição. Porém, muitos temas que chegam aos juízes, e especialmente aos tribunais supremos e constitucionais, não contam ainda com um prévio processamento político do dissenso e do debate, que serve tanto para expandir o campo de soluções possíveis para os problemas quanto para corrigir vieses unilaterais e estabelecer pontos de consenso, inclusive angariando o suporte da opinião pública. Pode não se chegar à melhor resposta, mas se crava uma solução institucionalizada – capaz de contar com apoio geral presumido, ainda que o direito positivo seja contingente e reversível. Se a solução, ainda que não a melhor, for uma das alternativas defensáveis segundo a moldura e a textura constitucional, deve ser incorporada ao direito.
Quando o Judiciário mesmo é instado a lidar com temas que exigem reforma e inovação jurídica, o próprio constrangimento dos papéis e procedimentos judiciais não habilita aquele Poder a produzir soluções boas e legitimadas. Juízes podem até construir argumentos mais racionais e detalhados, entretanto não dispõem da ampla burocracia especializada e da legitimação representativa com que contam os Poderes eleitos.
Será que, <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/redes-foram-instrumentalizadas-por-omissao-conivente-no-8-de-janeiro-diz-moraes-31032023">como defende um ministro do STF</a>, a melhor solução para a responsabilização das plataformas digitais pela disseminação de fake news é equipará-las a empresas de mídia e publicidade, que produzem o conteúdo que veiculam? Será que a solução para a precarização do trabalho por aplicativos é equipará-lo à relação de emprego celetista, como <a href="https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2023/09/14/uber-e-condenada-a-pagar-r-1bi-e-contratar-todos-os-motoristas-por-justica.htm">entendeu o TRF2 em relação aos motoristas da Uber</a>?
A consequência previsível do reformismo judicial é o contra-ataque dos Poderes eleitos e da opinião pública em direção ao esvaziamento até dos papéis mais cruciais que o Judiciário efetivamente cumpre na defesa e garantia do Estado democrático de Direito e dos direitos fundamentais. O maximalismo judicial de curto prazo – com suas pretensões de vanguarda reformista – pode comprometer o papel mais minimalista, mas crucial e duradouro, de arbitragem judicial dos conflitos políticos e sociais pela garantia do sentido básico e consensual do texto, dos direitos e das instituições constitucionais.
É preciso estarmos atentos aos limites da jurisdição em termos das reformas que é capaz de oferecer e estabilizar. Para tanto, evitemos maniqueísmos em que a jurisdição seja idealizada como neutra e progressista, blindada a interesses corporativos parciais e vocacionada ao bem comum, enquanto que a legislação, o governo e a administração sejam necessariamente desprezados em sua representatividade democrática e capacidade técnica de solução de problemas. Está o Judiciário livre dos grupos de interesse? Em uma decisão judicial colegiada, vale no fim das contas o placar (assim como no Legislativo) ou a soma dos fundamentos de cada voto judicial produz uma motivação coerente, com rationes decidendi atribuíveis à corte como um todo e capazes de consolidar jurisprudência e precedentes?
Quais são as expectativas procedimentais e argumentativas associadas a cada arena decisória do direito? Quais as vantagens comparativas de cada uma, quais as potencialidades e quais os riscos associados a transgressões e hibridismos (por exemplo, à aproximação da jurisdição, especialmente no controle de constitucionalidade, a um papel legiferante)?
Em lugar da avaliação predefinida com respeito à consideração ou ao desprezo por uma ou outra arena decisória, é tarefa da pesquisa ponderar os riscos, as oportunidades e os limites da afirmação de direitos por meio da interpretação judicial do direito posto. Cabe discernir, de um lado, mudanças (ou conservações) possíveis pela interpretação judicial (contramajoritária, se preciso) dentro da moldura institucional estabelecida e, de outro, potencialidades técnica e democraticamente legitimadas de reforma e inovação dessas molduras institucionais.

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JOTA

Judiciário é vocacionado a garantir direitos e instituições, mas não a reformá-los

Inflação judicial versus inovação institucional

Judiciário é vocacionado a garantir direitos e instituições, mas não a reformá-los