Thiago Aguiar de Pádua

Uma jurista que em 1993 sequer sonhava em pertencer aos quadros de Juízes do Supremo Tribunal Federal escreveu, cum grano salis, mas em tintas fortes, que era possível falarmos em “dupla revisão”, ou seja, alterar as regras de vedação de proposta de emenda tendente a abolir cláusula pétrea (art. 60, § 4º da CF), para em um momento posterior alterar as vedações pretéritas. Trata-se de antigo artigo escrito pela atual presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha (Constituição e Mudança Constitucional, RIL, a 30, n. 120, out.-dez, 1993, p. 180-182), com fundamento no argumento de que impedir a dupla revisão seria “resguardar os direitos dos mortos e sobrepô-los aos dos vivos”. 
Entre tantos pontos passíveis de discussão e disputa sobre o sentido político-jurídico da CF, curiosamente, o exemplo acima (dupla revisão) é aquele que mais próximo se encontra da discussão sobre a “última palavra”, tema discutido com tanta intensidade nos últimos meses, e objeto de importante matéria/entrevista jornalística aqui mesmo no JOTA, em que 4 juristas responderam a questionamentos sobre a temática: Conrado Hübner Mendes, Eduardo Mendonça, Juliano Zaiden Benvindo e Miguel Gualano Godoy (<a href="https://jota.info/especiais/aecio-neves-o-supremo-e-o-poder-da-ultima-palavra-11102017" target="_blank" rel="noopener">Aécio Neves, o Supremo e o poder da última palavra</a>). Observações reflexivas importantes e contundentes foram exaradas, embora tendo como pano de fundo, à época, a disputa sobre a (in)constitucionalidade do afastamento de parlamentar do cargo a partir de medidas cautelares diversas da prisão.
Mencionou-se que “talvez estejamos descobrindo que o “guardião da Constituição” [seja] uma fraude” (Conrado Hübner Mendes), além da percepção de que “a construção do espaço próprio da jurisdição constitucional perante os outros Poderes não é uma operação matemática, mas uma relação dinâmica de avanços e retrocessos.” (Eduardo Mendonça), e que “é uma situação altamente controversa termos a defesa dessa expressão [“última palavra”] enquanto o STF pouco se apresenta como uma corte de direito, mas como um apanhado de opiniões individuais que, até mesmo quando apresentadas em órgãos colegiados, não dialogam entre si” (Juliano Zaiden Benvindo), mas que pode haver “um elemento oculto nesse debate e que precisa vir à lume: o regime de responsabilidade, responsividade e accountability, dos representantes do povo.” (Miguel Gualano Godoy).
Mesmo as percepções críticas destes juristas aparentam ser difusas, além de enxergarem causas diversas para as questões formuladas. No entanto, há um nicho de convergência crítica que se nutre de aspectos teóricos do embate entre o constitucionalismo e a democracia, e sobre os papéis institucionais do Supremo e do Congresso Nacional.
Se uma decisão judicial do Supremo, por exemplo, mesmo que se refira à proteção da identidade constitucional consubstanciada nas cláusulas pétreas, pode ser superada legislativamente, poderia a própria Constituição ser superada (ainda que com a difusão semântica precária de uma superação ocorrida “constitucionalmente”), na disputa sobre o sentido, alcance e limitações destas mesmas cláusulas pétreas?
Dentre as várias respostas possíveis, menciono propositalmente o argumento de Ronald Dworkin sobre a "difícil virtude da fidelidade” (The Arduous Virtue of Fidelity), para ressaltar a tentativa crítica de dizer que existiria um paradoxo referente ao “teste de fogo” do Senador Bob Dole que, ao ser questionado sobre qual seria o teste mais adequado a um candidato a juiz da Suprema Corte, disse ser adequado saber de um juiz que sua paixão “deveria ser interpretar a constituição, ao invés de emenda-la”, mas para Dworkin haveria um paradoxo nisso tudo, pois os bons juízes mencionados pelo senador Dole seriam aqueles para os quais a fidelidade ao texto constitucional importaria muito pouco, numa crítica ao originalismo frente à pretensão de fidelidade ao texto constitucional, pois seriam maus juízes “os heróis da fidelidade”.
Para isso, a peculiaridade importante da distinção entre “fidelidade ao texto constitucional” e “fidelidade às práticas constitucionais passadas” (ai incluídas decisões judiciais anteriores que interpretaram e aplicaram a Constituição). A pergunta de Dworkin, inclusive, é prévia à questão do desenho institucional: “qual [seria] a resposta adequada à pergunta sobre o que significa nossa Constituição, sem importar a que ou a quem se outorga a responsabilidade interpretativa final?” Na sua resposta, dentre vários argumentos, a analogia que deve ser sempre pautada por princípios dentro de uma peculiar assunção pragmática e realista, sempre remetida a sua obra sobre a “leitura moral da constituição”.
Mas se nossa literatura jurídica pode emitir um ruído polifônico acerca da temática inerente à última palavra, sentido e alcance possíveis, uma corte como o Supremo Tribunal Federal também, mormente se estivermos diante de polifonia que invoca diversidade de vozes dos ecos do passado da mesma corte sobre a interpretação acerca de temas como a harmonia e separação de poderes, e dos ecos de muitos outros Tribunais, entidade em audiências públicas e amici curiae (ainda indevida e imperfeitamente utilizados), tal como abordado por Kermit Roosevelt (Polyphonic Stare Decisis).
Leitura moral da constituição se converte, pluralizada, em leituras morais da constituição, e tudo fica mais interessante se refletirmos sobre nossa importação do common law, à fórceps, em 1890 (art. 386, do Decreto 848), que não trouxe consigo nem a tradição (por impossibilidade cultural) e nem valores de outra civilização (por incapacidade político-jurídica).
Problema de matriz teórica do direito, mais especialmente vinculado a determinadas áreas, como a separação de poderes e o controle de constitucionalidade. Precisamos refletir sobre a institucionalização do judicial review não apenas no Brasil, mas na América Latina como um todo. Uma região caracterizada pela crônica instabilidade política e por constituições de vida curta, de países inseridos na tradição do civil law, deveria ter sido solo infértil para o enraizamento das sementes de Marbury v. Madson, como apontado por Keith Rosenn. Segundo sua análise, inteiramente baseada em Mauro Cappelletti, o desenvolvimento do controle concentrado de constitucionalidade (centralized judicial review) foi uma resposta para três dificuldades que os países de civil law enfrentaram ao tentar implementar o controle difuso (decentralized judicial review) desenvolvido em um país de common law.
Primeiro, os países de civil law teriam aderido mais rigidamente à doutrina da separação de poderes, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade da lei é percebida como uma função política, e, portanto, incompatível com o poder judiciário de sua tradição. Segundo, os países de civil law não desenvolveram a doutrina do stare decisis, e, portanto, cada pessoa afetada pela declaração de inconstitucionalidade precisaria ajuizar a sua própria ação judicial, criando o ambiente propício para o surgimento de decisões conflitantes.
Terceiro, os juízes inseridos na tradição do civil law estariam em situação incompatível para o exercício dos poderes inerentes ao judicial review, uma vez que os tribunais supremos, no sistema da civil law, seriam grandes e desajeitados com suas múltiplas divisões, mas, curiosamente, na América Latina, desenvolveram-se modelos híbridos para tentar superar tais dificuldades, ignorando matrizes teóricas e suas implicações.
Para o professor Keith Rosenn, o modelo de súmulas no Brasil, desde a década de 1960, teria o efeito análogo ao stare decisis, numa clara confissão de que as súmulas enfraquecem o apego à separação de poderes de nossa tradição, sem embargo de outros problemas jurídico-teóricos que surgem da observação, trazendo a lume não apenas a tentativa de percepção desta busca constante pelo stare decisis, mas os problemas por trás de uma importação acrítica e inadequada, que gera mais problemas e mais complexidades.
Surgem, portanto, sucedâneos ao stare decisis, como complementado pelo professor José Levi Mello do Amaral Junior, como o atual art. 52, X da CF, bem como a regra do full bench, do artigo 97 da Constituição de 1988, o surgimento do controle concentrado de constitucionalidade a partir da EC 16/1965, as súmulas, posteriormente incorporadas na CF/88 de maneira ampliada ao lado das Súmulas Vinculantes e do controle abstrato de normas, e diversos outros mecanismos, como a repercussão geral do Recurso Extraordinário (posterior a arguição da questão de relevância federal), a reclamação e demais mecanismos de tentativa de uniformização da jurisprudência.
São tantas as vozes, mecanismos e mixagens que poderíamos mesmo falar de uma polifonia fraturada no tempo e no espaço, em que a última voz ou palavra pode ser intermediária, provisória ou primeira, numa inversão de sentidos e possibilidades, que desafiam a lógica da racionalidade sobre a (in)fidelidade constitucional, mas precisam deixar registradas a sua impressão sonora e a sua potencialidade vocal. Na multidão de gritos, um sussurro pode passar despercebido, mas também pode carregar consigo a chave para a compreensão de nossas naturalizações constitucionais cotidianas. Pode ser que dupla revisão se transforme em dupla permissão, a depender das vozes e fidelidades que ecoam no salão.

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JOTA

 Pode ser que dupla revisão se transforme em dupla permissão

(In)fidelidade constitucional e polifonia de argumentos

Pode ser que dupla revisão se transforme em dupla permissão