Bruno Capelli Fulginiti

No final do ano passado, o Congresso Nacional deixou de apreciar projeto de lei que prorrogava por mais cinco anos a dedução de gastos de até R$ 1,2 mil com a previdência de empregados domésticos. Com isso, a autorização legal para a dedução – criada em 2006 para incentivar a formalização do mercado de trabalho – perdeu a sua validade no ano de 2020.
Talvez estimulado pela economia anual de aproximadamente R$ 700 milhões com a supressão do benefício, o Governo Federal prepara a extinção de outras deduções permitidas na apuração do imposto de renda de pessoas físicas, dentre as quais estariam incluídas aquelas relacionadas aos gastos com saúde e educação.
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A justificativa para tanto é singela: este tipo de benefício seria aproveitado apenas pela parcela mais rica da população. Nas palavras do próprio Ministro Paulo Guedes, o “benefício” seria “regressivo e ineficiente”.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
O Ministro não deixa de ter razão. Só pode deduzir um gasto do imposto de renda aquele contribuinte que teve condições de gastar. E nem todo contribuinte pode gastar com médicos e escolas privadas. Na verdade, apenas uma pequena parcela da população brasileira tem condições de suportar estes gastos. A grande maioria ainda depende rede pública, que – há muito – sofre com a falta de recursos ocasionada, dentre outros fatores, por questionáveis políticas de renúncia fiscal.
<blockquote class="jota-article__eye">Além dos pontos questionados pelo Governo, a crítica direcionada às deduções no imposto de renda também poderia ser direcionada à outras falhas da atual sistemática de deduções.</blockquote>
Em primeiro lugar, falhas qualitativas evidenciadas, de um lado, pela existência de autorização para a dedução de gastos que não necessariamente estão vinculados à promoção do mínimo existencial dos contribuintes (a exemplo das despesas com estudos de pós-graduação), e, de outro lado, pela proibição de deduções de outras despesas importantes para o exercício de atividades profissionais (a exemplo de cursos de idiomas ou cursos pré-vestibulares).
Em segundo lugar, falhas quantitativas evidenciadas, de um lado, pelo absoluto descompasso entre os limites de dedutibilidade atualmente veiculados pela legislação, notoriamente insuficientes para assegurar a promoção do mínimo existencial de contribuintes (a exemplo dos gastos com instrução); e, de outro lado, pela falta de limites para a dedução de outros gastos, como aqueles incorridos em contribuintes com questionáveis despesas de saúde (que envolvem até mesmo procedimentos meramente estéticos).
No entanto, cumpre referir que as deduções do imposto de renda que vêm sendo questionadas não são “benefícios fiscais”, mas uma imposição constitucional decorrente do dever de preservação de direitos fundamentais. Em verdade, muitas vezes, elas servem justamente à promoção dos direitos fundamentais que o próprio Estado é incapaz de assegurar.
Prova disso são a falta de vagas em escolas públicas, a educação deficiente oferecida por estas instituições ou ainda as intermináveis filas de atendimento no Sistema Único de Saúde que atentam contra a própria dignidade daqueles que mais precisam.
Ademais, por meio das deduções no imposto de renda, reduz-se indiretamente o ônus econômico suportado pelo contribuinte na contratação de serviços privados e estimula-se aquela parcela da população com maior disponibilidade econômica a buscar tais serviços na iniciativa privada, permitindo que a rede pública seja utilizada apenas por aqueles que mais precisam.
A renda tributável corresponde apenas àquela riqueza auferida pelo contribuinte acima do montante necessário à promoção da sua subsistência e a de sua família. Nesse mínimo existencial imune à tributação, estão incluídos – pelo menos em parte – os gastos com saúde e educação.
Conforme destacado por Alcides Jorge Costa, “como não é possível deixar exclusivamente ao contribuinte a determinação dos montantes a deduzir para manutenção da integridade do capital, porque haveria a natural tendência a serem feitas deduções excessivas, a lei tributária estabelece parâmetros paras estas deduções”.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> Daí por que o legislador ter utilizado as deduções  para a delimitação da renda tributável.
Mas isso não é tudo: as deduções no imposto de renda também funcionam como um importante mecanismo de igualdade na tributação. Regras e limites de dedutibilidade correspondem a generalizações. Essas generalizações buscam diferenciar contribuintes para fins de pagamento do imposto de renda. Por meio delas, são selecionadas propriedades dos contribuintes que são relevantes para tal diferenciação.
Essas propriedades dizem respeito tanto a quais despesas devem ser subtraídas na composição da renda tributável quanto a em que medida devam ser subtraídas. Por meio delas, contribuintes em situações diferentes são tributados de maneira diferente.
<blockquote class="jota-article__eye">Ainda que duas famílias tenham a mesma renda familiar, um casal sem filhos tem mais dinheiro no fim do mês do que uma família que precisa custear a saúde e a educação de três filhos. Seria justo cobrar o mesmo imposto de renda desses dois núcleos familiares?</blockquote>
Este exemplo ilustra bem como as deduções atuam na personalização do imposto de renda. Justamente porque a igualdade será o instrumento utilizado para determinar os limites mínimos e máximos da zona de capacidade contributiva e porque a sua determinação depende de uma análise individualizada sobre cada situação apresentada, o legislador ordinário trabalha com regras de dedutibilidade para eliminar a necessidade dessa deliberação casuística sobre determinados gastos ou despesas que, no seu entendimento, estão diretamente relacionados à preservação do núcleo essencial de direitos fundamentais.
As deduções no imposto de renda permitem adequar a tributação às diferentes circunstâncias de cada contribuinte. Sem elas, somos tratados da mesma forma – apesar de nossas diferenças. Daí porque a substituição das deduções do imposto de renda por alíquotas menores não é suficiente para assegurar a igualdade na tributação.
Importa referir que a pretendida simplificação do imposto de renda já foi tentada no passado, com resultados questionáveis. A Lei nº 7.713/88 alterou significativamente a forma de apuração do imposto, promovendo simplificação substancial na sistemática de tributação. A própria exposição de motivos da aludida lei traz pronunciamento do Ministro da Fazenda à época, constatando o grau de sofisticação e complexidade que a sistemática de apuração do imposto de renda então vigente havia alcançado.
A nova lei marcou a transição de uma sistemática de tributação cedular, em que as várias categorias de rendimentos eram classificadas em cédulas e tributadas de maneira diferenciada, para uma sistemática de tributação global, em que todos os rendimentos são agregados e tributados indistintamente em conjunto.
Mais do que isso: a alteração promovida pela Lei nº 7.713/88 tratou de alterar um sistema de tributação que adotava diferenciação qualitativa sobre os rendimentos auferidos pelo contribuinte, tributando de maneira mais onerosa os rendimentos do capital e de modo menos oneroso os rendimentos advindos do trabalho, para um sistema de tributação com base em diferenciação quantitativa, por meio do qual se aplica uma tabela progressiva crescente sobre os rendimentos totais do contribuinte, sem diferenciação quanto à sua origem.
Não obstante, a nova lei inicialmente fixou apenas duas alíquotas para tributação (reduzidas), em substituição às oito faixas de alíquotas anteriormente existentes, ocasionando o achatamento do tributo que perdeu em muito seu caráter progressivo com esta alteração.
A simplificação pretendida pela Lei nº 7.713/88 certamente atingiu seu objetivo, mas também ocasionou a despersonalização do imposto. Com a crescente utilização de padrões fiscais pela legislação, a determinação da renda tributável acabou por se afastar das circunstâncias pessoais de cada contribuinte.
Os ganhos em praticidade na apuração e na fiscalização do imposto resultaram em perdas no que tange à justiça fiscal e contribuíram para incrementar o caráter regressivo do imposto.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Ainda que mais tarde a despersonalização do imposto tenha sido atenuada por meio da introdução de novas faixas de alíquotas, as principais inovações trazidas pela Lei nº 7.713/88 foram mantidas.
Com isso quer-se apenas destacar que as deduções no imposto de renda devem buscar a preservação do conteúdo essencial dos direitos fundamentais envolvidos, e não sua plena realização. Entender o contrário implicaria atribuir caráter regressivo a um imposto que a própria Constituição determina seja progressivo, já que aqueles contribuintes com maior capacidade econômica poderiam incorrer em maiores dispêndios e, assim, artificialmente reduzir sua capacidade contributiva para fins de apuração do imposto de renda.
Todavia, é preciso perquirir o que efetivamente se pretende preservar da tributação por meio das deduções e desenvolver instrumentos para que esta finalidade seja atingida com maior precisão. A redução do contencioso tributário relacionado a deduções no âmbito do imposto de renda não passa pela edição de mais regras ou pela extinção das deduções, mas por uma disciplina legal mais próxima da realidade que pretende disciplinar.
Abusos precisam ser enfrentados com maior fiscalização e não por meio da eliminação do caráter pessoal do imposto de renda. A simplificação da tributação não deve vir à custa de desigualdade e injustiça. Ainda que as deduções no imposto de renda possam ocasionar uma tributação regressiva – onde aqueles que têm mais, pagam menos – isso pode ser facilmente enfrentado com a instituição de limites de dedutibilidade, como já se verifica nos gastos com educação (ainda que em montantes flagrantemente insuficientes).
Ainda assim, não devemos receber tal iniciativa como uma tentativa de aumentar a arrecadação a qualquer custo, mas antes como a sinalização de uma justificável inconformidade com as iniquidades do Sistema Tributário Nacional. O imposto de renda é altamente regressivo no Brasil e precisa ser reformulado a fim de eliminar as profundas desigualdades na distribuição da carga tributária entre as diferentes camadas da população brasileira.
Esta reformulação é ainda mais fácil do que a reforma da tributação do consumo que hoje tramita no Congresso Nacional, já que pode ser realizada por meio de lei ordinária. Decisivo é que essas alterações venham em observância ao texto constitucional, buscando harmonizar a necessária simplificação tributária com a indispensável realização de direitos fundamentais.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/08/09/paulo-guedes-quer-fim-das-deducoes-no-ir-e-reducao-de-aliquotas.ghtml">https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/08/09/paulo-guedes-quer-fim-das-deducoes-no-ir-e-reducao-de-aliquotas.ghtml</a>; <a href="https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/08/08/guedes-confirma-estudos-para-acabar-com-deducoes-e-baixar-aliquotas-do-ir.htm">https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/08/08/guedes-confirma-estudos-para-acabar-com-deducoes-e-baixar-aliquotas-do-ir.htm</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> COSTA, Alcides Jorge. “Conceito de renda tributável”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva. (Coord.) Imposto de Renda – Conceitos, Princípios, Comentários. São Paulo: Atlas, 1996, p. 25.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> TILBERY, Henry. O novo Imposto de Renda do Brasil – comentários à Lei n. 7.713/88 ajustado aos novos métodos de atualização monetária. São Paulo: IOB, 1989, p. 13 e ss.

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JOTA

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