Bernardo Maltz

A população brasileira acordou na sexta-feira passada com um gosto amargo na boca. Apesar de todas as promessas do governo Temer de que não aumentaria tributos, foi justamente o que aconteceu com a publicação do Decreto nº 9.101/17, que majorou consideravelmente as alíquotas do PIS e da COFINS incidentes sobre a importação e comercialização de gasolina, óleo diesel, gás liquefeito de petróleo (GLP), querosene de aviação e álcool. Estima-se que o preço da gasolina, por exemplo, ficará até R$ 0,41 mais caro nas refinarias. Nem precisa consultar o “pato da Fiesp”para saber quem vai pagar essa conta. Sem querer entrar no mérito político, sempre controverso quando se trata de elevação da nossa já surreal carga tributária, aqui analisarei o aspecto eminentemente jurídico. O Decreto nº 9.101/17 é constitucional?
A Constituição Brasileira, em respeito aos princípios da segurança jurídica, legalidade e anterioridade, elenca uma série de garantias do contribuinte justamente para impedir uma elevação repentina e imediata do seu custo tributário. Como exemplo maior, é expressamente vedado a exigência ou aumento de tributo sem lei que o estabeleça (art. 150, I). Trata-se aqui de lei seu sentido formal, editada pelo Congresso Nacional. A proteção a essa prerrogativa é tamanha que, em razão do art. 68, § 1º, da mesma Carta Magna, sequer é permitida a delegação legislativa dessa competência. Portanto, é inconstitucional a lei que delegue ao Poder Executivo a possibilidade de exigir ou aumentar tributo.
Visto tais disposições, questiona-se: sob qual justificativa o governo acaba de elevar, mediante simples Decreto, a alíquota do PIS/COFINS sobre combustíveis? É sabido que a equipe econômica quis evitar levar tal discussão ao Congresso, seja porque tem pressa em arrecadar, seja porque não poderia ter certeza da aprovação, diante do alto custo político que medidas impopulares ensejam, especialmente nas atuais circunstâncias em que o próprio Presidente está sob investigação. Juridicamente, o governo se respalda na previsão constante do art. 23, § 5º, da Lei. 10.865/04<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, que expressamente autoriza o Poder Executivo a fixar coeficientes para redução das alíquotas previstas em tal artigo, os quais poderão ser alterados, para mais ou para menos, ou extintos, a qualquer tempo. Regra similar foi estabelecida para o álcool no art. 5º, §§ 4º e 8º da Lei. 9.718/98.
Melhor explicando, a lei fixou valores fixos a título de PIS e de COFINS sobre combustíveis, por metro cúbico e possibilitou que o Poder Executivo aplique coeficientes redutores dessas alíquotas, que poderiam ser alterados a qualquer tempo. Tais coeficientes foram fixados pelos Decretos nº 5.059, de 30 de abril de 2004 (gasolina, óleo diesel, GLP e querosene) e Decreto nº 6.573, de 19 de setembro de 2008 (álcool) e vigoravam até o dia 21 deste mês, quando o Decreto nº 9.101/17 os alterou para, em resumo, acabar com as reduções, restabelecendo as alíquotas originais.
É constitucional tal modelagem legislativa, na qual é transferida ao Poder Executivo a decisão de reduzir e restabelecer alíquotas de contribuições federais? No meu sentir, não. Primeiro porque o art. 150, da CF/88, acima citado, é uma garantia do contribuinte e não do Poder Público. É visando proteger o individual que a Constituição impede a instituição ou aumento de tributo sem lei, função esta indelegável, de acordo com o art. 68, § 1º. Por outro lado, a redução de tributo por Decreto não necessariamente é inconstitucional, mormente porque a hipótese de “redução de alíquota” não está elencada entre as previstas no § 6º do art. 150. E ainda que fosse, repita-se, o contribuinte é quem se deseja proteger, de modo que é razoável e natural que ele confie nas regras emanadas pelo próprio Poder Público para se beneficiar de uma redução tributária. Mais do que isso, não se aproveitar de uma desoneração tributária significa perder capacidade competitiva. Ao revés, para aumentar tributo, as prerrogativas constitucionais devem ser asseguradas, com a edição de lei específica.
Vale mencionar interessante julgado do STF, no RMS 25476, no qual se permitiu que um contribuinte permanecesse submetido a um Decreto reconhecidamente inconstitucional, diante da declaração de inconstitucionalidade da legislação posterior, uma Portaria impugnada por ele. Isso porque se tivesse considerado ambas as normais inaplicáveis, a solução seria submetê-lo a lei anterior, que previa uma tributação ainda mais elevada que a da norma impugnada, em violação ao princípio da reformatio in pejus. Como se vê, a fim de proteger um bem jurídico maior, uma garantia do contribuinte, a Corte Suprema admitiu que norma inconstitucional continuasse surtindo efeitos.
Poder-se-ia defender a constitucionalidade de tal sistemática de tributação (adoção de alíquotas fixas que poderiam ser reduzidas e restabelecidas a qualquer tempo pelo Executivo) sob o argumento de que ela é mera opção dada ao contribuinte pela lei e, portanto, poderia ele escolher ser tributado pela regra geral (menos benéfica). Não me convence, pois não se pode dar a opção de cometer inscontitucionalidade, majorar tributo por Decreto. Além disso, a opção é irretratável para todo o exercício subsequente (§1º do art. 23). Por fim, tal opção é apenas teórica, pois, como dito acima, ninguém vai optar por ser mais tributado, sob pena de não sobreviver em um mercado tão competitivo como o de óleo e gás.
Discussão muito similar está sendo travada atualmente no Poder Judiciário em relação ao PIS/COFINS sobre receitas financeiras. Tal como agora, o Executivo acabou, em 2015, com a alíquota zero das contribuições sobre receitas financeiras que vigorava desde 2004, em razão de Decreto, editado com base em delegação legal. O restabelecimento das alíquotas também se deu por Decreto, o que levou a milhares de ações questionando a constitucionalidade de tal medida, frente ao princípio da legalidade. Naquela situação, pelo menos, o governo respeitou o princípio da anterioridade nonagesimal, que será abordado adiante. A discussão está sendo travada no STJ, tendo sido iniciado o julgamento do recurso representativo da controvérsia (REsp 1.586.950), interrompido por pedido de vista, após terem sido colhidos 3 votos, 2 deles favoráveis aos contribuintes. Essa decisão não será definitiva, pois o STF já decidiu pela existência de repercussão geral sobre a matéria no RE 986.296/PR, pendente de julgamento.
Ainda que o Decreto nº 9.101/17 fosse considerado constitucional, admitindo-se a majoração do PIS/COFINS sobre combustíveis sem edição de lei formal, fica difícil conseguir defender sua constitucionalidade à luz do princípio da anterioridade nonagesimal, prevista no art. 195, §,6º, da CF/88. Como se sabe, as contribuições sociais não estão submetidas à anterioridade ordinária do art. 150, III, “b”, da CF/88, mas devem respeitar o prazo de 90 dias da data da publicação da lei que as tenha instituído ou majorado. No entanto, o Decreto nº 9.101/17 entrou em vigor na data da sua publicação (art. 3º). Não prospera o argumento de que não se trata de majoração de tributo, mas de mero restabelecimento da carga tributária original. Ora, o princípio da anterioridade visa impedir que o contribuinte seja pego de surpresa com aumento de custos da noite para o dia. Visa permitir a ele um planejamento mínimo, que assegure a absorção desse novo sacrifício. Não importa se o caso é de instituição de novo tributo, de revogação de benefício fiscal ou restabelecimento de alíquota. Nesse sentido passou a decidir o STF, consoante comemorado julgado no <a href="http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&amp;docID=7259969">RE nº 564225,</a> de relatoria do Min. Marco Aurélio.
Ao que parece, a opinião exposta neste artigo não é solitária. Apenas poucos dias após sua entrada em vigor, a Justiça Federal do Distrito Federal, atendendo a um pedido de tutela provisória de urgência, em ação popular, suspendeu os efeitos do Decreto nº 9.101/17, reconhecendo a violação aos preceitos constitucionais da legalidade e da anterioridade nonagesimal<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. A União Federal recorreu ao Presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que, sensibilizado com a alarmada perda milionária de arrecadação<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, suspendeu os efeitos da liminar. Será preciso aguardar a análise de mérito, momento em que a fundamentação deverá ser estritamente jurídica.
Por todo o exposto, precipitou-se o governo de, na ânsia de arrecadar muito e rápido, atropelar os ditames constitucionais que asseguram ao contribuinte um mínimo de garantias contra o Poder de Tributar. A resposta da população organizada e da Justiça foi surpreendentemente célere, evitando, por enquanto, que muitos paguem mais essa conta. É preciso, porém, cobrar mais responsabilidade dos nossos dirigentes políticos. Viver em um Estado Democrático de Direito pode custar caro, mas trata-se de uma conquista necessária e inegociável da nossa sociedade.
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Art. 23. O importador ou fabricante dos produtos referidos nos <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9718.htm#art4i.">incisos I a III do art. 4o da Lei no 9.718, de 27 de novembro de 1998</a>, e no <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10560.htm#art2">art. 2o da Lei no 10.560, de 13 de novembro de 2002</a>, poderá optar por regime especial de apuração e pagamento da contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS, no qual os valores das contribuições são fixados, respectivamente, em:
I - R$ 141,10 (cento e quarenta e um reais e dez centavos) e R$ 651,40 (seiscentos e cinqüenta e um reais e quarenta centavos), por metro cúbico de gasolinas e suas correntes, exceto gasolina de aviação;
II - R$ 82,20 (oitenta e dois reais e vinte centavos) e R$ 379,30 (trezentos e setenta e nove reais e trinta centavos), por metro cúbico de óleo diesel e suas correntes;
III - R$ 119,40 (cento e dezenove reais e quarenta centavos) e R$ 551,40 (quinhentos e cinqüenta e um reais e quarenta centavos), por tonelada de gás liquefeito de petróleo - GLP, derivado de petróleo e de gás natural;<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/L11051.htm#art23iii">(Redação dada pela Lei nº 11.051, de 2004)</a>
IV - R$ 48,90 (quarenta e oito reais e noventa centavos) e R$ 225,50 (duzentos e vinte e cinco reais e cinqüenta centavos), por metro cúbico de querosene de aviação.
<ul>
<li> 1oA opção prevista neste artigo será exercida, segundo normas e condições estabelecidas pela Secretaria da Receita Federal, até o último dia útil do mês de novembro de cada ano-calendário, produzindo efeitos, de forma irretratável, durante todo o ano-calendário subseqüente ao da opção.</li>
</ul>
(...)
<ul>
<li> 5oFica o Poder Executivo autorizado a fixar coeficientes para redução das alíquotas previstas neste artigo, os quais poderão ser alterados, para mais ou para menos, ou extintos, em relação aos produtos ou sua utilização, a qualquer tempo.</li>
</ul>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Processo 1007839-83.2017.4.01.3400
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> "No momento ora vivido pelo Brasil, de exacerbado desequilíbrio orçamentário, quando o governo trabalha com um bilionário déficit, decisões judiciais, como a que ora se analisa, só servem para agravar as dificuldades da manutenção dos serviços públicos e do funcionamento do aparelho estatal, abrindo brecha para um completo descontrole do país e até mesmo seu total desgoverno"

tributos jota

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Aumento do PIS/Cofins sobre combustíveis

Inconstitucionalidade da majoração das alíquotas

Aumento do PIS/Cofins sobre combustíveis