Judiciário

Inconstitucionalidade circunstancial, defectibilidade e direitos em concreto

O destino dos direitos em tempos de pandemia

Exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins: consequências do julgamento dos embargos
Estátua em frente à fachada do Supremo Tribunal Federal. Crédito: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Um artigo seminal, de autoria dos renomados juristas Alonso Freire, Carlos Eduardo Frazão, Rodrigo Mudrovitsch e Victor Rufino, deu início a um importante debate para tentar descrever o que está ocorrendo com os nossos direitos fundamentais e com as regras jurídicas em geral, em tempos de Covid-19[1].

Na visão dos autores, as extraordinárias medidas que merecem ser adotadas por diversos países e pelo Brasil em razão da pandemia, por muitas vezes retirarem a eficácia de normas ordinariamente válidas, podem torná-las momentaneamente inconstitucionais.

Segundo eles, está-se diante do fenômeno da inconstitucionalidade circunstancial, o qual “consiste no resultado provocado por uma situação excepcional sobre atos normativos […] que, em outras situações, poderiam ser constitucionais”[2].

Como exemplos, os autores defendem a inconstitucionalidade circunstancial (a) do conjunto normativo que trata dos prazos de filiação partidária e desincompatibilização para as eleições de 2020; além (b) da regra que condiciona o saque do FGTS em casos de calamidade à edição de regulamentação; e (c) de dispositivos da Medida Provisória nº 946/2020 que não conferiram prioridade de saque do FGTS na atual pandemia aos mais necessitados[3].

A jurista Roberta Nascimento, ao responder o referido artigo, refutou a tese da inconstitucionalidade circunstancial[4]. Na sua visão, “pretender que o STF […] possa declarar que uma norma é inconstitucional até que cesse o estado de excepcionalidade […], equivaleria a conceder à Corte um poder que nem mesmo o Congresso Nacional tem.”[5]

Roberta aponta que “o processo abstrato do controle de constitucionalidade não se presta a tutelar circunstâncias temporárias”[6] e que “para isso já existe o caminho da jurisdição ordinária, que pode decidir sobre os problemas circunstanciais decorrentes da aplicação das normas a casos concretos.”[7]

Por fim, ela afirma competir ao Congresso Nacional a decisão primeira de ponderar sobre medidas legislativas necessárias, inclusive a suspensão de normas, no contexto da pandemia, a partir da edição de leis temporárias.

Este artigo se vale das relevantes questões lançadas pelos dois importantes trabalhos para, nos capítulos que se seguem, apresentar, por meio da utilização dos conceitos da teoria jurídica e constitucional, uma descrição distinta do fenômeno da retirada de eficácia momentânea de normas, o qual, ante as excepcionais circunstâncias atualmente vivenciadas pela pandemia da Covid-19, se torna mais evidente, mas, ao mesmo tempo, é de complexa descrição e compreensão.

1. A compreensão da inconstitucionalidade circunstancial

É possível perceber que os três exemplos dados do fenômeno da inconstitucionalidade circunstancial referidos pelo primeiro artigo são de regras jurídicas, as quais, por definição, produzem efeitos jurídicos se ocorridas as situações fáticas sobre as quais incidem, independentemente da situação atual de pandemia.

Sendo regras jurídicas, são normas que são comumente compreendidas como claramente definidas, objetivas, tendo um estilo “tudo ou nada”[8], incidindo ou não.

Os prazos de filiação e de desincompatibilização são contados a partir da data de realização das eleições: quem não estiver filiado ou desincompatibilizado nessas datas estará inelegível; não ter filiação por problemas causados pela pandemia, pela letra da lei, não afasta a ausência de condição de elegibilidade.

Já as regras para movimentação do FGTS não autorizam o saque imediato, sem observância da legislação, simplesmente por conta da pandemia.

Em alguns julgados, o Poder Judiciário já manifestou o entendimento de que “tanto vulnera a lei aquele que exclui do campo de aplicação hipótese contemplada como quem inclui requisito nela não contido”[9].

A partir da ideia contida nessa frase, que expressa uma lógica de legalidade formal, a inclusão da pandemia como um elemento que autorizaria a não incidência do prazo de filiação das eleições ou que autorizaria o resgate imediato do FGTS pelos mais necessitados, porquanto não prevista em tais regras, ofenderia essas mesmas regras, pois, no primeiro caso, excluiria a incidência de regra em hipótese legal contemplada e, no segundo caso, incluiria no campo de incidência hipóteses legais não previstas.

Assim, como não há previsão no texto da lei de (a) suspensão de incidência dos prazos de filiação durante a pandemia ou (b) de saque do FGTS em razão da pandemia, para os autores, a única forma de essas aplicações que eles defendem se concretizarem seria reconhecendo a momentânea inconstitucionalidade dessas leis. Após o final da pandemia, os textos legais retornariam aos status de constitucional.

2. Defectibilidade das regras e reconhecimento de exceções

A complexidade de ambos os artigos é evidente e demonstra a dificuldade do tema em debate. No entanto, talvez o fenômeno possa ser melhor compreendido se algumas circunstâncias forem evidenciadas.

A primeira delas é que sistemas jurídicos, em geral, admitem que, em casos excepcionais, os aplicadores da lei afastem a incidência de regras jurídicas para se fazer justiça em situações específicas.

Em verdade, consoante salienta Brian Tamanaha, “estados de direito podem acomodar fazer justiça num caso individual, desde que as regras jurídicas não sejam frequentemente inaplicadas, mas apenas sob circunstâncias extraordinárias”[10].

Essa noção foi bem descrita pelo filósofo inglês H.L.A. Hart como sendo uma característica dos conceitos jurídicos, os quais sofrem de derrotabilidade. Em síntese, o britânico, grande crítico do formalismo jurídico, entende que toda regra jurídica tem cláusulas de exceção, explícitas ou implícitas, de maneira que essa regra pode não ser aplicada quando se verificarem circunstâncias excepcionais. Cuida-se do conceito de defectibilidade de regras (defeasibility of rules) [11].

Isso ocorre, como salienta Frederick Schauer, porque “legisladores não são omniscientes, e não podem com perfeição antever o que o futuro trará. Situações ocorrerão que não foram antecipadas, e muitas vezes sequer poderiam ter sido antecipadas até para os melhores legisladores. A imperfeita visão do futuro é parte da condição humana, e como consequência as regras jurídicas, se literalmente ou fielmente observadas, gerarão soluções que são absurdas, injustas, estúpidas, ineficientes, ou de alguma outra maneira subótima”[12].

Embora defenda que essa não seja uma característica imprescindível de um estado de direito, Schauer acrescenta que “os sistemas legais avançados comumente contêm um mecanismo para que aplicadores do direito possam aprimorar as consequências duras de aplicação áspera de regras, quando essas consequências infortunadas ocorram como resultado da inevitável sobreinclusão e subinclusão das regras”[13].

De fato, o sistema brasileiro admite mecanismos para reconhecer a defectibilidade de regras, afastando a respectiva aplicação em casos concretos, diante de circunstâncias excepcionais.

O legislador, ao prever exceções em dispositivos legais, é o primeiro a estabelecer normas de derrotabilidade de regras jurídicas, o que ocorre por meio de disposições específicas, geralmente disciplinadas em parágrafos de um artigo de lei, nos termos do art. 11, inciso III, c, da Lei Complementar nº 95/98, ou em artigos próprios[14].

O legislador também pode estabelecer, via regras de adjudicação, normas que autorizem o reconhecimento de exceções. A técnica de modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, autorizada pelo art. 27 da Lei nº 9.868/1999, é um outro nítido exemplo da internalização desse mecanismo, usando o termo empregado por Schauer, para uma situação particular.

Tem-se um inquestionável exemplo de autorização para o aplicador do direito afastar uma regra – a da nulidade da lei inconstitucional –, num caso excepcional – mediante a identificação de (a) razões de segurança jurídica ou de (b) excepcional interesse social.

Além disso, há diversas técnicas incorporadas no processo de adjudicação pelos magistrados que, em última análise, permitem o reconhecimento da defectibilidade de regras.

Um exemplo é a aplicação da doutrina da lei ainda constitucional, mencionada pelos autores do primeiro artigo na petição inicial da ADI nº 6.359. Por meio desse mecanismo, o STF assentou que o dispositivo legal que concedia prazo em dobro à Defensoria Pública para a prática de atos processuais no processo penal seria constitucional até que esses órgãos, no âmbito dos estados, fossem organizados de maneira satisfatória.

Houve, assim, derrotabilidade temporária da regra da paridade de armas entre acusação e defesa, fundada no princípio da isonomia, já que o Ministério Público não tem prazo em dobro no processo penal.

No início da pandemia pelo novo coronavírus, o Ministro Gilmar Mendes publicou um artigo rememorando a teoria do pensamento jurídico do possível[15], de Peter Häberle, outro mecanismo internalizado pelo STF no passado em casos concretos.

O magistrado lembrou que frente à necessidade de concordância prática entre princípios constitucionais, que merecem ser protegidos simultaneamente e que servem de fundamento para as regras jurídicas em geral, há que se cogitar a possibilidade de alternativas diante de situações que se modificam no tempo, trazendo novas complexidades.

Em julgado emblemático do STF, o magistrado se valeu de tal mecanismo para autorizar que membros com menos de dez anos de carreira do Ministério Público do Trabalho compusessem lista sêxtupla relativa ao quinto constitucional de um Tribunal Regional do Trabalho.

Impôs, assim, a defectibilidade da regra do art. 94 da Constituição, que exige mais de dez anos de carreira para ingresso na lista. A circunstância excepcional reconhecida para afastar a incidência da regra foi o fato de, àquela altura, não haver seis membros que satisfizessem o requisito temporal[16].

Outro mecanismo para impor a defectibilidade da regra constitucional que estabelece os requisitos para a criação de municípios (art. 18, § 4º, CF), foi o uso da doutrina da força normativa dos fatos.

Em várias ações diretas, reconheceu-se a relevância fática de que diversas novas cidades já tinham sido concretamente instaladas e eram uma realidade, a despeito de terem sido criadas sem a observância do procedimento imposto pela referida regra constitucional.

São precedentes geralmente relatados pelo Ministro Eros Grau[17], nos quais ele fundamenta que, para a manutenção da situação concreta, a regra do art. 18, § 4º, da CF[18], deveria ser momentaneamente suspensa, dando lugar à exceção, num raciocínio semelhante ao dos defensores da tese da inconstitucionalidade circunstancial[19].

A doutrina também defende a derrotabilidade de regras diante de circunstâncias excepcionais. No direito concorrencial, por exemplo, que tem entre seus focos o combate à formação de cartéis, chega-se a defender a existência de cartéis de crise, de maneira a assegurar a sobrevivência de empresas durante severas crises setoriais, nacionais ou diante de colapsos econômicos[20].

Na última sessão do primeiro semestre de 2020, o TSE aplicou a derrotabilidade da regra de que apenas tem competência para conceder efeito suspensivo a recurso especial eleitoral quando já tiver havido o juízo de admissibilidade do recurso na origem e concedeu o efeito suspensivo.

O Tribunal deixou de aplicar essa regra jurisprudencial por considerar que o afastamento do prefeito recorrente do cargo e a subsequente assunção de outro mandatário enquanto não fosse concluída a admissibilidade do recurso prejudicaria os esforços de combate à pandemia, situação que foi expressamente qualificada como excepcionalíssima pelo ministro Luís Roberto Barroso[21].

É de se destacar que, no Brasil, a derrotabilidade das regras, quando não embasada em dispositivo legal específico, ante a força da teoria da constitucionalização dos diversos ramos jurídicos, é geralmente fundamentada na aplicação em concreto de um princípio constitucional concorrente.

Mas esse afastamento da regra por força da aplicação de princípios constitucionais, ainda que presente a lógica formal acima exposta, é geralmente tido como inerente à jurisdição e não necessariamente implica o reconhecimento de inconstitucionalidade em abstrato da regra[22].

3. As limitações do controle abstrato de constitucionalidade e defectibilidade de decisões com efeito vinculante

O segundo fato relevante que merece ser percebido é o de que as ficções impostas às decisões de controle abstrato não retiram as limitações dessa modalidade de judicial review e não explicam, por exemplo, como uma norma válida declarada constitucional numa ação direta pode deixar de ser aplicada num caso concreto, sem que isso implique violação ao efeito vinculante.

Assim, até mesmo decisões em controle abstrato podem posteriormente sofrer derrotabilidade, diante de situações excepcionais. Ainda que essas limitações existam, não parece que, tal qual defende a jurista Roberta Nascimento, o controle abstrato de constitucionalidade não sirva para capturar essas situações peculiares.

Com efeito, é de se lembrar que o STF considera que a causa de pedir nas ações de controle abstrato é aberta. Tal entendimento significa que o Tribunal não está preso aos fundamentos deduzidos na inicial para analisar a inconstitucionalidade e deve apreciar a impugnação à luz de todo texto constitucional.[23]

Da decisão de improcedência de uma ADI emerge um julgado, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, que contém a presunção de que se afastou “todos os argumentos sobre a inconstitucionalidade da norma”[24].

O problema é que nem sempre todos os argumentos foram, de fato, imaginados e examinados. As limitações que acometem o legislador, tal qual apontado por Frederick Schauer, também atingem os aplicadores do direito.

Como a ADI é um processo abstrato, no qual, quando apreciado, não se sabe a extensão de todos os litígios que podem surgir em torno da aplicação da norma impugnada, o Tribunal pode, muitas vezes, validar uma norma que, num caso concreto não levado em consideração, poderia ter uma aplicação afastada por ser considerada inconstitucional.

Daí a participação dos amici curiae para que essas situações concretas sejam apresentadas para serem consideradas, de maneira a reduzir a falta de informação. Mas mesmo com a participação deles, não há garantia de que todas as situações serão consideradas.

É justamente isso que afirma Richard Posner, ao discorrer sobre os malefícios do controle abstrato, que é praticado em alguns estados americanos por meio de advisory opinions[25].

O jurista americano afirma que esse procedimento tem o preço “de perda de informação concernente aos efetivos efeitos e problemas de administração da lei, uma perda que pode resultar em invalidações [ou em validações] errôneas […]”[26].

O mesmo fundamento é a razão primordial pela qual a Suprema Corte dos EUA atribui um altíssimo ônus argumentativo para acolher uma facial challenge de inconstitucionalidade de uma lei, isto é, reconhecer que uma lei é em abstrato inconstitucional e que não comporta qualquer aplicação válida.

Segundo a Corte, facial challenges são desfavorecidos por diversas razões. Pedidos de invalidade em abstrato algumas vezes são fundados em especulações. Em consequência, elas apresentam o risco de ‘interpretação prematura de leis com base em registro limitados de fatos. […].”[27]

Daí que para suceder num facial attack, o requerente tem o ônus argumentativo de demonstrar que “em nenhum conjunto de circunstâncias a lei pode ser constitucionalmente válida”[28].

Em contraste, um as-applied challenge admite “que uma lei possa ter várias aplicações constitucionais, mas defende que ela não é constitucional em uma circunstância particular”[29].

No Brasil, os as-applied challenges são veiculados no controle abstrato por meio da técnica de interpretação conforme à Constituição, justamente a articulada pelos autores do primeiro artigo na ADI nº 6.371, na qual pleiteiam que, durante a pandemia, deva ser liberada a movimentação da conta do FGTS mesmo sem previsão legal expressa.

A derrotabilidade de decisões do controle abstrato é percebida no próprio fato de o STF admitir, excepcionalmente, o julgamento de uma nova ação direta contra uma lei que o Tribunal, em outra ação direta, já considerou constitucional, conquanto o art. 26 da Lei nº 9.868/99 não admita a propositura de ação rescisória em face deste julgado.

Isso ocorre, consoante as palavras do ministro Edson Fachin, “quando há processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas substanciais”[30].

Mas, além deste caso, o Tribunal já admitiu manter, por meio da rejeição de reclamações apresentadas, decisões que claramente violavam pronunciamentos prévios tomados em ação direta e que, por essa razão, ao menos formalmente, infringiam o efeito vinculante.

Foi isso que o ministro Eros Grau assentou, por exemplo, no voto vista proferido no Agravo Regimental na Reclamação nº 3.034, mediante o qual se autorizou que uma pessoa enferma pulasse a fila dos precatórios, a despeito de o Tribunal ter assentado, na ADI nº 1.662, que o sequestro de verbas para pagamento imediato de precatório só poderia se dar em caso de preterição de direito de preferência, com base no art. 100, § 2º, da CF, na redação da EC nº 30/2000.

A circunstância excepcional que implicou a derrotabilidade da regra de sequestro exclusivo em caso de quebra da ordem cronológica foi a enfermidade da credora, que, se aguardasse a fila, provavelmente faleceria sem receber o seu crédito[31].

Da mesma maneira, o ministro Gilmar Mendes afirmou, na Reclamação nº 4.374 – na qual foi apreciada alegação de descumprimento de decisão da Corte tomada na ADI nº 1.232, que declarou a constitucionalidade do critério de miserabilidade social estabelecido no art. 20, § 3º, da Lei de Organização da Assistência Social – LOAS[32] –, que, por meio de reclamação, “o Tribunal poderá reapreciar e redefinir o conteúdo e o alcance de sua própria decisão”.

Complementou dizendo que, inclusive, o Tribunal poderia ir além e superar “total ou parcialmente a decisão-parâmetro da reclamação, se entender que, em virtude de evolução hermenêutica, tal decisão não se coaduna mais com a interpretação atual da Constituição.”

Nesse caso específico, ainda que o critério de miserabilidade social escolhido pelo legislador para percepção do benefício assistencial por pessoa idosa ou com deficiência, qual seja, a percepção pela sua família de renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo, tenha sido declarado constitucional na ADI, o STF entendeu que outros fatores indicativos do estado de pobreza poderiam ser conjugados na apreciação de pedidos de pagamento do benefício, mesmo sem autorização legal.

Esses outros fatores, quando reconhecidos como relevantes, por óbvio, são situações excepcionais que levam à derrotabilidade do critério da regra legal, que apenas estabelecia como requisito a renda mensal familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo[33].

O efeito da decisão, portanto, é semelhante ao da inconstitucionalidade circunstancial defendido pelos autores, pois se permite o afastamento de regra legal positivada diante de circunstâncias excepcionais.

É como se a regra do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993, por conta das excepcionais circunstâncias reconhecidas em casos em que o critério legal revelar proteção insuficiente, fosse inconstitucional e, depois de não incidir neste caso específico, regressasse à constitucionalidade para continuar sendo aplicada aos demais casos.

É também interessante perceber como a reclamação acaba tendo o papel de reconstrução do julgado frente às novas circunstâncias fáticas surgidas após o julgamento do processo de controle abstrato, fenômeno muito bem capturado por Sérgio Ferreira Victor.

Segundo ele, a reclamação “permite que o Supremo Tribunal Federal dialogue com as instâncias ordinárias, de modo a perceber nuances e modificações fáticas relevantes para a melhor compreensão do atual significado da Constituição”[34].

Em virtude dessa faceta da reclamação e também porque existe a possibilidade de análise de situações específicas em processos de controle abstrato – daí os as-applied challenges – é que se discorda da argumentação da jurista Roberta Nascimento de que esse tipo de ação não possa ser utilizado para reconhecer a não incidência de determinadas regras em casos específicos, ainda que temporários, se o fundamento da não aplicação for o confronto com a Constituição.

4. Direitos em abstrato e direitos em concreto

Em verdade, a partir da constatação de que situações em concreto podem assumir enorme relevância na definição da aplicação de regras abstratas é que se percebe como é importante, para a teoria jurídica, a distinção entre direitos em abstrato e direitos em concreto.

Como assenta Ronald Dworkin, os “grandes direitos de retórica política”[35] são abstratos, mas a afirmação da existência ou não de um direito em concreto é mais precisa para retratar a extensão do direito tal qual efetivamente detido pelos cidadãos[36].

É que as assertivas de que todo cidadão tem o direito fundamental à liberdade de expressão ou à dignidade da pessoa humana são abstratas, pois “não transmitem o impacto que esses direitos possuem em situações sociais concretas, ou como esses direitos devem ser ponderados em face de outros direitos”[37].

Como afirma Stephen Guest, Dworkin reconhece corresponder à ideia de ter um direito à “habilidade de resistir a competições contra outros objetivos não urgentes”[38].

O problema é que, em tempos de pandemia, os objetivos estatais podem se revelar urgentes e, em casos assim, a tendência é que os direitos abstratos dos cidadãos, quando concretizados, cedam a esses objetivos extraordinários.

Por isso, medidas de lockdown ou imposições de distanciamento social, claramente violadoras do direito de ir e vir e do direito de reunião em tempos normais, são consideradas constitucionais, dadas as circunstâncias excepcionais.

Em abstrato, os brasileiros não perderam quaisquer dos seus direitos fundamentais por conta da pandemia, até porque não houve qualquer alteração no texto constitucional.

Em concreto, porém, algumas limitações foram evidentes. Mas, por óbvio, as medidas visam a atender objetivos urgentes de proteção à saúde coletiva e, em virtude desse relevante objetivo específico, gozam de presunção de legitimidade, a qual, para ser rebatida, terá de contar com argumentos concretos distintos dos que normalmente seriam utilizados pelos cidadãos na proteção dos seus direitos.

Essa forma de pensar e decidir é muito comum na Suprema Corte dos Estados Unidos, por exemplo. Basta ler, dentre outras, a famosa opinion do caso dos ‘Papéis do Pentágono’ – New York Times Co. v. United States –, que afastou a pretensão do Governo Richard Nixon de obstar o jornal New York Times de publicar materiais da Guerra do Vietnã, classificados como secretos pelo Departamento de Defesa.

A Corte, no precedente, não afirmou que a liberdade de imprensa era um direito absoluto, mas entendeu que, no caso concreto, o Governo não havia conseguido ultrapassar a forte presunção contrária à censura prévia da imprensa.

Essa forte presunção existe em razão do peso que a Corte confere ao texto da Primeira Emenda à Constituição, que protege a liberdade de imprensa. O Tribunal considerou que, como a publicação não causaria um inevitável, direto e imediato evento que colocaria em risco a segurança das tropas americanas no Vietnã, a sua publicação não deveria ser previamente obstada.

Contudo, vale chamar a atenção para o fato de que a Suprema Corte não disse que a forte presunção contrária à censura prévia não poderia ser ultrapassada em um outro caso.

Se esse dificílimo ônus for satisfeito numa outra oportunidade, a liberdade de imprensa, em concreto, usando o raciocínio de Dworkin, cederá a objetivos mais urgentes, ainda que ela permaneça, em abstrato, um fortíssimo princípio constitucional nos EUA.

Se transpusermos essa ideia ao raciocínio da inconstitucionalidade circunstancial, é como se a liberdade de imprensa fosse momentaneamente inconstitucional, pois deixaria de ser aplicada nesse caso, em prol de outros princípios constitucionais tidos como de maior peso no caso concreto.

Mas, após esse julgamento, ela retornaria à constitucionalidade. Essa forma de descrição, no entanto, torna mais complexa uma realidade na qual, em verdade, apenas se está conferindo maior peso a um princípio constitucional em detrimento de outro num caso concreto.

A contraposição entre a existência de direitos em abstrato e em concreto revela uma ambiguidade da atividade de interpretação da Constituição. Uma coisa é interpretar o texto, atribuindo-lhe sentido; outra coisa é qualificar um caso concreto a esse sentido[39].

O primeiro caso trata de interpretação em sentido estrito (do texto à norma), enquanto o segundo é um caso de aplicação (da norma ao fato). Com efeito, ainda que o Judiciário, em regra, interprete determinada norma como um direito constitucional, sua aplicação pode ser incompatível com a finalidade constitucional mesma, porque os fatos e o Direito são premissas do raciocínio aplicativo que, ao fim e ao cabo, se influenciam de maneira recíproca[40].

5. Conclusões

É desafiador tentar desvendar os fenômenos jurídicos que modificam o usufruto dos direitos pelos cidadãos num contexto de pandemia, como a atual da Covid-19. Os dois artigos referidos no capítulo de abertura foram essenciais para jogar luz a esse debate.

No entanto, (a) a derrotabilidade das regras em situações excepcionais, (b) as limitações das ficções do controle abstrato de constitucionalidade e (c) a distinção entre direitos em abstrato e direitos em concreto parecem melhor descrever o usufruto de direitos pelos cidadãos, a partir da sua efetiva força em situações concretas, do que a assertiva de que as regras abstratas estariam numa zona momentânea de inconstitucionalidade circunstancial.

 


[1] Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-fenomeno-da-inconstitucionalidade-circunstancial-25042020. Acessado em 17.6.2020.

[2] Idem.

[3] Essas pretensões foram veiculadas pelos autores em ADIs que patrocinam perante o STF em nome de agremiações partidárias, a saber: ADIs 6.359, 6.371 e 6.379.

[4] Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/existe-uma-inconstitucionalidade-circunstancial-06052020. Acessado em 17.6.2020.

[5] Idem.

[6] Idem.

[7] Idem.

[8] Ronald Dworkin, The Model of Rules I, 35 U. Chi. L. Rev., 14, 25 (1967).

[9] STF, RTJ 144/850, Rel. Min. Marco Aurélio.

[10] BRIAN Z. TAMANAHA, ON THE RULE OF LAW, 120 (New York, Cambridge, 2004).

[11] HART, Herbert L. A. The ascription of responsibility and rightsProceedings of the Aristotelian Society, New Series, Vol. 49 (1948 – 1949), p. 171-194. Sobre a defeasibility, Hart afirma que: “For the accusations or claims upon which law courts adjudicate can usually be challenged or opposed in two ways. First, by a denial of the facts upon which they are based (technically called a traverse or joinder of issue) and secondly by something quite different, namely, a plea that although all the circumstances are present on which a claim could succeed, yet in the particular case, the claim or accusation should not succeed because other circumstances are present which brings the case under some recognised head of exception, the effect of which is either to defeat the claim or accusation altogether or to ” reduce ” it, so that only a weaker claim can be sustained.” lei Hart focou na defeasibility dos conceitos.

[12] Schauer, Frederick, Is Defeasibility an Essential Property of Law? (October 12, 2008). LAW AND DEFEASIBILITY, J. Ferrer, C. Ratti, eds., Oxford University Press, 2010. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=1403284.

[13] Idem.

[14] O art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que dispensa o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho de despesas na ocorrência de calamidade pública, por exemplo, é uma hipótese de cláusula de exceção que autoriza o afastamento das regras estabelecidas na LRF, ou seja, a respectiva defectibilidade.

[15] Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-abr-11/observatorio-constitucional-jurisprudencia-crise-pensamento-possivel-caminhos-solucoes-constitucionais. Acessado em 19 de junho de 2020.

[16] O ministro Gilmar Mendes concluiu o seu voto nos seguintes termos: “Assim, também no caso em apreço parece legítimo admitir que a regra constitucional contém uma lacuna: a não-regulação das situações excepcionais existentes na fase inicial de implementação do novo modelo constitucional. Não tendo a matéria sido regulada em disposição transitória, parece adequado que o próprio intérprete possa fazê-lo em consonância com o sistema constitucional. E, tal como demonstrado, a aplicação que menos se distancia do sistema formulado pelo constituinte parece ser aquela que admite a composição da lista com procuradores do trabalho que ainda não preenchiam o requisito concernente ao tempo de serviço. Assegurou-se aos órgãos participantes do processo a margem de escolha necessária dentre procuradores com tempo de serviço inferior a 10 anos, na hipótese de inexistência de candidatos que preenchessem o requisito temporal fixado.” (STF, EI na ADI 1.289-4/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 27.2.2004).

[17] ADI 2240, DJe 3.8.2007; ADI 3689, DJe 29.6.2007; ADI 3489, DJe 3.8.2007, ADI 3316, 28.6.2007.

[18] O texto do art. 18, § 4º, da CF, é o seguinte: “Art. 18. […] § 4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei.”

[19] Constou da ementa:

“7. O estado de exceção é uma zona de indiferença entre o caos e o estado da normalidade. Não é a exceção que se subtrai à norma, mas a norma que, suspendendo-se, dá lugar à exceção – apenas desse modo ela se constitui como regra, mantendo-se em relação com a exceção.

8. Ao Supremo Tribunal Federal incumbe decidir regulando também essas situações de exceção. Não se afasta do ordenamento, ao fazê-lo, eis que aplica a norma à exceção desaplicando-a, isto é, retirando-a da exceção.”

[20] Cf: 2 OECD, Directorate for Financial and Enterprise Affairs, Competition Committee, Global Forum on Competition, Crisis Cartels, Background Note, Session III, DAF/COMP/GF(2011)6, p. 6 et seq. available at http://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=DAF/COMP/GF(2011)6&docLanguage=En

[21] Disponível em https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2020/04/23/tribunal-superior-eleitoral-suspende-afastamento-de-prefeito-e-vice-de-presidente-figueiredo.ghtml. Acessado em 2.7.2020. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=njKpOebMATI. Acessado em 2 de julho de 2020.

[22] Nesse sentido, vale a referência aos seguintes acórdãos:

“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECLAMAÇÃO. OFENSA À SÚMULA VINCULANTE 10 DO STF. SUPOSTO AFASTAMENTO DA LEI MUNICIPAL 1.102/2012. NÃO CONFIGURAÇÃO. 1. Nada obstante seja cabível reclamação por violação à súmula vinculante, tem-se que o caso dos autos não fornece suporte fático para a incidência da Súmula Vinculante 10 do STF. 2. A fundamentação da decisão com base em princípios constitucionais não resulta, necessariamente, em juízo de inconstitucionalidade. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (Rcl 22651 AgR, Rel.: EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 24/05/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-116 DIVULG 06-06-2016 PUBLIC 07-06-2016).

“PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. ENSINO SUPERIOR. SUPLETIVO. IDADE MÍNIMA NÃO ALCANÇADA. SÚMULA STF 10. ART. 97, CF: INAPLICABILIDADE.

1. Para a caracterização de ofensa ao art. 97 da Constituição, que estabelece a reserva de plenário (full bench), é necessário que a norma aplicável à espécie seja efetivamente afastada por alegada incompatibilidade com a Constituição Federal. 2. Não incidindo a norma no caso e não tendo sido ela discutida, não se caracteriza ofensa à Súmula Vinculante 10, do Supremo Tribunal Federal. 3. O embasamento da decisão em princípios constitucionais não resulta, necessariamente, em juízo de inconstitucionalidade. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.”

(RE 566502 AgR, Rel.: ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 01/03/2011, DJe-055 DIVULG 23-03-2011 PUBLIC 24-03-2011 EMENT VOL-02488-01 PP-00241)

[23] O STF entende que a causa de pedir aberta não autoriza que numa ADI em que se veicula meramente pedido de inconstitucionalidade formal, o Plenário passe ao exame da inconstitucionalidade material:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. 1. QUESTÃO DE ORDEM: PEDIDO ÚNICO DE DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL DE LEI. IMPOSSIBILIDADE DE EXAMINAR A CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL. 2. MÉRITO: ART. 65 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL DA LEI 8.429/1992 (LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA): INEXISTÊNCIA. 1. Questão de ordem resolvida no sentido da impossibilidade de se examinar a constitucionalidade material dos dispositivos da Lei 8.429/1992 dada a circunstância de o pedido da ação direta de inconstitucionalidade se limitar única e exclusivamente à declaração de inconstitucionalidade formal da lei, sem qualquer argumentação relativa a eventuais vícios materiais de constitucionalidade da norma. 2. Iniciado o projeto de lei na Câmara de Deputados, cabia a esta o encaminhamento à sanção do Presidente da República depois de examinada a emenda apresentada pelo Senado da República. O substitutivo aprovado no Senado da República, atuando como Casa revisora, não caracterizou novo projeto de lei a exigir uma segunda revisão. 3. Ação direta de inconstitucionalidade improcedente.” (STF, ADI 2914/ES, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 1.6.2020).

[24] STF, ADI 4.363/SP, Rel. Min. Edson Fachin, DJ 19.12.2018; STF ADI 1.896, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 28.5.1999.

[25] As advisory opinions são previstas nos seguintes estados: Alabama, Colorado, Delaware, Florida, Maine, Massachusetts, Michigan, New Hampshire, Rhode Island e South Dakota. No Colorado e South Dakota, as decisões proferidas são obrigatórias e não meramente recomendações. Cf. MEL A. TOPF, A Doubtful and Perilous Experiment. Advisory Opinions, States Constitutions and Judicial Supremacy 187-189 (Oxford, 2011).

[26] Richard Posner, Economic Analysis of Law, 9th, Aspen, p. 778.

[27] Washington State Grange v. Washington State Republican Party, 552 US 442 (2008). A Corte assenta também que “facial challenges também são contrárias ao princípio fundamental da autocontenção judicial segundo o qual as cortes não devem ‘antecipar uma questão constitucional sem a necessidade de decidi-la’, tampouco devem ‘formular uma regra constitucional de maneira mais ampla que é necessário pelos precisos fatos para a qual será aplicada’”.

[28] United States v. Salerno, 481 U.S. 739, 745 (1987).

[29] United States v. Pruitt, 502 F.3d 1154, 1171 (10th Cir.2007).

[30] STF, ADI 4.363/SP, Rel. Min. Edson Fachin, DJ 19.12.2018.

[31] STF, AgR na Rcl nº 3.034/PB, Plenário, DJ 27.10.2006.

[32] Art. 20. […] “§ 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”.

[33] Se a regra legal havia sido proclamada constitucional, a própria decisão do STF na ADI nº 1.232, que havia reconhecido a constitucionalidade, acabou sendo afastada, ainda que a decisão tenha eficácia vinculante. Tendo em vista a constatação de que o efeito vinculante vinha sendo descumprido em outros casos, o STF, na própria Reclamação nº 4.374, proclamou a declaração de inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993, mantendo assim válido o critério de miserabilidade de renda mensal familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo, mas também admitindo a possibilidade de comprovação, em concreto e caso a caso, por outros critérios, da efetiva falta de meios para que o deficiente ou o idoso pudesse prover a própria manutenção ou tê-la provida por sua família.

[34] Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2013-jun-01/observatorio-constitucional-alcance-funcoes-reclamacao-constitucional>. Acessado em 26 de junho de 2020.

[35] Ronald Dworkin, Taking Rights Seriously 93-94 (Harvard, 1978).

[36] Idem.

[37] Stephen Guest, Ronald Dworkin, 3rd. ed., 96 (Stanford, 1997).

[38] Id. p. 95.

[39] GUASTINI, Riccardo. Interpretare e argomentare. Milano: Dott. A. Giuffré Editore, 2011, p.15-18..

[40] TARUFFO, Michele. La prueba. Madrid: Marcial Pons, 2008, p. 17; UBERTIS, Giulio. “Quaestio facti e quaestio juris”. Quaestio facti: Revista internacional sobre razionamento probatorio, n. 1, ano 2020, Madrid, Marcial Pons, p. 70.