Thiago Gomes Anastácio

1.
Ontem acordei em 1992. Àquele tempo, com apenas doze anos, lembro-me do meu falecido pai dizendo “Olha lá o Dr. Evandro” enquanto assistia a sua acusação - em certa parte - bem, bem pilantrinha, da tribuna do Senado dirigida contra o Presidente da República.
Evandro Cavalcanti Lins e Silva, um dos deuses da advocacia criminal<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e um daqueles poucos que foi tudo (Ministro no Executivo, no Judiciário, Procurador Geral da República, advogado do século etc.), era conhecido da família, por causa do tio de meu pai (logo, meu tio avô) Alfredo Tranjan, um dos outros deuses da advocacia e amigo dos mais próximos de Evandro.
Lembro-me disso e de mais nada. Só anos depois Flávia, neta de Evandro, me mandou seu documentário “O vício da liberdade”, em que, com o olhar de neta, tentou através da arte entender a vida do avô genial.
E deste documentário nasce a observação sobre a acusação ser “bem pilantrinha”. Invocado pela Ordem dos Advogados do Brasil e pela Associação Brasileira de Imprensa para representá-las (por seus Presidentes respectivos, Marcello Lavenère Machado e Barbosa Lima Sobrinho) no processo de impeachment de Collor junto ao Senado da República, Evandro, sábia e habilmente, abre um jornal na tribuna e afirma:
“O Evaristinho, meu afilhado, meu pupilo, quer dizer, o Evaristo de Moraes Filho, disse: ‘O presidente merece o benefício da dúvida’. Ora, senhores senadores, um presidente duvidosamente honesto?”
Genial. Evandro, em um único parágrafo falado, diminuiu adversário dos mais capazes – colocando-o como seu aprendiz – e subverteu princípio do direito (de que a dúvida deve beneficiar o processado) que tanto defendeu ao longo de sua trajetória, fazendo-o, por óbvio, pois consciente que qualquer julgamento político, ao longo da história, pode até ter feições do direito, mas é político. Algo como a Convenção francesa do séc. XVIII.
<ol start="1992">
<li>Um bom ano. Saudades dos que estavam vivos.</li>
</ol>
&nbsp;
2.
Chegou a hora dos advogados maiores; não os de necessariamente idade avançada, mas dos que vivem suas plenitudes intelectuais e que forjaram-se para a batalha do julgamento. Não é hora para empresários do direito. Definitivamente não é. Nessas horas os assessores de imprensa, as “aberturas” dos gabinetes de Brasília e o “bom trânsito” não importam. Não há farsa que deixe de sucumbir à publicidade republicana.
O rito do impedimento é muito parecido – por suas fases – ao procedimento do Júri.
O presidente da mesa da Câmara dos Deputados recebe o pedido, aceitando-o ou não.
Leva à votação colegiada (pois o que importa, é o colegiado) que autorizará ou não a abertura do processo; ou seja, a Câmara dos Deputados decide se (no caso) a Presidente da República deve ser levada a julgamento. Caso positiva a resposta, a Casa lava as mãos e os “juízes” naturais são chamados, ou seja, os Senadores da República.
Autorização para levar a julgamento e envio do julgamento à outros competentes? Pronúncia.
Julgamento com defesa oral, inquirição de testemunhas e imediata decisão? Júri.
Simples assim.
Vejamos, postando em confronto o Código de Processo Penal e a Lei 1079/50, as similitudes de ambas as formas de julgamento.
Comece-se pelo ato de deflagração do processo, que em ambos os procedimentos é nominado denúncia:
<table style="height: 502px;" width="615">
<tbody>
<tr>
<td width="203">Tribunal do Júri</td>
<td width="238">Lei 1.079/1950</td>
<td width="91">Momento Processual</td>
</tr>
<tr>
<td width="203">Artigo 5º, XXXVIII, da CF; Artigo 78, do CPP; Artigo 41 do CPP - A denúncia conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.</td>
<td width="238">1. É permitido a qualquer cidadão denunciar o Presidente da República; 2. A denúncia assinada pelo denunciante e com firma reconhecida, deve ser acompanhada dos documentos que a comprovem. Nos crimes de que haja prova testemunhal, a denúncia deverá conter o rol das testemunhas, em número de cinco no mínimo; 3. As testemunhas arroladas no processo deverão comparecer para prestar o seu depoimento; (Artigo 14 a 18)</td>
<td width="91">Denúncia</td>
</tr>
</tbody>
</table>
Tirante a exigência processual penal de descrição do fato criminoso – não estipulada na legislação do Impedimento – verifica-se a imposição de elementos comuns.
Assim como para a deflagração processo penal é necessário justa causa, ou seja, elementos, anteriores, conhecidos, legais e legítimos que acionem e tirem da inércia o Poder Judiciário, de igual modo é necessário que a inicial de Impedimento seja acompanhada de “documentos que a comprovem” (suas alegações), ou em caso de testemunhas que a façam comprovar, que sejam arroladas.
Ou seja, tem-se a necessidade de descrição do fato imputável e a indicação dos elementos de justa causa fazendo satisfeitos princípios básicos civilizatórios, como o conhecimento, pelo acusado, dos fatos que lhe são imputados e quais dados concretos autorizam a deflagração procedimental.
A denúncia, pois, em ambos os procedimentos, é recebida para seja iniciado o processo. Processo que significa cautela, possibilidade ampla de defesa e respeito às garantias individuais.
Momento processual: recebimento da denúncia
<table style="height: 1824px;" width="623">
<tbody>
<tr>
<td width="203">Tribunal do Júri</td>
<td width="238">Lei 1.079/1950</td>
<td width="91">Momento Processual</td>
</tr>
<tr>
<td width="203">1. O juiz, ao receber a denúncia, ordenará a citação do acusado para responder a acusação, por escrito, no prazo de 10 dias; 2. A acusação deverá arrolar testemunhas até no prazo máximo de 8; 3. Na resposta a acusação o acusado porderá arguir preliminares e alegar tudo que interesse a defesa. Especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas até o máximo de 8; 4. Não apresentada a resposta no prazo legal, será nomeado defensor; 5. Apresentada defesa o juiz ouvirá o MP em 5 dias; 6. O juiz determinará a inquirição das testemunhas e a realização das diligências requeridas pelas partes no prazo máximo de 10 dias; 7. Na audiência de instrução proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, se possível, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado e procedendo-se o debate; 8. As provas serão produzidas em uma só audiência, podendo o juiz indeferir as consideradas irrelevantes; 9. Encerrada a instrução probatória, as alegações finais serão orais, concedendo-se a palavra à acusação e à defesa pelo prazo de 20 minutos, prorrogáveis por mais 10; 10. Encerrado os debates o juiz proferirá decisão ou o fará em 10 dias; 11. O procedimento será concluído no prazo máximo de 90 dias. (Artigo 406 a 412).</td>
<td width="238">1.   Recebida a denúncia, será lida na sessão seguinte e despachada a uma comissão especial eleita com representantes de todos os partidos para opinar sobre a mesma; 2. A comissão se reunirá dentro de 48 horas; elegerá um presidente e relator; emitirá parecer dentro do prazo de 10 dias, sobre se a denúncia deve ser ou não julgada objeto de deliberação; 3. O parecer da comissão especial será lido e publicado; 4. 48 horas após a publicação oficial será o mesmo incluído, em primeiro lugar, na ordem do dia da Câmara dos Deputados, para discussão única; 5. Cinco representantes de cada partido poderão falar por uma hora sobre o parecer; 6. Após encerrada a discussão e o parecer for considerado objeto de deliberação, será remetida cópia autenticada ao Presidente, que possuíra 20 dias para contestá-lo e indicar meios de prova; 7. Ao final deste prazo, com ou sem contestação, a comissão seguirá com oitiva de todas as partes (testemunhas de ambas as partes, denunciante, denunciado que poderá assistir pessoalmente ou por seu procurador a todas as medidas realizadas pela comissão; 8. Finda essas diligências a comissão especial proferirá, no prazo de dez dias, parecer sobre procedência ou não da denúncia; 9. Parecer será incluído na ordem do dia da sessão imediata para ser submetido a duas discussões, com interregno de 48 horas; 10. Encerrada a discussão do parecer, será o mesmo submetido a votação nominal; 11. Se do parecer resultar a procedência da denúncia, considerar-se-á decretada a acusação pela Câmara dos Deputados;(Artigos 19 a 23,§1º)</td>
<td width="91">Recebimento da Denúncia</td>
</tr>
</tbody>
</table>
Recebida a denúncia e deflagrado o processo de verificação da denúncia – espécie de cautela diante da gravidade das imputações – se iniciam os atos do contraditório, com a abertura de prazo para a defesa do imputado (10 dias no rito do Júri e 20 dias no do Impedimento) e indicação de provas e meios de provas que pretende apresentar.
Produzidos tais elementos, inicia-se singela diferenciação até pela natureza dos procedimentos. No Júri as deliberações sobre a denúncia são monocráticas, cabendo ao magistrado presidente da instrução decidir se tratante, o caso, de admitir a acusação formal e remeter o julgamento ao Júri, porquanto no processo de impedimento abre-se para a comissão competente a discussão, aberta e pública, acerca do angariado na instrução do processo.
Momento processual: pronúncia
<table style="height: 859px;" width="612">
<tbody>
<tr>
<td width="203">Tribunal do Júri</td>
<td width="238">Lei 1.079/1950</td>
<td width="91">Momento Processual</td>
</tr>
<tr>
<td width="203">1. O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade da fato e da existência de indicios suficientes de autoria ou de participação; 2. A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existencia de indicios suficientes de autoria e participação; 3. Se o crime for afiançavel, o juiz arbitrará o valor da fiança para a concessão ou manutenção da liberdade provisória; 4. O juiz poderá dar ao fato definição juridica diversa da constante da acusação; 5. A intimação da decisão da pronúncia será feita pessoalmente ao acusado, ao defensor nomeado e ao MP. Será intimado por edital o acusado solto que não for encontrado; 6. Da pronúncia caberá recurso em sentido estrito. (Artigo 413 a 420).</td>
<td width="238">1.   Decretada a acusação, será o denunciado intimado imediatamente pela Mesa da Câmara dos Deputados; 2. A Câmara dos Deputados elegerá uma comissão de 3 membros para acompanhar o julgamento do acusado. (Artigo 23,§2º a §6º)</td>
<td width="91">Pronúncia</td>
</tr>
</tbody>
</table>
De qualquer forma, em ambos os casos, se a acusação for admitida, nos casos do Júri pelo magistrado, nos casos de Impedimento, pela Comissão, se impõe o deslocamento dos julgamentos para os juízes competentes – na primeira hipótese, os jurados do Conselho e na segunda, ao Senado da República por seus senadores.
Na primeira hipótese, pois, tem-se uma pronúncia. Na segunda, um decreto legislativo de acusação formal.
De qualquer maneira, os instrutores, em ambos os casos, lavam às mãos à maneira de Pilatos.
Momento processual: julgamento
<table style="height: 1433px;" width="614">
<tbody>
<tr>
<td width="203">Tribunal do Júri</td>
<td width="238">Lei 1.079/1950</td>
<td width="91">Momento Processual</td>
</tr>
<tr>
<td width="203">1. No dia do julgamento, comparecerá 1 juiz togado e 25 jurados que serão sorteados dentre os alistados, 7 constituirão o conselho de sentença; 2. Prestado compromisso pelos jurados, será iniciada a instrução plenária qunando o juiz presidente, MP, assistente, defensor tomarão, sucessiva e diretamente, as declarações do ofendido e, se possível, inquirirão as testemunhas arroladas pela acusação; 4. Os jurados poderão formular perguntas ao ofendido e às testemunhas por intermédio do juiz presidente; 5. Na sequência será o acusado interrogado se estiver presente; 6. Encerrada a instrução, será concedida a palavra sucessivamente ao MP, assistente, defesa; 7. A acusação poderá replicar e a defesa treplicar. O tempo destinado à acusação e à defesa é de uma hora e meia para cada, e de uma hora para réplica e outro tanto para a tréplica; 8. Findos os debates os jurados serão recolhidos na sala secreta e proferirão seus votos; 9. Na sequência o juiz presidente proferirá a sentença. (Artigo 473 a 493)</td>
<td width="238">(Artigo 37). 1. No dia do julgamento, presente o acusado, seu advogado, comissão acusadora, Presidente do STF, abrindo a sessão, mandará ler o processo preparatório e libelo e os artigos de defesa; em seguida inquirirá as testemunhas, que deverão depor publicamente e fora da presença das outras; 2. Qualquer das partes poderá direcionar perguntas às testemunhas; 3. Qualquer das partes poderá arguir as testemunhas sem contudo interrompê-las e requerer a acareação; 4. Na sequência será o debate verbal entre a comissão acusadora e o acusado ou seus advogados pelo prazo que o Presidente fixar e que não poderá exceder 2 horas; 5. Findos os debates orais e retiradas as partes, abrir-se-á discussão sobre o objeto da acusação; 6. Encerrada a discussão o Presidente do STF fará relatório resumido da denúncia e das provas da acusação e da defesa e submeterá a votação nominal dos senadores o julgamento; 7. Caso o julgamento seja absolvitório produzirá desde logo, todos os efeitos a favor do acusado; 8. Caso o julgamento seja acusatório, o Senado por iniciativa do presidente fixará o prazo de inabilitação do condenado para o exercicio que qualquer função pública; 9. Caso de crime comum, ainda, deliberará sobre se o Presidente deverá submeter à justiça ordinária, independentemente da ação de qualquer interessado; 10. A condenação o torna destituido do cargo; 11. A decisão do Senado será lavrada, nos autos do processo, pelo presidente do STF, assinada pelos Senadores que funcionam como juizes, transcrita na ata de sessão e, dentro dessa, publicada no DO e DCN. (Artigo 27 a35)</td>
<td width="91">Julgamento</td>
</tr>
</tbody>
</table>
As semelhanças restam ainda mais evidentes na previsão legal dos julgamentos. Tanto em um quanto em outro Tribunal (sim, o Senado da República se torna um Tribunal político) as formalidades são absolutamente congruentes.
Juízes leigos ao direito, presentes.
Partes – comissão acusatória e advogados de defesa – presentes.
Testemunhas ouvidas e passíveis de inquirição tanto pela acusação quanto pela defesa. E curiosamente, um elemento simbólico/técnico: um magistrado togado presidindo ambos os julgamentos realizados pelos leigos. Nos casos afeitos ao Júri, o magistrado de primeiro grau. Nos processos de Impedimento, o presidente do Supremo Tribunal Federal, até pela necessária interferência do terceiro poder não envolvido no julgamento e a resguardar garantias e direitos individuais de um chefe de Poder.
Tem-se, pois, que estamos falando de processos de idêntico ritual.
Juízes leigos ao direito. Presidência de um magistrado togado. Defesas orais. Instrução para se filtrar a acusação se o caso for. Produção de provas perante o colegiado leigo de julgadores. Votos não fundamentados, seja para que lado forem.
&nbsp;
3.
Como vimos, pode ser que estaremos, pela segunda vez em pouco mais de duas décadas, perante o grande Júri brasileiro.
Não cabe nesse texto valorações sobre as acusações que pensam sobre a presidente da República, se passíveis de adequação ao chamado crime de responsabilidade, nem se o “juiz” recebedor da denúncia seria competente para fazê-lo (impedimento) ou não.
Juristas estão em confronto sobre o tema. De um lado, tucanos históricos ao lado petistas descontentes. De outro, petistas históricos.
O ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, líder tucano maior, foi claro sobre o tema: o governo é legal, mas não é legítimo. Estivéssemos no parlamentarismo, o problema seria resolvido sem esse ritual macabro de julgamento, quando e onde o réu é sempre um oprimido (Waldir Troncoso Peres).
Mas fato é que a política estará dentro desse Tribunal e pode acontecer de a serenidade e a consciência da certeza darem lugar às vontades políticas e aos ódios partidários. E isso não seriam bom. Trata-se do drama dos Tribunais políticos.
Nesses julgamentos, só duas certezas: ou cabeças rolam, ou passam a marchar empinadas.
________
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Quem conhece – como parece obrigatório – os livros clássicos sobre a advocacia e julgamentos, entenderá porque usei a expressão “deuses da profissão”.

Plenário do Senado

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Ritos semelhantes, juízes leigos e final imprevisível

Impeachment: um tribunal do júri no Congresso

Ritos semelhantes, juízes leigos e final imprevisível