Paulo Fernando Pinheiro Machado

“Não se afaste. Mantenha seu olhar no local enfaixado. É aí que a luz entra em você”. 
― Rumi (1207-1273 d.C.)  
O processo de cura, tanto no plano individual quanto no plano coletivo, é um ato de coragem. Coragem para enfrentar aquilo que nos machuca, para encarar as feridas abertas, aquelas que não são capazes de cicatrizarem por si sós e que se evitadas pioram. Se o mau praticado não for reparado, indivíduos e sociedades não encontram seu caminho de libertação, permanecendo, às vezes, séculos presos a atrocidades longinquamente cometidas.   
Nosso país, em particular, possui uma história muito violenta. Aqui uma série de brutalidades foram cometidas, cuja recusa do seu reconhecimento, em primeiro lugar, e a ausência de reparação, em segundo lugar, constituem uma espécie de trauma coletivo, traduzidos em comportamentos violentos e irracionais que tendem a se acirrar ao longo do tempo, quanto mais distante do episódio originário a sociedade se encontra. E o pecado original tem a ver com a escravidão, tanto de africanos quanto de indígenas. A escravidão é um câncer que continua a nos corroer por dentro, mesmo após a sua abolição formal.  
Com relação aos povos indígenas, uma das maiores monstruosidades contra eles cometidas foram as chamadas Guerras Guaraníticas, ocorridas entre 1753 e 1756 na região das Missões do Rio Grande do Sul. A partir de 1609, a Companhia de Jesus iniciou a construção de uma nova civilização na região da Bacia do Prata, em áreas hoje pertencentes a Paraguai, Brasil e Argentina, a partir de missões de catequização dos povos guaranis e de organização de verdadeiras cidades, as “reduções jesuíticas”. 
A mera história contada, entretanto, não é capaz de transmitir para a leitora a real dimensão da obra de construção de uma civilização nova na América do Sul, baseada, principalmente, na docilidade da cultura guarani, que os jesuítas acreditavam mesmo ser possível criar, com eles, uma utopia na terra. Uma civilização sem males. Para se ter uma vaga ideia, somente na área pertencente hoje ao Brasil, os Sete Povos das Missões ocupavam cerca de 3/5 do território do Rio Grande do Sul, com uma população de cerca de 200 mil indígenas. O tradicional Reino da Boêmia, a título de comparação, em 1648 tinha 950 mil habitantes. 
As Reduções Guaraníticas, como também eram chamadas, estavam situadas em terras de Espanha. Como a leitora deve se recordar, o Tratado de Tordesilhas (1494), que dividia as terras do novo mundo entre Portugal e Espanha, reservava a Lisboa uma pequena fração da América do Sul, englobando apenas pouco mais do que as regiões atuais do Norte e do Nordeste brasileiros. Ao longo do século XVI, contudo, por meio das bandeiras e das monções, os portugueses expandiram em muito a sua ocupação para oeste da linha de Tordesilhas e, ao mesmo tempo, os espanhóis haviam ocupado áreas significativas a leste dela, na Ásia. Por volta do ano 1700 já havia mesmo um consenso de que o Tratado de Tordesilhas deveria ser revisto. 
E foi assim que surgiu o ensejo das negociações que culminaram com o Tratado de Madri (1750). Fruto do gênio diplomático de Alexandre de Gusmão (1695-1753), natural de Santos/SP e que chegou a ser o principal assessor diplomático do Rei de Portugal, o Tratado de Madri, ao consolidar as doutrinas do uti possidetis e das fronteiras naturais no Direito Internacional Público, ratificou a expansão portuguesa no século anterior, dando ao Brasil os contornos geográficos que temos hoje. Havia, entretanto, um detalhe: o Tratado de Madri estabelecia a troca, entre Portugal e Espanha, da Colônia do Sacramento, no atual Uruguai, estabelecida por Lisboa defronte a Buenos Aires, pelos Sete Povos das Missões Rio-Grandenses.  
Por essa troca, os jesuítas e guaranis, que estavam na banda oriental do rio Uruguai, atual território brasileiro, deveriam deixar as suas enormes e monumentais cidades, com catedrais que nada perdiam para as maiores basílicas da Europa, e se transferirem para a banda ocidental do rio, atual território argentino. Havia, também, uma questão explosiva: tanto Portugal quanto Espanha tinham interesse na escravização dos indígenas, ao que se opunham fortemente os jesuítas. Não houve, contudo, possibilidade de uma solução negociada para a questão. A coroa portuguesa chega mesmo a enviar um ultimato para que deixem as reduções em impossíveis seis meses.  
Os jesuítas, então, passam o controle das missões para os indígenas que, sob a liderança do mítico Sepé Tiarajú, resistem bravamente, entre 1753 e 1756, aos exércitos coligados de Portugal e Espanha, que, naquela época, eram as duas maiores potências militares do mundo. As forças guaranis, contudo, foram massacradas na fatídica Batalha de Caiboaté, ocorrida em 10 de fevereiro de 1756, na região de São Gabriel/RS, quando 1.500 indígenas foram dizimados e deixados apodrecer a céu aberto. O restante da população indígena se dispersou para a banda ocidental do rio Uruguai, não sem antes atear fogo aos Sete Povos das Missões, deixando apenas ruínas para os exércitos portugueses e espanhóis ocuparem. Sem sombra de dúvida, um dos maiores genocídios da história universal.  
Ainda hoje, a leitora que porventura visitar as missões rio-grandenses não poderá ver nada além de ruínas e pedras abandonadas, a maioria em lugares inóspitos, tomadas pela vegetação. É uma morte que fala pelo silêncio. Os sítios que não estão isolados e abandonados foram quase totalmente destruídos para dar lugar a cidades modernas, já nos séculos XIX e XX. A população guarani, por sua vez, mantém-se isolada, em um estado de submissão econômica aos centros urbanos e em uma relação conflitiva com as diretrizes gerais do poder público. O massacre do século XVIII deixou feridas profundas que ainda no século XXI não cicatrizaram. 
Para pôr fim a essa injustiça histórica com as populações guaranis, é preciso coragem para gestar uma nova concepção para a região, centrada em um novo pacto entre as populações urbanas e as populações indígenas, com vistas a se criar um processo de regeneração que se materialize na reconstrução conjunta das reduções que foram destruídas. A maioria dos sítios está isolada o suficiente dos centros urbanos para permitir essa reconstrução, além de que os jesuítas eram sofisticados o suficiente para terem feito plantas e inventários muito detalhados da vida, da estrutura e principalmente da arquitetura dos Sete Povos das Missões. O processo de cura coletiva, pela reconstrução e pela regeneração, será uma operação longa, mas que precisa, urgentemente, começar agora. Cui caput dolet, omnia membra languent (Se a cabeça está doente, todo o corpo sofre).

Povos Indígenas

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JOTA

Um novo pacto que busque uma reparação histórica pelo genocídio dos povos indígenas 

A reconstrução dos sete povos das missões

Indígenas: o processo de cura coletiva será uma operação longa, mas que precisa, urgentemente, começar agora.