Yasmin Rodrigues

Outubro desse ano, além do dia das crianças no dia 12, já começou com a votação para os Conselhos Tutelares e, por todo país, o desafio é o mesmo: como consolidar a presença de defensores do Estatuto da Criança e do Adolescente (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ECA">ECA</a>) como representantes. A resposta não é óbvia, já que <a href="https://brasil.elpais.com/brasil/2020-12-15/igrejas-evangelicas-neopentecostais-dominam-conselhos-tutelares-em-sao-paulo-e-no-rio.html">neopentecostais têm sistematicamente ocupado o cargo</a> e dificultado o acesso das crianças aos seus direitos. Então, o que está em disputa é que tipo de infância o Brasil quer para suas crianças – uma infância controlada pelo discurso conservador, pelo fundamentalismo e pela polarização ou infâncias plurais, livres e cujo acesso a direitos é facilitado pelo Estado? Gostaria de aproveitar o ensejo para relembrar uma discussão que parece ter caído no esquecimento, mas que faz todo sentido para nós, pesquisadores, que além de nos preocuparmos com os dados, as tecnologias, a segurança pública, nos preocupamos com as vidas das crianças e adolescentes e com o projeto de país que os adultos estão escrevendo para elas: o uso de tecnologias de monitoramento nas escolas.
<a href="https://revistasegurancaeletronica.com.br/escolas-usam-reconhecimento-facial-para-controlar-frequencia-e-desperdicio-de-merenda/">No Espírito Santo</a>, em <a href="https://opanoptico.com.br/1-ano-de-reconhecimento-facial-nas-escolas-vigilancia-no-lugar-de-comida-em-plena-pandemia/">Goiás</a> ou no <a href="https://www.aen.pr.gov.br/Noticia/Tecnologia-de-reconhecimento-facial-na-chamada-chega-16-mil-colegios-da-rede-estadual">Paraná</a>, algumas secretarias de educação passaram a implementar totens de reconhecimento facial nas escolas públicas para controle de presença. O sistema, em tese, funcionaria substituindo os diários de presença preenchidos manualmente com base nas chamadas orais feitas pelos professores nas salas de aula. <a href="http://escritos.ibict.br/reconhecimento-facial-nas-escolas/">Com os episódios de ataques às escolas</a> no ano passado, entretanto, a questão ficou bastante controversa: o que parecia um tema de gestão escolar se tornou assunto de segurança. <a href="https://revistasegurancaeletronica.com.br/deputados-querem-big-brother-nas-escolas-com-cameras-detectores-e-reconhecimento-facial/">As tecnologias de vigilância</a>, na esteira dos discursos armamentistas da segurança pública, passaram a ser tidas como uma solução também para as escolas. 
Orientadas pelo medo da população diante da brutalidade dos atentados em creches e escolas, as medidas, em caráter de urgência, foram anunciadas sem mais detalhes e o governo federal destinou <a href="https://www.cnnbrasil.com.br/politica/governo-publica-edital-de-r-150-milhoes-para-evitar-ataques-em-escolas/#:~:text=Governo%20publica%20edital%20de%20R%24%20150%20milh%C3%B5es%20para%20evitar%20ataques%20em%20escolas,-A%C3%A7%C3%A3o%20foi%20anunciada&amp;text=O%20ministro%20da%20Justi%C3%A7a%20e,policiais%20no%20entorno%20de%20escolas.">150 milhões de reais</a> para compra de materiais de apoio à segurança. Com o mesmo tom de proteção e combate a esses eventos, pelo menos<a href="https://revistasegurancaeletronica.com.br/deputados-querem-big-brother-nas-escolas-com-cameras-detectores-e-reconhecimento-facial/"> 102 Projetos de Lei</a> foram propostos nas Assembleias Legislativas em todo país – a maioria deles prevendo a compra de equipamentos tecnológicos, o que a imprensa chamou de transformar as escolas em um “<a href="https://revistasegurancaeletronica.com.br/deputados-querem-big-brother-nas-escolas-com-cameras-detectores-e-reconhecimento-facial/">big brother</a>”. Além disso, começaram clamores pela presença da polícia nas instituições públicas de ensino. A primeira confusão começa aí: se as tecnologias de videomonitoramento e reconhecimento facial são para segurança e vêm acompanhadas da inclusão das polícias nas escolas, quem gere a política? Será que abriu-se espaço para as polícias ficarem responsáveis pelo armazenamento e tratamento dos dados de crianças e adolescentes e não mais as secretarias de educação? Não sabemos. O tema parece ter ficado em um silêncio típico do retorno à normalidade depois de uma onda de desastres.
Ainda quando o discurso de uso do reconhecimento facial era para gestão de presença do alunado, há um ano <a href="https://opanoptico.com.br/1-ano-de-reconhecimento-facial-nas-escolas-vigilancia-no-lugar-de-comida-em-plena-pandemia/">O Panóptico</a> pontuou que o investimento ultrapassava o absurdo e tratava-se de um desajuste no que era considerado prioridade para as secretarias em relação às necessidades básicas dos alunos em Goiás. Além disso, as crianças ficam em risco com dados biométricos cruzados com informações de contato e moradia que podem ser vazados e acessados por criminosos. Os alunos têm, ainda, a responsabilidade de manter os totens intactos, <a href="https://portaleduca.educacao.go.gov.br/suporte_ti/reconhecimento-facial/">sob pena de responderem criminalmente</a>.
Sob a redoma do apelo à segurança, o problema parece ainda maior: além do custo altíssimo, as crianças ficam literalmente monitoradas pela polícia, o que não parece adequado à formação de infâncias democráticas, que possam existir livremente e serem formadas com base nas próprias etapas de desenvolvimento. A medida, ainda que apareça como solução, pode trazer sérios problemas, considerando, sobretudo, as práticas abusivas das polícias pelo país. Ademais, infância não é caso de polícia. Se alguém deve ser monitorado são os articuladores de ataques, os financiadores de discursos de ódio e as big techs que lutam contra regulação das plataformas.
Veja que a mesma tecnologia – o reconhecimento facial ou o videomonitoramento – ora assumiu a função de gerência escolar, ora de segurança das crianças. Isso porque a tecnologia, em si, não possui uma função primordial, a finalidade da sua utilização é construída pelas pessoas por meio de um discurso. E os discursos produzem efeito real – mesmo que de confusão! – e, do mesmo modo, os silêncios em relação à continuidade dessas políticas, também. De acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/LGPD">LGPD</a>), dados de crianças e adolescentes são sensíveis e só podem ser obtidos por meio de autorização dos pais. 
Além disso, o uso para segurança deve ser vedado – até porque crianças e adolescentes não são assunto para gestores de segurança pública e a urgência na produção de uma resposta à sociedade não pode ser motivo para colocar esse pacto em suspenso. Sabemos que o corpo discente das escolas públicas desse país é formado majoritariamente por crianças negras e de origem popular e parece sintomático que, para essas crianças, a vigilância e não a liberdade seja uma política de Estado. Há outros caminhos. Proteger as crianças começa pela responsabilização dos adultos, pela promoção da igualdade, pelo combate às discriminações, pela defesa irrestrita da democracia e pela distinção tácita entre liberdade de expressão e discurso de ódio. Não há tarefa simples para problemas complexos. É pelo caminho árduo que o país avança. Precisa ser difícil para nós e fácil para os pequenos, não o contrário.

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JOTA

Crianças não podem ser vistas como algozes por gestores da segurança pública

Infância na mira das câmeras?

Uso de câmeras para segurança é vedado pois crianças e adolescentes não são assunto para gestores de segurança pública