Moisés Muniz Lobo

Felipe Alves de Carvalho

A digitalização de processos talvez seja uma das poucas ações realizadas pelos tribunais do país apoiada pela grande maioria dos operadores do direito. Além dos benefícios ambientais e financeiros gerados pela redução do uso de papel, possibilita, nos médio e longo prazos, uma otimização do uso de funcionários dos fóruns que poderão ser realocados em posições que agilizem o julgamento das lides.
Num primeiro momento, a digitalização parece um exemplo perfeito dos princípios da celeridade e eficiência, sendo usada de forma efetiva na máquina pública sem nenhuma falha constitucional crassa. Assim foi até a Resolução da Presidência n° 161 de 18/12/2017, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), que, entre outras disposições, estipula a obrigatoriedade do protocolo digital do Habeas Corpus em seu site e apenas por pessoas cadastrada na OAB.
Inicialmente, a medida aparenta estar em conformidade com a necessidade de otimização de recursos do Poder Judiciário, já que, de um ponto de vista meramente administrativo, não faz sentido manter toda a infraestrutura necessária à realização de protocolos para cuidar apenas de um tipo de ação. Porém, o HC, que é previsto no art. 5º, LXVIII da Constituição Federal e regulamentado pelo artigo 654 do Código Penal Processual, não é uma ação comum. Conforme dita o professor Marcelo Novelino, a história do HC remete à queda do Império. Foi contemplado em todas as constituições brasileiras republicanas – e suspenso apenas na vigência do Ato Institucional n. 5.
Dentre suas peculiaridades, lista-se sua gratuidade, a não exigência de rigor formal e a possibilidade de ser impetrável por qualquer pessoa, não havendo necessidade de existir capacidade postulatória. Sua popularidade é tamanha que, apenas no Supremo Tribunal Federal, em 2017, até 5 de outubro, foram impetrados 8.235 – 70% mais do que na média dos cinco anos anteriores – o que se deve, entre outros, à ausência de necessidade de um patrono para sua realização. Um réu, da cadeia, pode fazê-lo de próprio punho e protocolá-lo.
O legislador brasileiro colocou o HC como ato necessário de exercício da cidadania, com o mínimo possível de burocracia e possíveis impedimentos. Posicionamento este que ficou claro no Código de Processo Penal quando determina que pode ser feito por qualquer pessoa. É neste contexto histórico que surge a inconstitucionalidade da Resolução 161 do TRF 3ª Região.
A exigência do protocolo digital torna o HC impetrável apenas por advogados. Assim, o TRF3 caminha em sentido contrário, não somente a uma cláusula pétrea, mas ao espírito principiológico e fundador da Constituição.
Este vício seria sanado caso houvesse uma opção no site do TRF3 para que pessoas sem cadastro na OAB pudessem impetrar o HC? A resposta é negativa e a sua fundamentação é muito mais prática do que jurídica.
Em fevereiro de 2017, havia mais de 654 mil detentos nos presídios brasileiros. Em sua grande maioria, são eram pessoas de baixa renda que, para terem direito à defesa, dependem de assistência judicial gratuita, ou seja, a Defensoria Pública do Estado ou a da União. É notório que a Defensoria Pública não consegue atender a todos esses processos.
Em decorrência desta falta de estrutura de atendimento, mais os obstáculos criados por esta Resolução do HC digital, a maioria esmagadora dos presos não poderá se utilizar do remédio constitucional para garantir o direito de liberdade contra o arbítrio. Caso não houvesse exigência de registro na OAB, como protocalariam este remédio constitucional? Via celular de dentro das celas? Teriam, ali, acesso a um terminal para digitalização? E se o preso não souber utilizar tecnologias de informação e comunicação? Se fosse um excluído digital – o que é bem provável, já que mais da metade da população o é –, como o Poder Judiciário garantiria seu acesso ao HC digital?
Esses problemas práticos estão além dos controles do Judiciário – que insiste em ignorá-los com a digitalização dos processos. A obrigatoriedade de protocolo digital acaba por gerar mais uma camada de exclusão.
Sensível a esta situação, o TJSP, por meio de seu Comunicado nº 442/2013, sobre a Implantação do Processo Digital na Seção Criminal determinou que, em relação ao HC, o protocolo físico ainda existirá: “Nos casos dos Habeas Corpus impetrados do próprio punho do paciente, por qualquer do povo em nome do paciente ou nos plantões judiciais, o peticionamento deverá ser feito em meio físico (papel).” Tal posicionamento, que se mantém por conta da autonomia existente entre Justiça Federal e Estadual, respeita a história do remédio constitucional do HC e as garantias individuais do cidadão.
Não se discute a necessidade de melhorias tecnológicas do judiciário brasileiro, contudo, elas não podem ser feitas à custa da exclusão de camadas sociais, particularmente das que não têm, historicamente, condições educacionais e sociais para se defenderem judicialmente. Inovações tecnológicas devem ser usadas para inclusão social e não para criar mais empecilhos e obstruções para o exercício de direitos constitucionais.

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JOTA

Exigência do protocolo digital torna o HC impetrável apenas por advogados

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