Pandemia

Imposto sobre grandes fortunas e a Covid-19

Um debate sobre a (in)eficácia da criação desta exação neste momento de crise

despacho presidencial e receita federal
Foto: Pixabay

No atual cenário de pandemia da Covid-19, a fim de conter a disseminação da doença, diversos estados e municípios determinaram o fechamento do comércio e fazem a recomendação de que os cidadãos permaneçam em suas residências. Em diversas unidades da federação, foi decretada quarentena oficial, o fechamento do comércio, dentre outras medidas.

Esse quadro de paralisação da atividade econômica e isolamento social tem provocado sérios prejuízos a diversos setores. A fim de minorar a recessão, o governo tem anunciado medidas de incentivo à economia.

Segundo levantamento do observatório de política fiscal do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV)[1], de 23 de março de 2020, as medidas tributárias anunciadas pelo governo totalizavam R$ 844 bilhões (11,6% do PIB). Em consequência, diversas medidas de compensação estão sendo discutidas, a fim de amenizar o impacto nas contas públicas, dentre elas, a instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas – IGF.

Embora tenha previsão na redação originária da Constituição Federal de 1988 (CF/88), o IGF jamais fora instituído. Porém, esse cenário poderá mudar muito em breve, considerando que tramita na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado o projeto de Lei Complementar nº 183/2019, propondo a criação do IGF, que incidirá sobre patrimônios líquidos superiores a R$ 22,8 milhões, com alíquotas que vão de 0,5% a 1%, em caráter temporário e com duração de dois anos. Os recursos arrecadados serão direcionados para financiar as medidas de combate à crise do covid-19, com a expectativa de arrecadação anual estimada de R$ 70 a 80 bilhões[2].

Contudo, um adendo é necessário. Caso aprovado o projeto, não poderá haver a vinculação das receitas da exação às atividades de combate à pandemia, pois o art. 167, IV, da CF/88 veda a vinculação de impostos a órgão, fundo ou despesa, salvo os casos expressamente previstos no próprio texto constitucional.

Porém, isso não quer dizer que, em caso de instituição do imposto sobre grandes fortunas, suas receitas não possam ser usadas para financiar as medidas governamentais de combate à pandemia da Covid-19, seja nas áreas da saúde ou econômica. O resultado da arrecadação pode sim ser utilizado no financiamento do combate aos prejuízos sociais e econômicos da pandemia, o que não pode existir é a necessária vinculação.

Pois bem. Em meio à atual crise, a criação deste tributo pode ser vista a partir de perspectivas diversas. Na primeira, pode ser vista como forma de realização de justiça fiscal, considerando a capacidade contributiva dos titulares das grandes fortunas. Na segunda, encara-se a tributação como forma de desestímulo à atividade produtiva e à realização de investimentos, provocando uma possível fuga de capitais.

Segundo informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNDA Contínua), constatou-se que, em 2017, os 10% da população com os maiores rendimentos detinham 43,3% da massa de rendimentos do país, enquanto a parcela dos 10% com os menores rendimentos detinha 0,7% das remunerações[3]. Além disso, conforme levantamento da Forbes, no Brasil, há 206 bilionários que, em 2019, detinham R$ 1,2 trilhão, quase 20% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro[4].

Historicamente, no Brasil, os cidadãos de menos capacidade econômica sofrem uma maior carga tributária comparativamente aos cidadãos que detêm maior capacidade, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Por exemplo, foi constatado que os 10% mais pobres da população destinam 32,8% da sua renda para o pagamento de tributos, ao passo que, para os 10% mais ricos, o ônus estimado é de 22,7%[5].

Esses dados são utilizados por aqueles que se alinham à primeira perspectiva acima exposta, pois demonstram a disparidade na concentração de renda e na sujeição à tributação no Brasil.

Então, com base nessas premissas, a primeira linha de pensamento defende que a instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas consiste em medida harmônica com o princípio da capacidade contributiva, permitindo que aqueles que concentram a maior parte das riquezas contribuam de forma mais significante no financiamento do Estado, conferindo lastro financeiro para a adoção das medidas de combate aos efeitos econômicos ou sociais da pandemia de Covid-19 no Brasil.

Segundo essa lógica, a tributação de grandes fortunas permitiria que o Estado adotasse medidas de socorro à atividade econômica, com o fito de reduzir o desemprego no país, principalmente nas classes sociais mais desfavorecidas, o que facilitaria a manutenção ou redução do impacto no seu poder de compra.

Assim, essa primeira corrente argumenta ser preferível que a fonte de custeio das medidas de salvaguarda governamentais seja prospectada daqueles que mais possuem capacidade econômica, evitando-se o aumento da carga tributária sobre bens de consumo, o que afetaria principalmente as classes sociais mais baixas, considerando a regressividade desse tipo de tributação.

Além disso, os defensores dessa primeira corrente ainda podem advogar que as grandes fortunas, enquanto conjunto de propriedades, não estão sujeitas somente à fruição de seus titulares, pois este direito deve atender a sua função social, nos termos do art. 5º, inciso XXIII, da CF/88.

Logo, dentro dessa perspectiva, defende-se que o detentor de grandes riquezas possui deveres e responsabilidades para com a sociedade, atendendo ao legítimo interesse coletivo, notadamente considerando os possíveis efeitos deletérios do desemprego às classes mais baixas.

Por outro lado, há uma segunda corrente que discorda da instituição do IGF no presente momento, sob o argumento de que a sua instituição provocasse efeito justamente oposto às medidas de estímulo à economia. Isso porque, ao avançar sobre o patrimônio de pessoas físicas e jurídicas, estar-se-ia reduzindo sua capacidade de investimentos, desestimulando a atividade econômica como um todo, que compreende a produção de emprego e renda que findará por beneficiar toda a sociedade.

Além do mais, essa segunda corrente alerta também que a eventual tributação sobre grandes fortunas pode ocasionar uma fuga de capitais para outros países em que a tributação seja mais vantajosa, o que certamente desestimularia a atividade produtiva no Brasil, tornando-o menos atrativo ao investimento estrangeiro.

Com efeito, na segunda perspectiva, crê-se que os momentos de crise econômica não são adequados para a elevação da tributação, principalmente a que recai sobre aqueles que, comumente, detém os meios de produção e circulação de riqueza. Isso porque desestimularia a atividade econômica e a realização de investimentos, agravando a crise.

A revisão da tributação da renda no Brasil, com uma maior incidência sobre os ganhos dos mais ricos, a criação de novas faixas de alíquotas mais progressivas, a diminuição de mecanismos diferenciados de taxação, como as deduções por despesas de saúde e educação, a extinção da isenção da tributação dos dividendos, a reformulação da tributação do consumo e a desoneração de folha de pagamentos, dentre outros, seriam instrumentos aptos para iniciar uma reformulação do sistema sem a criação do IGF, segundo os que se posicionam contra este tributo.

Dessa forma, percebe-se que o tema da tributação de grandes fortunas, em meio à pandemia de Covid-19 e aos efeitos econômicos por ela provocados, pode ser interpretado de duas formas diversas, o que estimula uma profunda reflexão sobre o assunto, demonstrando que maiores estudos devem ser realizados a fim de se demostrar a (in)eficácia dessa estratégia para os fins a que propõe.

 


[1] Disponível em: <https://observatorio-politica-fiscal.ibre.fgv.br/sites/observatorio-politica-fiscal.ibre.fgv.br/files/u52/as_principais_reacoes_a_crise_0.pdf>. Acesso em 28 mar 2020.

[2] Fonte: Agência Senado. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/26/imposto-temporario-sobre-grandes-fortunas-esta-pronto-para-votacao-na-cae>. Acesso em 28 mar 2020.

[3] Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/20843-pnad-continua-10-da-populacao-concentravam-quase-metade-da-massa-de-rendimentos-do-pais-em-2017>. Acesso em: 30 mar 2020.

[4] TEIXEIRA, Lucas Borges; ERDEL, Lurdette. Lista Forbes bilionários brasileiros 2019. São Paulo: Forbes brasil, edição nº 71, p. 76-114.

[5] BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Comunicado da Presidência. Receita pública: quem paga e como se gasta no Brasil. Disponível em: <http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/5297/1/Comunicado_n22_Receita.pdf>. Acesso em 29m mar 2020.