José Roberto Afonso

Murilo Ferreira Viana

Entre as décadas de 1970 e 1990 os preços oficiais da cana de açúcar, do açúcar e do álcool eram tabelados pelo governo federal. Considerado estratégico para a economia nacional, essa intervenção sobre o setor sucroalcooleiro significou também a exigência de os agentes econômicos cumprirem obrigatoriamente o tabelamento de preços, o que perdurou até a completa liberação dos preços ocorrida em 1999.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Em boa parte do período de sua intervenção sobre o domínio econômico, o Governo fixou os preços abaixo das apurações técnicas realizadas a partir de metodologia e convênio que ele próprio firmou com a Fundação Getúlio Vargas (FGV). Essa defasagem nos preços daquele setor gerou pedidos de indenização ao Judiciário.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
No próximo dia 07 de agosto o Supremo Tribunal Federal (STF) retomará o exame de uma dessas ações indenizatórias.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> O caso da Usina Matary (ARE 884.325/DF) está sendo julgado sob a sistemática da repercussão geral e definirá o que deve ser considerado para a quantificação das indenizações: se a diferença entre o preço tabelado e o que decorreria dos custos médios regionais apurados na época pela FGV ou entre o preço tabelado e o custo contábil individual de cada Usina.
Até o momento a jurisprudência do STF vinha concedendo as indenizações com base no apurado pela FGV<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, mas esse entendimento não foi seguido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no processo da Usina Matary. O STJ exigiu a comprovação de prejuízo contábil decorrente da prova de que os custos contábeis individuais das Usinas fossem superiores aos preços tabelados.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Entendemos que a exigência do STJ carece de sentido econômico. O tabelamento substituiu a sistemática de preços livres como mecanismo de regulação (sinalizador) de excesso/escassez de oferta e demanda de mercado. Para atingir essa finalidade, o tabelamento precisava ser geral para todo o setor e uniforme por região (Barrionuevo, 2015).
Nessa linha, o Governo estabeleceu preços regionais de cumprimento obrigatório pelas Usinas do Norte/Nordeste e do Centro/Sul<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Não havia a fixação de um preço administrado para cada Usina.
Para não gerar distorções de mercado, o preço tabelado deveria ser correspondente ao custo econômico (explícito e implícito) setorial. Não deveria ser restritivo aos custos puramente contábeis. Para garantir a justa precificação, a metodologia aplicada no tabelamento de preços deveria considerar a totalidade dos custos produção, sejam eles explícitos (pagamentos de mão de obra, aluguéis, matérias primas, despesas de juros e amortização) ou implícitos (custo de oportunidade).
Afinal, investir e até mesmo manter a produção só faz sentido econômico se o retorno esperado desse investimento for equivalente ou superior às alternativas de risco semelhantes encontradas em mercado. Este é o conceito de custo de oportunidade, elemento básico e central em toda e qualquer análise econômica (Assaf Neto, 2017, p.1).
O conceito de custo de oportunidade realça a diferença entre cálculo puramente contábil e cálculo econômico (Santos, 2019). Enquanto o cálculo contábil considera apenas os custos explícitos às empresas (pagamentos de mão de obra, aluguéis, matérias primas, despesas de juros e amortização), o cálculo econômico contempla tanto os custos explícitos quanto os custos implícitos (custo de oportunidade).
O conceito de lucro econômico também se distingue da caracterização de lucro contábil. Enquanto aquele é obtido pela diferença entre receitas e custos explícitos e implícitos (Lucro econômico = receitas – custos explícitos – custos implícitos), o lucro contábil é determinado pela simples diferença entre as receitas e os custos explícitos (Lucro contábil = receitas – custos explícitos).
A mais importante limitação do lucro contábil é a consideração de que o capital próprio (recurso dos acionistas) constitui fonte de financiamento sem custo, o que não faz sentido econômico (Assaf Neto, 2017, p. 17).
Uma empresa pode incorrer simultaneamente em lucro contábil e em prejuízo econômico. Para determinado nível de risco assumido pelos negócios da empresa, alternativas de investimento ou aplicações financeiras de mesmo nível de risco apresentam retorno esperado médio de, por exemplo, 12% a.a. Caso a empresa incorra em lucro contábil médio de 10% a.a., ela estará apresentando lucro contábil positivo (10% a.a.), porém, prejuízo econômico de 2% a.a. (12% - 10% = - 2%).
Para remunerar adequadamente os mais diversos fatores de produção de uma atividade econômica, o preço definido no tabelamento precisava considerar todos os custos econômicos da empresa e ser capaz de manter a taxa de lucro normal da atividade. Foi exatamente isso o que realizou a FGV em atendimento ao que contratou com o governo federal para que este fixasse oficialmente os preços sucroalcooleiros sob intervenção.
A metodologia então pactuada entre governo federal e FGV demonstra não ter havido a apuração apenas dos custos médios regionais explícitos (contábeis), mas também o retorno de capital e a margem de lucro (custos implícitos)<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Tecnicamente, portanto, as indicações apontadas pela FGV apresentavam características exatas de preço, uma vez que considerava não apenas os custos contábeis inerentes à produção, mas também o custo de oportunidade investido pelo acionista.
O objetivo de tais apurações realizadas pela FGV seria indicar ao Governo o nível de preço adequado (remuneratório) para o tabelamento oficial. O ato estatal, porém, ignorou as conclusões de sua contratada, a FGV, e  arbitrou preços tabelados menores do que o necessário para cobrir a totalidade dos custos explícitos e implícitos, o que causou dano correspondente à redução da receita de vendas das Usinas.
Custos contábeis, obviamente, não se confundem com preços de venda. O “custo do produto vendido” registrado na contabilidade é um custo explícito, mas não considera o custo implícito (custo de oportunidade) do capital investido pelo acionista. Preço, por sua vez, corresponde ao valor monetário apto a remunerar o empresário, razão por que deve considerar os custos explícitos e também os implícitos.
Os custos médios regionais apurados pela FGV possuíam a característica exata de “preço” e deveriam ter sido utilizados para a fixação do dano correspondente às defasagens impostas sobre as “receitas de vendas” (e não os custos contábeis individuais).
O ato estatal de tabelamento de preços causou uma distorção específica sobre o item “receitas de vendas” e não sobre outros itens da contabilidade de custos de cada usina.
Estes (custos individuais) podem ter sido maiores ou menores a depender de fatores que não guardavam qualquer relação direta com os atos de tabelamento de preços do Governo e sim à boa ou má-administração, nível de endividamento, mecanização, localização geográficas, etc. de cada agente econômico.
Por essas razões, não é tecnicamente adequado comparar o custo individual de cada usina, quer com o preço fixado pelo Governo, quer com o preço tecnicamente apurado pela FGV. A comparação deve ser entre o preço que seria devido (isto é, o apurado pelo Governo por intermédio da FGV) e o que foi tabelado pela União, como, aliás, vem sendo entendido pela Suprema Corte.
Além disso, como o tabelamento de preços se dava por região e nunca individualmente por usina, também não é adequado considerar o custo individual de cada Usina e sim o custo médio regional apurado pela FGV, que, como já dito, apurava o correspondente preço regional.
Os conceitos do orçamento público, que têm sido ignorados na questão em análise, evidenciam que a União  faz duas leituras, diferentes, uma para arrecadar, outra para pagar. Quando se trata de mensurar o valor da indenização devida ao setor privado, por um preço que arbitrou de forma incorreta, a União sustenta que se use um critério – preço deve repor só o custo contábil.
<blockquote class="jota-article__eye">Quando se trata do mesmo Poder Público ser remunerado pelo capital por ele investido em uma empresa ou instituição financeira, a União aplica outro critério e dele se aproveita para angariar receitas patrimoniais expressivas (com lucros e dividendos).</blockquote>
Nas empresas e nas instituições financeiras diretamente controladas pela União, os preços das mercadorias que produzem e/ou vendem, dos serviços que prestam e das operações de crédito que realizam nunca foram determinados de forma a cobrir apenas o respectivo custo contábil.
Fosse assim não teriam lucros.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> Se a União determinasse aos dirigentes das companhias que controla a prática de preços que não buscassem também a remuneração do capital, estaria, obviamente, agindo contra os interesses públicos e causando danos aos cofres governamentais.
Como bem se sabe, lucros têm sido gerados nas empresas que a União controla e, como tal, nos preços que indiretamente determina. Neste caso, a União é correta e devidamente remunerada como acionista e capitalista. Só no exercício financeiro de 2019, a União arrecadou mais de R$ 21,2 bilhões de receita de lucros e dividendos, segundo publicado pelo Tesouro Nacional.
Em conclusão, é preciso coerência e consistência para se aplicar a mesma lógica no cálculo da receita e da despesa por se tratarem da mesma face e da mesma moeda – a fixação de um preço em uma economia capitalista, ainda que se esteja a falar de um setor sob intervenção estatal.
Sob essa lógica, dado que toda atividade capitalista supõe algum retorno de capital e margem de lucro, não é tecnicamente adequado comparar preços oficiais com custos meramente contábeis. O dano decorrente da defasagem imposta aos preços de venda afere-se a partir da comparação entre preços, na hipótese do setor sucroalcooleiro entre o preço apurado pela FGV e o preço fixado pela União, como vem entendendo o STF até o momento.
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Referências bibliográficas:
ASSAF NETO, A. Valuation: métricas de valor e avaliação de empresas. São Paulo: Atlas, 2017.
BARRIONUEVO, A. A formação distorcida de preços administrados na experiência brasileira recente. Brazilian Journal of Political Economy, 35(3), 475-491.
MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Manual Técnico de Orçamento MTO 2020. Brasília, 2019.
MINISTÉRIO DA FAZENDA. Metodologia de Cálculo do WACC. Brasília, 2018.
SANTOS, R.V. Aplicação do custo de oportunidade às decisões de preço de venda sob o enfoque do custeio direito. XXVI Congresso Brasileiro de Custos, 2019.
TESOURO NACIONAL. Resultado do Tesouro Nacional (RTN). Dez, 2019.
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Portaria MF 275/98.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> À parte, alerta-se que esse tabelamento de preços foi específico do setor sucroalcooleiro e em nada se confunde com os planos gerais de congelamento de preços, como foi o caso dos chamados Planos Cruzados e Bresser. Quando da edição dos planos gerais de congelamento de preços, ocorridos entre final de 1980 e meados de 1990, os preços específicos do setor sucroalcooleiro já estavam sob intervenção estatal e, pior, já se encontravam defasados comparativamente às indicações técnicas apuradas pela FGV/IBRE.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> O julgamento foi suspenso por pedido de vista do Ministro Alexandre de Moraes, após 3 votos favoráveis e 2 votos contrários à Usina Matary.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> RE 422.941/DF, Relator Ministro Carlos Velloso, DJ 24/03/2006; RE 648622, Relator Ministro Luiz Fux, DJe 11/05/2012; AgRg no RE 598537, Relator Ministro Dias Toffoli, DJ 29/03/2011; AgRg no RE 696298, Rel. Min. Roberto Barroso, DJ 06/04/2015; AgRg no AI 752432, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJ 24/09/2010; AgRg no ARE 648682, Relatora Ministra Rosa Weber, DJ 24/02/2015, por exemplo.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> RESP 1.347.136/DF, Relatora Ministra Eliana Calmon, DJ 07/03/2014.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> É o que demonstra a metodologia fixada em comum acordo entre os representantes da União Federal e das Usinas (cf. ata da reunião técnica realizada em 19/01/1990) e também os atos oficiais de fixação de preços (cf. ato do IAA 20/87; Portaria SDR 122/90; Portaria MF 129/91 – Anexo I).
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> “Conceituação de custo de produção: Será utilizado o conceito de custo empresarial de produção, abrangendo matéria-prima, despesas de produção, despesas indiretas, depreciação, remuneração do capital próprio e juros reais de financiamento, de acordo aos critérios de valorização e de apropriação detalhadas nesta metodologia, apurando-se os custos pelo conceito de preços de reposição, no sentido de evitar a descapitalização do setor” (Anexo 11 da metodologia da FGV)
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> É reconhecido que lucros também derivam de outras fontes que não apenas as operacionais – como é o caso da venda de ativos, por exemplo. Mas isso é a exceção e não a regra empresarial.

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Indenizações do setor sucroalcooleiro e a lógica econômica e fiscal

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