Ileana Neiva Mousinho

Afonso de Paula Pinheiro Rocha

A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, chamada Convenção de Mérida, foi adotada pela Assembleia-Geral da ONU, em 31 de outubro de 2003, e assinada pelo Brasil em 9 de dezembro daquele ano. Em sequência, como forma de marcar essa data, o 9 de dezembro foi instituído como Dia Internacional de Combate à Corrupção, resultado de proposta feita pela delegação brasileira em Mérida, na Espanha.
As relações entre improbidade administrativa, combate à corrupção e Direito do Trabalho, por sua vez, nem sempre são evidentes. A improbidade administrativa ecoa e evoca imagens de relações com a administração pública e uma correlação com potenciais crimes. Tanto o regime jurídico-administrativo como a competência criminal são elementos que estão fora da competência da Justiça do Trabalho. Por outro lado, os fenômenos de improbidade administrativa e as mais diversas formas de corrupção muitas vezes se manifestam através de condutas trabalhistas.
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Este aspecto laboral eclipsado faz esquecer as contribuições que a investigação trabalhista pode oferecer para desnudar práticas de corrupção e, por conseguinte, preveni-las, tutelando o patrimônio público. Existe uma relação mais próxima do que se imagina entre as práticas de improbidade administrativa e algumas condutas trabalhistas, decorrentes de contratações da administração pública com pessoas jurídicas de direito privado, que contratam empregados sob o regime celetista.
O Ministério Público do Trabalho (MPT) investiga, cotidianamente, situações nas quais o descumprimento de direitos trabalhistas, ao fim e ao cabo, constituem um ato de improbidade administrativa, pois contratos com emprego de mão de obra de trabalhadores celetistas são utilizados para obtenção de ganhos ilícitos por empresas ou pessoas físicas, com o concurso ou a omissão de agentes públicos.
São exemplos dessas práticas de corrupção denúncias de terceirização ilícita de atividades essenciais na administração pública direta e indireta, notadamente quando a atuação do agente público ocorre com desvio de finalidade, em funções típicas estatais, com pouca clareza e transparência sobre os custos dessas contratações, enquanto trabalhadores têm precarizadas as suas condições ambientais de trabalho. Nesse grupo de investigações, por exemplo, estão as denúncias de falta de fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPI) e uniformes, embora a empresa insira o custo desses insumos nas planilhas de custo e formação de preços, locupletando-se como valor correspondente, enquanto empregados permanecem sem proteção.
Indo além das improbidades tradicionalmente associadas a cargos comissionados, o Ministério Público do Trabalho identifica, no curso dos seus inquéritos civis: a) indicações indevidas e ingerência na terceirizada, desvirtuando a prática e tornando a empresa prestadora “um cabide de correligionários políticos” (em alguns casos, a “paga” ou “medida para garantir boas relações” com o sucesso na contratação pública é a admissão em posto de trabalho de pessoa indicada ou mesmo familiar de gestores e fiscais de contrato); b) “terceirizados fantasmas” em substituição aos “comissionados fantasmas”, com o agravante de que os dados de pessoal terceirizado usualmente não estão sujeitos às mesmas medidas de transparência ativa que os cargos comissionados; e c) “terceirizados onipresentes”, constando nas listas de polos de trabalho em mais de um contrato de prestação de serviços, com jornadas de trabalho coincidentes, porém gerando duplicidade de gastos contratuais à administração pública em favor de determinada empresa prestadora de serviços terceirizados.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Nesses casos, os elementos de informação são encaminhados a outros Ministérios Públicos para avanço das investigações. Agora, a pergunta que fica é: para além dessa posição de suporte, existe algum núcleo ou recorte de atribuição própria ao Ministério Público do Trabalho? Essa pergunta é um pouco mais complexa e se tornou extremamente relevante com o advento da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14230.htm">Lei 14.230/2021</a>, a nova Lei de Improbidade Administrativa.
O recorte de improbidade (matéria cível e não penal, gênero no qual se insere a matéria trabalhista) não foi tratado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nem na ADI nº 3.395 (incompetência da Justiça do Trabalho nas relações jurídico-administrativas entre servidor e Poder Público), nem na ADI nº 3.684 (incompetência da Justiça do Trabalho em matéria penal). É digno de nota que a 2ª Turma do STF possui precedente que indica, em interpretação a contrario sensu, a possibilidade de atuação do Ministério Público do Trabalho, mediante o ajuizamento de ação civil pública por ato de improbidade administrativa quando houver direito ou interesse de natureza trabalhista a ser protegido<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Com efeito, embora raras as apreciações jurisdicionais sobre a competência laboral quanto a atos de improbidade administrativa, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) também analisou o tema, validando a competência especializada, quando houver pertinência laboral com a prática de atos de corrupção, consoante precedente da 1ª Seção do STJ<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
O próprio Tribunal Superior do Trabalho (TST) possui precedente em ações de improbidade administrativa, propostas por empresa pública (como os Correios) em face de empregado público, buscando-se o devido ressarcimento ao erário público, invocando disposições de forma expressa na <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm">Lei 8.429/1992</a><a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. A ação de improbidade administrativa ajuizada por empresa pública em face de empregado público corresponde a apenas um exemplo de lide que estaria inserida na competência da Justiça do Trabalho.
Existem outros que podem ser imaginados, especialmente após a Lei 14.230/2021, que aponta para uma nova reflexão sobre estes espaços, tutela da probidade administrativa e papel institucional do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho. De plano, os §§ 6º e 7º do art. 1º ampliaram marcadamente a esfera de incidência da Lei de Improbidade Administrativa para abranger “os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade privada que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de entes públicos ou governamentais” e “os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade privada para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra no seu patrimônio ou receita atual”. Assim, pessoas jurídicas de diversas naturezas terão direito à tutela do seu patrimônio, demandando, a lei igualmente, a ampliação dos agentes legitimados a propor as ações.
Como corolário da ampliação da tutela procedida ex vi dos §§ 6º e 7º do art. 1º da nova Lei de Improbidade, é possível imaginar situações em que o desrespeito deliberado a determinadas normas trabalhistas gerou prejuízo a determinada entidade privada subvencionada pelo poder público, em favorecimento indevido de um de seus gerentes ou gestores e reflete negativamente na prestação de serviços. Nesse caso, estar-se-á diante de uma matéria trabalhista pura, mediante análise de relações de trabalho e focadas em agentes com vínculo celetista.
O princípio da “unidade de convicção”, que fica evidente na extensão da competência da Justiça do Trabalho, prevista no art. 114 da Constituição, quando envolve direitos e interesses difusos ou coletivos decorrentes das relações laborais, incluindo, em tese, a improbidade administrativa trabalhista. Tal situação, embora se reconheça bastante restrita, recairia em um hiato das atuações dos Ministério Públicos Estaduais e Federal, notadamente para situações de entidades fundacionais e organizações da sociedade civil privadas que existem em virtude dos contratos de gestão ou contratualização pública. Saúde e educação são duas áreas onde se avançou muito na publicização de serviços e onde têm sido identificadas condutas ímprobas de alguns gestores que repercutem no não pagamento de verbas trabalhistas e danos ao Erário.
Assim, acredita-se que o Ministério Público do Trabalho e a Justiça do Trabalho podem dar importante contribuição, inclusive porque, com a nova legislação, o Ministério Público passa a ser o único titular possível de ações de improbidade. Pela regra anterior, qualquer pessoa jurídica poderia fazê-lo e não era incomum a advocacia pública mover essas ações exatamente no contexto de convênios, projetos e repasses de execução descentralizada que recorrentemente também eram investigados pelo MPT no contexto de contratações irregulares de pessoal na execução.
De todo modo, se mesmo antes da nova legislação já se encontravam ecos de uma competência laboral e atribuição do parquet trabalhista, é ainda mais necessária a reflexão e debate jurisdicional sobre o ponto à luz da Lei 14.230/2021 e do interesse social na tutela coletiva adequada à probidade administrativa.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Tão significativas são estas situações que, na Ação n. 03/2018 da ENCCLA (Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro), foi realizado diagnóstico das irregularidades em contratos de gestão em saúde, que funcionam como uma forma de terceirização lato sensu da gestão e prestação dos serviços de saúde à população. Consoante o relatório, detectaram-se irregularidades recorrentes, relacionadas à falta de critérios objetivos para a seleção de organizações sociais; ausência de estudos prévios e planejamento adequado; ausência de indicadores ou dos atributos necessários para que a avaliação do desempenho da organização social seja efetiva; e inexistência de controle adequado quanto à gestão dos recursos
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> ARE 798293 AgR, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 08/09/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-188 DIVULG 21-09-2015 PUBLIC 22-09-2015
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> CC 59.549/MA, Rel. Ministra ELIANA CALMON, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/08/2006, DJ 11/09/2006, p. 216
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> RR - 852-53.2011.5.18.0053, Relator Ministro: João Oreste Dalazen, Data de Julgamento: 08/11/2017, 4ª Turma, Data de Publicação: DEJT 17/11/2017

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JOTA

Nova Lei de Improbidade reforça debate sobre papel da Justiça trabalhista na tutela coletiva à probidade administrativa

Improbidade administrativa, corrupção e a Justiça do Trabalho

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