Flávio Luiz Yarshell

Sempre se soube ser improvável que eventual decisão do Senado Federal, de destituir definitivamente a Presidente da República, deixasse de ser submetida ao controle do Poder Judiciário, pelo Supremo Tribunal Federal. Isso já ocorrera no passado recente, embora com aspectos particulares dada a prévia renúncia do então presidente a ser deposto. Assim, sem que se pudesse prever o desfecho da controvérsia, entendimento pretérito daquela Corte poderia funcionar como um razoável indicativo do que viria a acontecer agora.
Contudo, o que aparentemente não se poderia esperar é que esse controle, mais do que provocado pela destituída, viesse também de outra origem e por fundamento diverso: o alegado equívoco de, em julgamento fracionado, ter-se imposto a destituição, mas se ter recusado a inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, conforme regra do § único do art. 52 da Constituição da República.
Diante do inesperado, para além do salutar debate público já instaurado sobre o cerne da polêmica, talvez seja útil refletir, sob prisma da técnica jurídica, o que se pode esperar do STF neste momento.
Tomando-se exclusivamente o capítulo que impôs a perda do cargo, parece realmente difícil que o Judiciário viesse a acolher qualquer reclamo. Sob a ótica do processo, ele não apenas foi conduzido pelo Presidente do próprio Supremo, mas foi precedido de julgamento pelo Plenário daquela Corte, que se não foi exaustivo quanto ao que poderia acontecer, foi minudente quanto ao item a ser observado. Não consta ter havido cerceamento ao contraditório e, ao final, o resultado do julgamento escapa ao controle do Judiciário, por se tratar de desfecho essencialmente político. Aliás, quanto tempo e energia foram desperdiçados por quem insistiu – por teimosia ou ingenuidade – em desconsiderar tal circunstância.
Tomando-se ambos capítulos (o que impôs a perda do cargo e o que recusou a inabilitação para o exercício de função pública), em tese seria possível algum tipo de contaminação ao ensejo do julgamento de cada qual. Assim poderia ocorrer se o STF entendesse que o fracionamento configuraria um erro processual e, mais do que isso, que esse tipo de equívoco deveria invalidar todo o julgamento, tido então como um ato monolítico. Isso significaria a volta, conquanto provisória, à situação de interinidade da presidência, até que novo julgamento pelo Senado viesse a se consumar, agora sem a decomposição de capítulos.
Mas, isso parece ser improvável e, sob a ótica da técnica processual, poderia ser tido como um equívoco. Ainda que exista relação de causalidade entre os capítulos, ela se opera logicamente do primeiro para o segundo; e não vice-versa. Se a destituição fosse afastada pelo STF, certamente não haveria que se falar em inabilitação; mas, processualmente falando, o inverso seria possível, tanto que é o que está vigorando. Saber se a inabilitação poderia ser afastada é justamente o mérito da questão e não um fator de invalidação de todo julgamento.
Por outras palavras, se o STF – na premissa de ser mantida a perda do cargo – viesse a entender que a cisão do julgamento fora incorreta, não seria caso de invalidação, mas de simples correção do que já fora julgado, reconhecendo-se ali mesmo a inabilitação para função pública.
Isso porque se a primeira sanção, para argumentar, seria determinante da outra, então não haveria o que o Senado reapreciar: como a maioria qualificada já impusera a perda do cargo, bastaria aplicar a Constituição e corrigir o julgamento daquela Casa; a menos que se pudesse argumentar que alguns dos que votaram pela destituição só o teriam feito na premissa de que, depois, deixariam de impor a inabilitação. Isso, diante de um novo julgamento conjunto, poderia levá-los a conclusão diversa quanto ao primeiro capítulo.
Mas, construção dessa natureza soa artificial: o juízo sobre a perda do cargo, conquanto envolta em aspectos jurídicos, é julgamento essencialmente político; já o juízo sobre a inabilitação surge como consequência jurídica daquela primeira sanção. Independentemente disso, se o STF dissesse que teria havido erro no fatiamento, a solução seria apenas a de expurgar do resultado a parte viciada. E, afastada que fosse a cisão, bastaria considerar a parte útil do julgamento, mantendo-se intacta a perda do cargo, com o acréscimo da inabilitação.
Até aqui, o que pode acontecer. Mas, arrisca-se dizer o que talvez fosse mais adequado que acontecesse.
Na premissa de que o STF também deve buscar, conquanto mediante a intransigente observância da Constituição, a superação dos conflitos e a consequente pacificação social, melhor seria que aquela Corte deixasse, ao menos por ora, intacto o julgamento proferido pelo Senado, fiel ao postulado de que não lhe cabe censurar o mérito daquele julgamento – seja ou não fracionável em capítulos.
Isso não quer dizer que a questão estaria para sempre sepultada: se e quando a destituída viesse a almejar cargos públicos, aí incluídos os eletivos, caberia ao Judiciário – não necessariamente ao STF em competência originária – dizer se a pretendente estaria, ou não, habilitada; caso em que, de fato, a incidência de possível inelegibilidade com base na Lei Complementar 135/10 (Ficha Limpa) seria apreciada pelo juiz natural, mediante a observância do devido processo legal.
Dessa forma, a controvérsia corretamente deixaria de ter a dimensão institucional que a caracterizou e passaria a dizer respeito a uma determinada cidadã, cuja esfera jurídica poderia ser tutelada em tempo e modo adequados.
Talvez assim, ao menos por ora, o STF pudesse assegurar se não um repouso eterno, ao menos alguma forma descanso à sociedade, relativamente à questão do impeachment.

candle-1521246_1280

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

O que se pode esperar do Supremo neste momento

Impeachment: réquiem no STF?

O que se pode esperar do Supremo neste momento