Douglas Fischer

O parlamento brasileiro está discutindo – com provável hipótese de aprovação – projeto de lei que anistiará de qualquer responsabilidade os autores dos graves crimes de "caixa dois" eleitoral e "correlatos", com efeitos obviamente para crimes passados. Querem fazer o mesmo que ocorreu na Itália durante a Operação Mãos Limpas. 
Mais que isso e que poucos notaram: criaram verdadeiras anistias pela tal "Lei de Repatriação" (já superado o balão de ensaio, a Lei n. 13.254, agora em nova edição, mais ampla, para parentes de políticos também serem beneficiários), uma verdadeira "Lei de lavagem de dinheiro oficializada", tornando impunes vários e gravíssimos crimes.
Afirmo sem sombra de dúvidas: o  conteúdo dessas anistias, diretas ou indiretas, é manifestamente inconstitucional. Abrange não só o (já grave) crime de "caixa dois", mas inúmeros outros, como a corrupção, sonegação, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. 
Afora os diretos interesses pessoais de muitos dos parlamentares que estão apreciando o projeto (autoanistia), é importante lembrar que o legislador tem limites constitucionais para sua atuação. Não pode legislar contrariamente aos mandatos fundamentais insertos na Constituição da República. O legislador “não pode tudo que quer”, ao seu bel prazer e especialmente em interesses próprios e espúrios: a Constituição é-lhe vinculante, como diz Canotilho, um dos maiores constitucionalistas do mundo.
Não apenas a isonomia, a moralidade e a impessoalidade estão sendo violadas (art. 37, CF), mas inúmeros outros comandos impositivos de criminalização e de conduta estão sendo frontalmente atacados, especialmente do sistema democrático, onde se impõe uma atuação não deficiente em face dos interesses da coletividade.
O legislador não tem discricionariedade para anistiar crimes graves e para, também sob o pálio de trazer recursos ao Brasil (decorrentes de crimes gravíssimos), permitir sua "lavagem oficial" mediante ínfimos valores de imposto de renda (praticamente metade do que o brasileiro honesto paga). 
Realmente, está-se perdendo os limites da decência moral e legislativa.
É preciso lembrar que inúmeras vezes o Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que regras infraconstitucionais que afrontem a Constituição da República gerando uma desproteção em face de bens jurídicos essenciais para o Estado Democrático de Direito violam a Proibição de Proteção Deficiente, a obrigação de o Estado agir positivamente para cumprir as imposições decorrentes da Constituição da República.
Importante destacar ainda que, em caso de aprovação desses absurdos legislativos, acreditamos que o STF tomará também como exemplo o que já disse inúmeras vezes o Tribunal Constitucional Alemão: uma lei de anistia penal viola inúmeros princípios, mas especialmente o da Igualdade se a regra especial fixada pelo legislador para alguns tipos penais ou alguns beneficiários não for orientada pelo pensamento de justiça e se não puder encontrar nela quaisquer argumentos razoáveis (BVerfGE 10, 234. Platow-Amnestie).
Luigi Ferrajoli defende textualmente que o Estado deve atuar firmemente (sem qualquer deficiência) em crimes graves, como corrupção, balanços falsos, valores sem origem, fraudes, lavagem de dinheiro ou crimes graves como os ora “anistiados” (FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismo. Edición de Miguel Carbonell. Madrid: Editorial Trotta, 2008, p. 254).
Celso Antônio Bandeira de Mello é enfático e preciso: “a lei não pode conceder tratamento específico, vantajoso ou desvantajoso, em atenção a traços e circunstâncias peculiarizadoras de uma categoria de indivíduos e de fatos se não houver adequação racional entre o elemento diferencial e o regime aos que se inserem na categoria dispensada” (Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 39). 
Não há possibilidade de o legislador afastar a obrigação que lhe é imposta como dever constitucional, ainda mais quando para se autobeneficiar. 
Sempre respeitando-se os direitos fundamentais dos investigados ou processados, nunca antes na história da República brasileira se tornou efetivamente viável responsabilizar aqueles que, sempre guindados pela cupidez e interesses espúrios, solaparam e continuam sangrando os cofres públicos, atingindo de morte os verdadeiros interesses da coletividade. 
Se instado a se manifestar como juiz de Corte Constitucional, o Ministro Gilmar Mendes certamente não esquecerá sua doutrina contrária à pretensões legislativas iníquas e afrontosas à Constituição. Já disse inúmeras vezes (v.g. RE n. 418-376-MS) que (tal como no caso em tela) “estar-se-ia a blindar, por meio de norma penal benéfica, situação fática indiscutivelmente repugnada pela sociedade, caracterizando-se típica hipótese de proteção deficiente por parte do Estado, num plano mais geral, e do Judiciário, num plano mais específico. Quanto à proibição de proteção deficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra os excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição de proteção deficiente adquire importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou seja, na perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito fundamental”. 
O decano do STF, Ministro Celso de Mello, já foi enfático em vários julgados (por exemplo HC n. 100.362-SP) destacando que “dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal. A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, bem por isso, tem censurado a validade jurídica de atos estatais, que, desconsiderando as limitações que incidem sobre o poder normativo do Estado, veiculam prescrições que ofendem os padrões de razoabilidade e que se revelam destituídas de causa legítima, exteriorizando abusos inaceitáveis e institucionalizando agravos inúteis e nocivos aos direitos das pessoas ([…] ADI 1.063/DF, Rel. Min. Celso de Mello, v.g.)”. Assim, prossegue noutro julgado, “o Tribunal deve sempre levar em conta que a Constituição confere ao legislador amplas margens de ação para eleger os bens jurídicos penais e avaliar as medidas adequadas e necessárias para a efetiva proteção desses bens. Porém, uma vez que se ateste que as medidas legislativas adotadas transbordam os limites impostos pela Constituição – o que poderá ser verificado com base no princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot) e como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) –, deverá o Tribunal exercer um rígido controle sobre a atividade legislativa, declarando a inconstitucionalidade de leis penais transgressoras de princípios constitucionais” (Habeas nº 102.826, Segunda Turma, Relator Min. Celso de Mello, julgado em 28.02.2012, publicado no DJ em 20.08.2013).
Como corretamente diz Bernal Pulido, uma norma legal criada que não proteja direitos e deveres  fundamentais de maneira ótima vulnera as exigências do princípio da idoneidade. Mais enfaticamente, como lembrado por Maria Conceição Ferreira da Cunha, não se pode deixar de considerar a “hipótese de ilegitimidade constitucional da despenalização [...] de um ilícito lesivo de um valor com relevo constitucional, quando tal despenalização determinasse uma irracional disparidade de tratamento com respeito a outros factos lesivos de valores constitucionais de igual significado, configurados, estes, como ilícitos penais” (Constituição e Crime – Uma perspectiva da Criminalização e da Descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa Editora, 1995, p. 333).
Não temos dúvida em afirmar categoricamente que o afastamento da responsabilidade penal por intermédio de anistias dessa natureza, diretas ou indiretas, gerando verdadeira imunidade penal, viola os princípios constitucionais  de um Estado Democrático de Direito, gerando uma desproteção sistêmica sem precedentes em prol de uma categoria de criminosos que afrontam de morte o sistema constitucional pátrio. Aliás, em tempos de crise econômica, poucos se deram conta ainda de que a Lei n.  13.254/2016 (com edição "mais alargada" para breve) é uma verdadeira "lei de lavagem de dinheiro oficializada" travestida de anistia. Não se notou ainda que o "criminoso" (a lei fala em "contribuinte") deve declarar qual crime cometeu e essa declaração não pode ser investigada.  Há quem sustente que, como a corrupção não está listada na lei dentre os crimes que podem ter extinta a punibilidade, inviável seria o benefício. Discordamos: a declaração da origem dos recursos será feita unilateralmente pelo próprio criminoso e ela não poderá ser sindicada ou utilizada para fins de investigação alguma. Significa que basta ter recebido dinheiro de corrupção no exterior e declarar que foi decorrente da sonegação de tributos no Brasil (algo grave também, mas que não se dá muita importância ainda) que poderá "lavar" seu dinheiro de propinas. A repatriação extingue a punibilidade (anistia-se o criminoso) de delitos de sonegação fiscal, inclusive contribuições do já combalido INSS, falsidades (artigos 297, 298, 299 e 304, CP), evasão de divisas (artigo 22 da Lei nº 7.492, de 1986) e lavagem de dinheiro (artigo 1º da Lei nº 9.613, de 1998).
É preciso insistir: o legislador não pode escolher fatores injustificados de diferenciação com o estabelecimento de privilégios desmedidos de tal natureza (anistia), violando frontalmente também o princípio da isonomia. Como já disse noutra oportunidade também o Ministro Gilmar Mendes, “tem-se uma "exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade" se a norma afronta ao princípio da isonomia, concedendo vantagens ou benefícios a determinados segmentos ou grupos sem contemplar outros que se encontram em condições idênticas” (Os Direitos Fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional. Brasília: Revista Jurídica Virtual, vol. 2, n. 13, junho/1999).
Como já defendemos noutra oportunidade (Delinquência Econômica e Estado Social e Democrático de Direito, 2006), do seu mandato não tem o parlamentar a autorização para, de forma arbitrária, desarrazoada, ilegítima e imoral, legislar contra a própria sociedade, ainda mais quando para se autobeneficiar ou então beneficiar criminosos que cometeram fatos extremamente graves e atentatórios ao sistema democrático. A propósito desses desvios legislativos, Canotilho destaca que, diante de situações de manifesto arbítrio, irracionalidade e discriminação injustificada, é corrente a admissibilidade do controle de constitucionalidade arrimada (comumente) em violação do Princípio da Proibição do Arbítrio e do Princípio da Igualdade (Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. 2 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 261).  
Como diz Perelman, uma regra é arbitrária e injusta quando os critérios utilizados sejam irracionais e se constituírem uma defesa de interesses particulares (Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 205). 
Com absoluta razão ainda a Presidente do STF, Ministra Cármen Lúcia, no julgamento do “Mensalão”: "Acho estranho e muito grave que alguém diga, com toda tranquilidade, que ‘ora, houve caixa dois’ na tribuna do tribunal supremo do país como se fosse algo banal, tranquilo, que se afirma com singeleza. Caixa dois é crime; caixa dois é uma agressão à sociedade brasileira; caixa dois compromete, mesmo que tivesse sido isso, ou só isso; e isso não é só; e isso não é pouco! E dizer isto da tribuna do Supremo Tribunal, ou perante qualquer juiz, parece-me, realmente, grave, porque fica parecendo que ilícito no Brasil pode ser praticado, confessado e tudo bem. E não é tudo bem, tudo bem é estar num país, num Estado de Direito, quando todo mundo cumpre a lei." Ainda suas corretas ponderações, diante do abusos de pretensão à impunidade como os ora vistos: "o escárnio venceu o cinismo. O crime não vencerá a Justiça. Aviso aos navegantes dessas águas turvas de corrupção e das iniquidades: criminosos não passarão a navalha da desfaçatez e da confusão entre imunidade, impunidade e corrupção. Não passarão sobre os juízes e as juízas do Brasil. Não passarão sobre novas esperanças do povo brasileiro, porque a decepção não pode estancar a vontade de acertar no espaço público. Não passarão sobre a Constituição do Brasil”  
A sociedade e a ordem jurídica não irão compactuar com a impunidade. Temos absoluta confiança nisso.

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JOTA

Está-se perdendo os limites da decência moral e legislativa

A inconstitucional anistia de vários crimes graves

Está-se perdendo os limites da decência moral e legislativa