Abrão Amisy Neto

Bruno Calabrich

O Congresso Nacional tem debatido há mais de 10 anos sobre um novo Código de Processo Penal (CPP) para o Brasil. Trata-se do projeto de lei nº 8045, do Senado, e que atualmente está em análise pela Câmara dos Deputados.
Nesse tempo, o CPP que continua em vigor, o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, recebeu diversas alterações substanciais – muitas das quais inegavelmente boas, como o foram a recente ampliação das soluções processuais penais negociadas (ANPPs) e a reafirmação do princípio acusatório, conforme trazidas pela lei nº 13.965/2019.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Realizadas diversas audiências públicas e apresentadas dezenas de sugestões, o atual relator, o deputado federal João Campos (Republicanos-GO), apresentou, em 13 de abril de 2021, um relatório no qual propõe um novo CPP com profundas modificações no projeto original e que têm preocupado parte da comunidade jurídica. Uma destas modificações diz respeito à validade dos indícios como meio de prova.
Segundo consta no projeto substitutivo apresentado pelo relator João Campos, o caput do art. 197 do novo CPP teria a seguinte redação: “Art. 197. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento”.
É uma aceitável redação. Já o primeiro parágrafo do artigo 197 da proposta replicaria um entendimento jurisprudencial que vem se consolidando nos últimos anos: “O juiz não poderá fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”. Apesar de não ser infensa a críticas, tal previsão tem amparo nos Tribunais.
O maior problema está nos demais parágrafos propostos para esse mesmo artigo 197.
O parágrafo 2º do art. 197 desse novo CPP passaria a prever que “os indícios podem contribuir para a elucidação dos fatos”.
Ao sugerir que indícios (“prova indireta”) podem apenas “contribuir” para elucidação dos fatos, o projeto pode denotar que indícios seriam elementos de convicção “menores”, “coadjuvantes”, e não uma prova (ou método probatório<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>) que pode ter um valor igual ou até superior ao da “prova direta”.
Indícios, diferentemente do que pode pensar um leigo, não são meras “suspeitas”, “hipóteses” nem “suposições”. Há um sentido razoavelmente delimitado para o instituto, que difere do que talvez seja a compreensão popular por vezes replicada em veículos de imprensa (e, não raras vezes, até mesmo por profissionais que trabalham na área penal).
Tal confusão ocorre muitas vezes pelo significado não coincidente encontrado no próprio projeto do Código de Processo Penal (e no atual), quando menciona, por exemplo, “indícios suficientes de autoria” (art. 283, inciso II).
Nestes casos, de fato, o termo “indícios” refere-se à “prova leve”, ou seja, nível de suficiência probatória menos elevado para alguma específica medida judicial.
Não obstante, é um erro censurável e derivado do senso comum confundir “indícios” como lastro probatório inicial para alguma medida e  “indícios” como relacionado à “prova indiciária”, objeto da preocupação exposta neste artigo.
O certo é que a própria inserção dos indícios no título relativo à prova aponta para a diferenciação antes especificada, devendo merecer o mesmo critério de admissão e valoração inerente à livre e racional apreciação prevista no mesmo art. 197, caput.
No atual código, o conceito de indícios é dado pelo art. 239: “Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”. Embora passível de algumas críticas, é uma razoável definição e não há sentido, nem base dogmática, para desprezá-la<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Além disso, ao reportar-se aos indícios como meios auxiliares para a “elucidação dos fatos”, o projeto parece limitar a importância dos indícios apenas à etapa de investigação – fase anterior, portanto, à deflagração do processo. A etapa pré-processual da investigação é quando os fatos precisam ser esclarecidos de modo permitir ao titular da ação penal, se foro o caso, o oferecimento de uma acusação (denúncia ou queixa).
Nota-se, portanto, na redação proposta no relatório, uma grave imprecisão quanto ao conceito de indícios. Indícios não são meios meramente auxiliares nem interessam somente à investigação. A redação sugerida ignora toda a doutrina sobre o tema, além de uma firme jurisprudência.
Mas o parágrafo 3º do artigo 197 do projeto substitutivo para o novo CPP é ainda mais preocupante, ao prever o seguinte:
“§ 3º São indícios os fatos comprovados que, por meio de raciocínio indutivo-dedutivo, conduzem ao conhecimento do objeto da persecução. Embora não se prestem, isoladamente, para condenar, podem embasar o juízo de autoria na admissibilidade da acusação e na decretação de providências constritivas, como as medidas cautelares, a busca e apreensão e a interceptação de comunicações telefônicas.”
A primeira parte desse parágrafo 3º do novo art. 197 faria as vezes do atual art. 239 do CPP – que, como visto, não precisaria de modificação em sua essência. A redação proposta, além de não dizer muito, é simplesmente ruim. É desnecessário apontar a imprecisão na técnica legislativa, ao introduzir um conceito – ruim, repita-se – somente no parágrafo final do artigo.
É muito mais grave, contudo, a conclusão desse parágrafo 3º, quando afirma que indícios não servem para condenar, mas apenas para embasar o juízo de autoria na admissibilidade da acusação e na decretação de providências constritivas.
Em resumo, não seriam mais possíveis condenações baseadas apenas em indícios. Indícios só poderiam ser utilizados como fundamento para receber a denúncia ou a queixa e, eventualmente, para a decretação de determinadas medidas cautelares, a  reforçar a confusão entre os dois significados antes referidos. Jamais para condenar<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
<blockquote class="jota-article__eye">Para além do equívoco do ponto de vista da dogmática processual penal, uma previsão dessa natureza, se aprovada e convertida em texto de lei, seria um gravíssimo retrocesso e em nada atenderia ao interesse público.</blockquote>
Impedir condenações com base em um conjunto forte de indícios apenas favorecerá a impunidade, especialmente no que diz respeito à autoria de crimes graves e que comumente não podem ser demonstradas pela chamada prova direta – como é o caso dos crimes do colarinho branco, de corrupção, lavagem de dinheiro e os praticados por organizações criminosas, sem prejuízo de furtos, homicídios, estupros com resultado morte, latrocínios, entre outros, pois ocasionalmente cometidos sem que exista prova direta de sua execução<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Por essa constatação é que um dos grandes juristas portugueses, CAVALEIRO DE FERREIRA (1956, p. 289), diz que “são mais frequentes os casos em que a prova é essencialmente indireta do que aqueles em que se mostra possível uma prova direta”.
Aliás, é usual ouvir que a condenação foi sustentada especificamente em provas testemunhal, documental, pericial, etc., quando, na verdade, tais provas serviram de premissa para a demonstração de um fato sobre o qual não havia prova direta, tudo a partir de uma adequada inferência.
Dois exemplos:
1. Alguém subtraiu joias que estavam no interior de um cofre na residência. Não há testemunhas que viram a subtração ou nenhum outro tipo de prova direta. A porta da residência foi arrombada, a apontar que o autor da subtração não tinha acesso ao local. Parte das joias foi apreendida com um receptador. O receptador apontou o nome do vendedor dos bens. Preso, com ele foi apreendida a outra parte das joias e petrechos para abertura de cofres. Tanto na porta que foi objeto de arrombamento como no cofre foram coletados vestígios papilares que coincidem com aqueles da pessoa presa. Solução no projeto: absolvição por ausência de provas diretas.
2. Uma mulher é encontrada morta e com sinais de violência sexual. Não há prova direta (por exemplo, testemunhas que tenham visto o crime). Uma câmera do lado de fora da residência mostra o ingresso de uma só pessoa naquele dia, por volta de 16h. Mensagens no celular demonstram que ela estava viva até por volta de 15h50. A mesma câmera mostra que a pessoa saiu por volta de 16h20. O corpo foi encontrado por um familiar que chegou ao local 16h30. Coletado material genético no corpo da vítima, há coincidência com o de determinada pessoa, a qual foi posteriormente identificada pelas câmeras. Apreende-se em sua residência uma camisa com vestígios de sangue, cujo confronto identifica como sendo da vítima. Em outra diligência por meio de dados do aparelho móvel do suspeito, confirma-se que no momento do crime ele se encontrava naquele local. Uma mensagem por ele passada ao final do dia do crime indica que teria de fugir imediatamente. Solução no projeto: absolvição por ausência de provas diretas.
Certamente, a falta de prova direta não deve impedir eventual condenação, sob pena de o legislador vedar a racional valoração das provas pelo magistrado.
Em caso pertinente à corrupção, e justamente pelo fato de que vários crimes são praticados sem que seja possível obter prova direta, decidiu o Supremo Tribunal Federal (AP 481/PA, rel. min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 8.9.2011):
“O delito de corrupção via de regra permite que seus autores, mercê da falta de suficiente lastro probatório, escapem pelos desvãos, em manifesta apologia do fantasma da impunidade, e com sério e grave comprometimento do processo eleitoral. Bem por isso, vem se entendendo que indícios e presunções, analisados à luz do princípio do livre convencimento, quando fortes, seguros, indutivos e não contrariados por contraindícios ou por prova direta, podem autorizar o juízo de culpa do agente.”
O posicionamento do Supremo Tribunal Federal é absolutamente convergente com o da Corte Interamericana de Direitos Humanos (por exemplo, Caso Godinez Cruz, sentença de 20 de janeiro de 1989), do Tribunal Penal Internacional (por exemplo, sentenças nos casos  Delalic – Iugoslávia – e Kamuhanda – Ruanda) e dos Tribunais Superiores de outros países<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, os quais, corretamente, compreendem não somente que a prova indireta pode fundamentar uma condenação como pode prevalecer sobre uma prova direta, tudo a depender da fiabilidade de cada uma delas<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Nieva-Fenoll (2012, p. 276), ao explicar que qualquer prova, direta ou indireta, merece ser objeto de um raciocínio, ressalta “a impropriedade histórica de haver proibido a prova indiciária (...)”.
Surpreende, de qualquer forma, que se trata de um dispositivo que está previsto em um projeto de um Código de Processo Penal para o Século XXI, apesar de se utilizar de uma concepção pejorativa de prova indiciária, com absoluto desprezo pelo atual estágio da discussão sobre o tema.
A destacar o atraso dessa postura, o processualista espanhol MIRANDA ESTRAMPES (2012, p. 13), depois de dizer ser equivocada a ideia de que haveria diferença de valor entre a prova direta e indireta, afirma:
“Há que começar descartando categoricamente que na atual concepção técnico-jurídica (...) da prova indiciária, o indício seja equivalente a uma mera suspeita e/ou a uma intuição (...) ou mera conjectura (acepção vulgar). Esse era o significado a ela atribuído na Idade Média e de aí que se afirmava que os indícios não podiam constituir prova plena, sim somente prova semiplena e, portanto, insuficiente para fundamentar um pronunciamento penal condenatório (...)” 
Em livro específico sobre o tema, e no qual corrobora o que é encontrado na doutrina europeia, também conclui SILVA PEREIRA (2017, p. 179), a respeito dos indícios, que “a sua eficácia probatória não é, em abstrato, menor que a da prova direta”<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
De fato, é preciso aprimorar nossa legislação para que seja assegurada a eficiência do processo penal em seu sentido dúplice verdadeiramente garantista: de um lado, a eficiente proteção dos direitos fundamentais de réus e investigados e, de outro lado (e não de forma excludente), a tutela do interesse público ao justo sancionamento a quem tenha praticado um crime, hipótese na qual ambas as funções estarão em equilíbrio.
Assentada essa premissa, espera-se do Congresso Nacional que esteja atento aos problemas no projeto apresentado pelo ilustre relator da comissão especial para o PL nº 8045/2010, de maneira a corrigir imperfeições que repercutirão de maneira contundente na decisão judicial e no sistema processual penal, evitando-se a inserção de dispositivos que limitem a valoração racional da prova, própria de um arcaico sistema tarifado – como aqueles materializados nos parágrafos 2º e 3º do art. 197 da proposta.
<div id="teste3-99b6e4ed7825b47581be" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('teste3-99b6e4ed7825b47581be', 'UA-53687336-1').createForm();</script> 
<script type="text/javascript">
setTimeout(function(){
 const btn = document.getElementById("rd-button-knf3ol7n")
 const check = document.getElementById("rd-checkbox_field-knj7ibbg")
 btn.disabled = true;
 btn.style.opacity = 0.7;
 check.addEventListener("click", function() {
 if (check.checked){
 btn.disabled = false;
 btn.style.opacity = 1;
 } else {
 btn.disabled = true;
 btn.style.opacity = 0.7;
 }
 });
}, 3000);
</script>
<hr />
Referências bibliográficas  
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. Curso de processo penal. Coimbra: Editora Danúbio Lda., v. 2, 1956.
MIRANDA ESTRAMPES Manuel.  Prueba indiciaria y estándar de prueba en el proceso penal. Aequitas, Revista del Poder Judicial del Estado de Sinaloa, Nº 1, Año 1, Tercera Época, 2012.
NIEVA FENOLL, Jordi. La valoración de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2010.
SILVA PEREIRA, Patrícia. Prova indiciária no âmbito do processo penal. Coimbra: Almedina, 2017.
Notas
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Algumas questões conceituais ultrapassam o objetivo deste trabalho.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Ressalta-se ser questionável que se trata necessariamente de um raciocínio indutivo ou se possível o raciocínio dedutivo (e até o raciocínio por abdução).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> É comum em outros ordenamentos que o termo “indícios” seja utilizado nesses dois sentidos. O que não ocorre é o resultado confuso desse duplo significado. Aliás, no atual Código de Processo Penal é bastante nítida a diferenciação, como já exposto.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> É necessário observar que a referência à impunidade não significa a necessidade de acolher uma prova de menor valor para evitar a ausência de sanção. O argumento aqui é justamente o contrário: é injustificável não valorar da maneira devida uma prova de valor igual ou superior (como pode ser o caso da prova indiciária) ao de outras provas, se se sabe que tal restrição impedirá a punição de delitos que somente se provam por esse meio.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Como mero exemplo, decisão do Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), cujo teor é seguido por todos os tribunais portugueses atualmente: “O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto, como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgador, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstâncias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta só por si conduzir à sua convicção” (processo 07P2279, j. 05/07/2007)
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Sobre a prevalência da prova indireta sobre a direta, é sempre comum o questionamento: com  o atual avanço científico, é possível continuar a falar que uma prova testemunhal, ainda que direta, necessariamente tem maior valor que uma prova genética ou oriunda de alta tecnologia, ainda que indireta? Atualmente, doutrina e jurisprudência respondem de maneira negativa.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Não é demais ressaltar que a presença de um só indicio pode excepcionalmente fundamentar a condenação, desde que possua força probatória para tanto, embora comumente seja necessária uma pluralidade de indícios. Porém, não se pode descartar que um único consiga atingir o grau de suficiência para condenar. Sempre, nestes casos, é bom relembrar os avanços em virtude da tecnologia, os quais repercutem na prova penal.

15243654008_0c92b9f907_z

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Congresso deve estar atento aos problemas no projeto apresentado, de maneira a corrigir imperfeições

Indícios e o projeto para o novo Código de Processo Penal: grave retrocesso à vista

Congresso deve estar atento aos problemas no projeto apresentado, de maneira a corrigir imperfeições