Fábio Medina Osório
Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Complutense de Madrid. Mestre em Direito Público pela UFRGS. Ex-ministro-chefe da AGU (governo Temer). Presidente do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado

Improbidade é um conceito que traduz uma espécie de crime de responsabilidade. Não se confunde, no entanto, com corrupção ou com desonestidade. Vai muito além: abarca condutas culposas, ineficientes, imprudentes ou negligentes no trato da coisa pública. [1].
As Constituições brasileiras (1891, art.54, 6; 1934, art.57, f; 1937, art.85, d; 1946, art.89, V; 1967, art.84, V; EC1/69, art.82, V,; 1988, art.85, V) contemplaram a improbidade como crime de responsabilidade do presidente da república.
Apenas na Constituição de 1988 a improbidade aparece como uma figura que, além de crime de responsabilidade (art.85, V), ostenta feição autônoma objeto do Direito Administrativo Sancionador (art.37, parágrafo 4, CF, e Lei 8.429/92)[2].
O STF ainda não se pronunciou definitivamente sobre se a Lei dos Crimes de Responsabilidade absorve ou não a Lei de Improbidade Administrativa relativamente aos agentes políticos, mas tem dado sinais claros no sentido de que deverá acolher a tese da independência dessas esferas[3].
O objeto destas reflexões é exclusivamente o conteúdo da improbidade definida na Lei dos Crimes de Responsabilidade, partindo da premissa de que a Lei de Improbidade e a Lei dos Crimes de Responsabilidade não se confundem.
O que pretendo discutir é a figura da improbidade culposa, tal como desenhada originariamente na Lei dos Crimes de Responsabilidade (Lei 1079/50), a qual estatuiu que são crimes de responsabilidade do presidente da república aqueles praticados contra a probidade na Administração, detalhando o seguinte rol no art. 9º:
1 - omitir ou retardar dolosamente a publicação das leis e resoluções do Poder Legislativo ou dos atos do Poder Executivo;
2 - não prestar ao Congresso Nacional dentro de sessenta dias após a abertura da sessão legislativa, as contas relativas ao exercício anterior;
3 - não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição;
4 - expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição;
5 - infringir no provimento dos cargos públicos, as normas legais;
6 - Usar de violência ou ameaça contra funcionário público para coagí-lo a proceder ilegalmente, bem como utilizar-se de suborno ou de qualquer outra forma de corrupção para o mesmo fim;
7 - proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.
É certo que “inaptidão notória” e outros ilícitos culposos, abusos e omissões, já eram proibidos na Constituição de 1824, sendo que o próprio Decreto 30, de 1892, apontava um rol de condutas ímprobas, inclusive a “desídia habitual no exercício das funções” como um ilícito de responsabilidade. A improbidade sempre ostentou abertura para alcançar ilícitos dolosos e culposos.
Os crimes de responsabilidade são tratados pelo Direito Penal. Todavia, do que se trata, aqui, não é de um Direito Penal tradicional, mas de um Direito Penal aplicado por autoridades políticas, à luz de critérios e balizadores tipicamente políticos. Por isso mesmo, o processo de "impeachment" é uma modalidade de responsabilidade política e não de responsabilidade criminal clássica. Os tipos penais são abertos e o jogo no Congresso Nacional é político. Um Presidente da República, para evitar essa espécie de processo, antes de tudo, precisa de sustentação política.
A Lei dos Crimes de Responsabilidade, de 1950, em vigor, prevê ações genéricas como objeto de tipificação, pois se insere na modalidade política de responsabilização de agentes públicos. Fosse outra espécie de responsabilidade, muitos dos tipos sancionadores não seriam tolerados, por excesso de vagueza semântica.
O legislador, quando quis referir a necessidade de ações dolosas, o fez expressamente (art.9, inciso I). Ao silenciar, permitiu amplo espaço cognitivo e de interpretação de juízo político ao órgão soberano. O Judiciário não pode, por seu turno, interpretar restritivamente o tipo penal de um crime de responsabilidade, acaso chamado a exercer controle a posteriori, pois engessaria a vontade política do Parlamento, que é independente e protegido pela separação de poderes. Nesse sentido, se a Lei fala expressamente na exigência específica de dolo para determinadas ações, e não o faz para outras, presume-se que, quando houver compatibilidade, é admissível o comportamento culposo, desde que configurada a gravidade da conduta. Não se aplica aqui o raciocínio do Código Penal, em que vigora a excepcionalidade do ilícito culposo.
Compete ao Legislativo verificar a plausibilidade da acusação e sua razoável procedência, nos crimes de responsabilidade, sendo vedado ao Judiciário imiscuir-se nesse mérito do juízo político. O espaço de atuação do Judiciário, no controle de um processo de impeachment, há de ser realmente muito estreito[4].
A improbidade é, no cenário dos crimes de responsabilidade, uma espécie de má gestão pública e, nesse contexto,o tipo sancionador referente à proteção da dignidade, honra e decoro do cargo não deve referir-se à vida privada do agente político, mas sim a preceitos de ética pública e mais concretamente de ética profissional, mantendo proporcionalidade relativamente à magnitude da resposta estatal que se pretende ofertar. Se o bem jurídico protegido é a probidade na Administração, não se pode pretender tutelar a privacidade ou a vida íntima do agente político como forma oblíqua de salvaguardar moralidade pública ou decoro do cargo[5].
Seria absurdo que um presidente sofresse processo de impeachment porque pilotou sua bicicleta fora dos limites permitidos em via pública, ou porque conduziu sua motocicleta sem capacete, ou ainda por embriaguez em local público. A vida privada de um agente político deve ficar imune a controles arbitrários. O campo propício aos controles é o da Ética Pública. A pessoa pública deve ser honesta e competente no que faz.
E, por certo, em casos extremos de abuso de poder ou desvio de finalidade, o STF poderia exercer um controle sobre atos do Congresso Nacional, até mesmo em matéria de impeachment. A propósito confira-se orientação do Supremo Tribunal Federal:[6]
O procedimento incompatível com regras de decoro, dignidade e da honra inerentes ao cargo de presidente da república guarda conexão com o princípio da moralidade administrativa e este com regras da Ética Pública. Exige-se do alto mandatário da Nação obediência a deveres básicos de lealdade institucional, eficiência, boa fé objetiva, impessoalidade, transparência e correção no agir. Honestidade e competência técnica são requisitos elementares para o desempenho das funções mais importantes do país.
O espectro das condutas culposas pode ser extremamente perverso. Basta imaginar os efeitos deletérios de um administrador pródigo ou incapaz no comando do país. Alguém admitiria um presidente da república dilapidando o patrimônio dos brasileiros, ainda que dotado das melhores intenções, sem qualquer freio inibitório à disposição da sociedade para conter as aventuras do gestor, desprovido de apoio popular e político?
Não há dúvidas de que pode ser legítimo indagar, em processo de impeachment, se um Presidente da República, no exercício de seu mandato, atuou de modo eficiente, para evitar danos ao erário, na órbita dos bilhões ou milhões de reais. E certamente é legítimo, se houver espaço político, questionar a probidade de um presidente por omissões ou ações que porventura tenham se inserido na relação causal de prejuízos bilionários ou milionários aos cofres públicos, analisando deveres públicos e seu atendimento pelo chefe do Poder Executivo Federal. Nessa linha de raciocínio, a honra, o decoro e a dignidade do cargo impõem deveres muito amplos ao presidente da república.
Característica central dos regimes republicanos é o princípio da responsabilidade dos Governantes, daí a importância de se fortalecer uma hermenêutica em torno ao dever de probidade administrativa previsto na Lei 1079/1950, em sintonia com o art. 85, V, da Constituição de 1988, preservando-se a interdição à arbitrariedade dos Poderes Públicos e os valores inerentes à Ética Pública.
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[1]MEDINA OSÓRIO, Fábio. Corrupción y mala gestión de la res publica: el problema de la improbidad administrativa y sutratamiento em el derecho administrativo sancionador brasileño. Revista de Administración Pública, n. 149, p. 487-522, Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, maio-ago. 1999.
[2] No sentido de sufragar o entendimento de que a Lei de Improbidade está submetida ao regime do Direito Administrativo Sancionador, veja-se voto do Ministro Teori Zavaski na Petição 3.240/DF, exarado em novembro de 2014: “É justamente essa identidade substancial das penas que dá suporte à doutrina da unidade da pretensão punitiva (ius puniendi) do Estado, cuja principal consequência “é a aplicação de princípios comuns ao direito penal e ao direito administrativo sancionador, reforçando-se, nesse passo, as garantias individuais” (OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador, SP:RT, 2000, p. 102; ENTERRIA, Eduardo García de; FERNANDEZ, Tomás- Ramon. Curso de direito administrativo, trad. Arnaldo Setti, SP:RT, 1991,p. 890). Realmente, não parece lógico, do ponto de vista dos direitos fundamentais e dos postulados da dignidade da pessoa humana, que se invista o acusado das mais amplas garantias até mesmo quando deva responder por infração penal que produz simples pena de multa pecuniária e se lhe neguem garantias semelhantes quando a infração, conquanto administrativa, pode resultar em pena muito mais severa, como a perda de função pública ou a suspensão de direitos políticos. Por isso, embora não se possa traçar uma absoluta unidade de regime jurídico, não há dúvida que alguns princípios são comuns a qualquer sistema sancionatório, seja nos ilícitos penais, seja nos administrativos, entre eles o da legalidade, o da tipicidade, o da responsabilidade subjetiva, o do non bis in idem, o da presunção de inocência e o da individualização da pena, aqui enfatizados pela importância que têm para a adequada compreensão da Lei de Improbidade Administrativa.Essa compreensão se deve adotar, segundo penso, em relação ao foro por prerrogativa de função. Se a Constituição tem por importante essa prerrogativa, qualquer que seja a gravidade da infração ou a natureza da pena aplicável em caso de condenação penal, não há como deixar de considerá-la ínsita ao sistema punitivo da ação de improbidade, cujas consequências, relativamente ao acusado e ao cargo, são ontologicamente semelhantes e eventualmente até mais gravosas. Ubieademratio, ibieadem legis dispositio. Se há, por vontade expressa do Constituinte, prerrogativa de foro para infrações penais que acarretam simples pena de multa pecuniária, não teria sentido negar tal garantia em relação às ações de improbidade, que importam, além da multa pecuniária, também a perda da própria função pública e a suspensão dos direitos políticos”.
[3] O Supremo Tribunal Federal,em 13.06.2007,ao julgar a Reclamação 2138, entendeu que os agentes políticos não se submeteriam ao duplo regime sancionatório pautado pela Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade) e pela Lei 1.079/50, que dispõe sobre os crimes de responsabilidade, entendendo, por conseguinte, que a primeira lei fora absorvida pela segunda. “Os Ministros de Estado, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade (CF, art. 102, I, "c"; Lei n° 1.079/1950), não se submetem ao modelo de competência previsto no regime comum da Lei de Improbidade Administrativa” (Rcl 2138/DF, Pleno, Rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 13/06/2007, DJe de 18/04/2008).Frisa-se que o julgado foi extremamente polêmico, sendo o resultado conquistado por uma apertada maioria de votos (6x5).Nesse contexto, a partir de 2008 a Suprema Corte começa a entender que mostra-se irrelevante para a aplicação da Lei de Improbidade o fato do agente ser ocupante de cargo público ou de mandato eletivo. Nesse sentido: AI 653882 AgR, Relator: Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 03/06/2008, DJe-152 DIVULG 14-08-2008 publicado em 15-08-2008 ; ARE 826762 AgR, Relator: Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 30/09/2014, divulgado em 16-10-2014, publicado em 17-10-2014. Por outro lado, a Corte Especial do STJ em 2009, no julgamento da Reclamação 2.790 entendeu que os agentes políticos se submetem à Lei de Improbidade Administrativa, com exceção do Presidente da República (Rcl 2790/SC, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Corte Especial, julgado em 02/12/2009). Recentemente, o Ministro TeoriZavaski se pronunciou, no julgamento ainda em andamento da Petição 3.240/DF, no sentido de que “excetuada a hipótese de atos de improbidade praticados pelo Presidente da República, submetidos a regime especial, não haveria norma constitucional que imunizasse os agentes políticos, sujeitos a crime de responsabilidade, de qualquer das sanções por ato de improbidade previstas no art. 37, § 4º, da CF”.
[4]Veja-se o MS 21.564, Rel.p/ ac.Min. Carlos Velloso, julgamento em 23.9.1992, Plenário.
[5] MEDINA OSÓRIO, Fábio. Teoria da Improbidade Administrativa, Editora Revista dos Tribunais, 3ª edição, 2011.
[6] MS 21689, Relator: Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, julgado em 16/12/1993, dj 07-04-1995 pp-08871 Ementa VOL-01782-02 PP-00193 RTJ VOL-00167-03 PP-00792. O mesmo acórdão, no entanto, sustenta que a valoração dos fatos, em linha de princípio, cabe ao Senado, e neste ponto o ato escapa ao controle jurisdicional (p.54 do acórdão).