Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">“A primeira panaceia para uma nação mal administrada é a inflação da moeda; a segunda é a guerra. Ambos trazem uma prosperidade temporária; ambos trazem uma ruína permanente. Mas ambos são o refúgio de oportunistas políticos e econômicos.”
<footer class="jota-article__quote-cite">Ernest Hemingway</footer>
</blockquote>
A leitora atenta destas mal-traçadas sabe que, há mais de dois anos, viemos apresentando uma visão sobre o atual processo inflacionário global bem menos otimista do que as análises oficiais do mainstream econômico<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Em agosto de 2021, aqui neste espaço, já havíamos afirmado que o <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-wallet-do-dragao-e-a-inflacao-13082021">processo inflacionário</a> atual se trata, essencialmente, “de uma dinâmica internacional, monetária e de oferta [materializada em] um processo disjuntivo estrutural do sistema financeiro internacional”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Ou seja, havia uma situação já consolidada de desestruturação da economia internacional, em um cenário que somente poderia ser pior se eclodisse um conflito de grandes proporções. E foi exatamente o que aconteceu.
Já no início de 2021, vínhamos alertando para o fato de que estava se formando um verdadeiro tsunami inflacionário global, causado por dois elementos que, tomados em conjunto, prenunciavam um 2022 muito complicado: as políticas expansionistas adotadas para enfrentar os efeitos da pandemia da Covid-19 e a desestruturação das cadeias de oferta causadas pelos lockdowns ao redor do globo.
Vaticinamos aqui neste espaço, em janeiro, que o ano começava em um <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/estagflacao-omicron-e-o-fim-da-globalizacao-10122021">cenário global estruturalmente marcado pela estagflação</a>, cujas saídas estariam bloqueadas pelo fenômeno do “paradoxo da parcimônia”, isto é, aquela situação em que o estímulo monetário ou fiscal possível de ser adotado pelos governos não seria alto o suficiente para gerar um crescimento econômico sustentável nem baixo o bastante para não gerar uma espiral inflacionária<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Estamos, em suma, no fim de um ciclo, o fim da era da globalização<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Ao contrário do mundo, como profetizou T. S. Eliot, a era da globalização termina não com um suspiro, mas com um estouro. A eclosão da Guerra da Ucrânia, em fevereiro, o maior conflito internacional desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), é um elemento potencializador da desestruturação das cadeias produtivas globais, de tamanhas proporções que remendo algum será possível. Será mesmo necessária a estruturação de uma nova ordem econômica global para a nova era, ainda indefinida, pela qual adentra a humanidade.
Os impactos da guerra na Ucrânia na já combalida economia mundial surtirão efeitos mais plenos somente a partir do final deste ano. Duas áreas estratégicas, contudo, já estão vendo suas cadeias globais de suprimento serem totalmente desconstituídas: energia e alimentos. O próprio Financial Times vaticinou recentemente que o conflito na Ucrânia “está impondo um severo choque estagflacionário, causando um aumento dos preços à medida que o fornecimento de energia é ameaçado e espremendo a renda das famílias e das empresas à medida que as commodities essenciais se tornam mais caras”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
As expectativas dos mercados globais já antecipam um aperto histórico dos cintos neste ano e em 2023. A agência de classificação de risco Fitch, por exemplo, cortou recentemente 0,7% da sua estimativa para a economia global neste ano, prevendo um crescimento nominal de 3,5% em 2022 e de 2,8% em 2023.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> Note, cara leitora, que a Fitch estima que a taxa de inflação neste ano fique em torno de 7% nos EUA e de 5% na zona do euro, fazendo com o desempenho real da economia global em 2022 seja negativo. E estamos apenas nos idos de março.
O rompimento das cadeias globais de fornecimento de matérias-primas estratégicas pode se provar bem mais danoso do que as atuais estimativas do mercado calculam. Rússia e Ucrânia dominam setores-chave da economia global. Com bem lembra o Financial Times, “a Ucrânia fornece 70% do gás neon, necessário para o processo de litografia a laser usado para fabricar semicondutores, enquanto a Rússia é o principal exportador de paládio, necessário para fazer conversores catalíticos.”<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> E não é só isso, como bem lembra o último relatório da Fitch:
<blockquote class="jota-article__citation">“A Rússia fornece cerca de 10% da energia mundial, incluindo 17% de seu gás natural e 12% de seu petróleo. O salto nos preços do petróleo e do gás aumentará os custos da indústria e reduzirá a renda real do consumidor. A escassez total e o racionamento de energia são possíveis na Europa se houver uma interrupção abrupta no fornecimento russo. Preços de energia mais altos são um dado assumido”<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.</blockquote>
Como se tratam de matérias-primas essenciais, energia e alimentos, a disrupção no seu fornecimento global terá um efeito multiplicador por toda a economia mundial. Isso porque um choque inflacionário em produtos de base tem um efeito em cascata não linear, isto é, de proporções variáveis, tanto verticalmente — através de toda a cadeia produtiva — quanto horizontalmente — espalhando-se por toda a economia. Note, cara leitora, que na ponta do consumo, na sua fatura mensal, o impacto inflacionário será muito maior do que o empurrão inicial sentido na base da produção.
Um outro componente fundamental para se avaliar o cenário econômico global para o resto do ano e também para 2023 é a mudança de orientação da política monetária norte-americana. Desde a crise financeira de 2008, o Federal Reserve (Fed) vinha seguindo uma política expansiva, com juros reais negativos, para estimular o crescimento econômico. Como a economia norte-americana está agora dando sinais de sobreaquecimento — apresentando uma taxa de desemprego de 3,8% em fevereiro e uma inflação de 7,9% no comparativo anual —, o Fed resolvera dar um giro na sua política monetária, tornando-a restritiva, com a primeira elevação dos juros em 0,25%. O Fed já anunciou que pretende repetir a dose mais seis vezes neste ano e mais três vezes em 2023<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>.
Isso traz um enorme impacto para o cotidiano das pessoas. Com essa mudança de ciclo, o crédito e o consumo ficarão mais caros, restringindo ainda mais o poder de compra das pessoas, que já vem sendo corroído pela inflação. Do lado dos governos, um ciclo de aperto monetário diminui a capacidade de gestão da política monetária, sobrando apenas o instrumento da política fiscal para se enfrentar a crise de estagflação. Conforme antecipamos em dezembro passado aqui neste espaço<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, a chave para se enfrentar essa situação está quase que inteiramente na <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/estagflacao-omicron-e-o-fim-da-globalizacao-10122021">política fiscal</a>, que precisa ser reformulada para se compatibilizar com uma nova era.
Niall Ferguson recentemente batizou a atual situação da economia global de “1973 lite”. Segundo o historiador britânico:
<blockquote class="jota-article__citation">“Estamos sofrendo uma crise muito similar àquela do início dos anos 1970, mas está acontecendo de uma maneira muito mais rápida. Felizmente a importância do petróleo em particular é menor do que costumava ser o caso. Mas nós temos um problema inflacionário que se originou nas excessivas medidas fiscais e monetárias que foram adotadas para enfrentar os impactos da pandemia e dos lockdowns. Esse problema já estava claro no início do ano passado e ficou muito evidente ao longo de 2021 e nós estamos vendo as mais altas taxas de inflação desde 1982 nos EUA. A guerra piora esse cenário da mesma maneira que a Guerra do Yom Kippur de 1973, quando os Estados árabes atacaram Israel, piorando o problema da inflação nos anos 1970. Acredito que estamos entrando em um período muito difícil. Não somente coisas como as sanções econômicas têm muitas consequências imprevisíveis, mas a disrupção fundamental dos mercados de energia, causado pela exclusão de facto do petróleo russo dos mercados mundiais traz toda a sorte de efeitos em cadeia, como o também traz a disrupção da agricultura russa e ucraniana”<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.</blockquote>
Ferguson vaticina que “uma guerra é o fenômeno que mais afeta as expectativas de inflação”, ou seja, reforçando as previsões do último relatório da Fitch, pode-se concluir que há um consenso de que estamos entrando em um novo e muito complicado ciclo de contração econômica e, possivelmente, de hiperinflação global. A pergunta que fica, cara leitora, é a de quais serão os impactos que essa nova era de estagflação terá para as relações humanas, em um ambiente político já altamente polarizado. Como se sabe, a inflação possui um efeito corrosivo do tecido social, por premiar a desonestidade. Mas isso é assunto para uma outra coluna. Cor ad cor loquitur.
*
Já está disponível <a href="https://www.amazon.com.br/gp/product/B09W42TTL4/ref=dbs_a_def_rwt_bibl_vppi_i1">na Amazon</a><a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a> o nosso terceiro livro, “Centelhas de Tempestade: a diplomacia em um mundo em transformação” (Saraiva Expressa). Trata-se de um breve ensaio em que procuramos apresentar, de maneira rápida e clara, uma reflexão prática acerca do atual sistema internacional em crise e do papel do Brasil nele. Esperamos que seja útil para a leitora que está buscando sentido em meio à enorme confusão global pela qual a humanidade está passando.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/estagflacao-omicron-e-o-fim-da-globalizacao-10122021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/estagflacao-omicron-e-o-fim-da-globalizacao-10122021</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-wallet-do-dragao-e-a-inflacao-13082021
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/estagflacao-omicron-e-o-fim-da-globalizacao-10122021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/estagflacao-omicron-e-o-fim-da-globalizacao-10122021</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Ibid.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> <a href="https://www.ft.com/content/0f7945f5-b269-4d13-9151-c1ac9ec6fddc">https://www.ft.com/content/0f7945f5-b269-4d13-9151-c1ac9ec6fddc</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> <a href="https://www.fitchratings.com/research/sovereigns/world-growth-forecasts-cut-as-inflation-intensifies-due-to-war-21-03-2022">https://www.fitchratings.com/research/sovereigns/world-growth-forecasts-cut-as-inflation-intensifies-due-to-war-21-03-2022</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> <a href="https://www.ft.com/content/0f7945f5-b269-4d13-9151-c1ac9ec6fddc">https://www.ft.com/content/0f7945f5-b269-4d13-9151-c1ac9ec6fddc</a>
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> <a href="https://www.fitchratings.com/research/sovereigns/world-growth-forecasts-cut-as-inflation-intensifies-due-to-war-21-03-2022">https://www.fitchratings.com/research/sovereigns/world-growth-forecasts-cut-as-inflation-intensifies-due-to-war-21-03-2022</a>
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Ibid.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/estagflacao-omicron-e-o-fim-da-globalizacao-10122021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/estagflacao-omicron-e-o-fim-da-globalizacao-10122021</a>
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> <a href="https://www.youtube.com/watch?v=8RfUA7sDd8w">https://www.youtube.com/watch?v=8RfUA7sDd8w</a>
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> <a href="https://www.amazon.com.br/gp/product/B09W42TTL4/ref=dbs_a_def_rwt_bibl_vppi_i1">https://www.amazon.com.br/gp/product/B09W42TTL4/ref=dbs_a_def_rwt_bibl_vppi_i1</a>

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