Carolina Rodrigues Archanjo

Christiane Alves Alvarenga

Daniel de Paiva Gomes

Daniela Silveira Lara

Luiz Guilherme de Medeiros Ferreira

Tathiane Piscitelli

A temática atinente ao conflito entre ICMS e ISS na tributação do software não é nova no Brasil. Entretanto, apesar de a discussão fiscal sob comento ter suas origens na famigerada distinção “software de prateleira” (standard) e “software por encomenda”, fato é que, hoje, a grande preocupação dos contribuintes é a preservação da segurança jurídica. Tal somente será alcançado, porém, se os precedentes jurisprudenciais aplicáveis forem coerentes entre si, razão pela qual se faz imperioso refletir sobre o desenrolar do julgamento isolado da ADI nº 1.945 e seus consequentes desdobramentos.
Como é cediço, a origem do conflito de competência entre ICMS e ISS remonta o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 176.626, pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF). Trata-se, pois, de recurso que não foi apreciado pelo Plenário, nem foi julgado sob a sistemática da repercussão geral, mormente pelo fato de que tal método de julgamento não existia à época. Apesar disso, estados, munícipios e União Federal adotam usualmente o racional firmado neste precedente para resolver questões atinentes à tributação do software.
Em resumo, do julgamento do RE nº 176.626 extraem-se as seguintes conclusões: (i) o conceito de mercadoria não incluiria bens incorpóreos, como os direitos em geral;  mercadoria seria um conceito restrito aos bens corpóreos objeto de atos de comércio ou destinados a sê-los; (ii) bem que é passível de licenciamento não pode ser objeto de contrato de compra e venda.
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A tributação do software foi novamente submetida à apreciação da Suprema Corte quando do ajuizamento da ADI nº 1.945, oportunidade em que o STF foi provocado a se manifestar acerca da constitucionalidade de lei mato-grossense (Lei nº 7.098/98) que determinava a incidência do ICMS sobre a transferência de software padronizado via download.
Em sede de liminar apreciada em 2010, o STF entendeu, por 6 votos a 4, que o conceito de mercadoria abrangeria também os bens incorpóreos, razão pela qual seria legítima a incidência do ICMS sobre o software disponibilizado ao usuário por meio de download. À época, o STF não se manifestou sobre o fato de que o licenciamento de software não comporta transferência de propriedade.
Vale ressaltar que, dos ministros da Suprema Corte que votaram no julgamento desta liminar e ainda compõe o STF, três deles (ministros Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello) votaram contra a incidência do ICMS sobre o software; ao passo em que dois votaram pela rejeição da liminar por ausência de periculum in mora (ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli).
https://youtu.be/CNVCuoHarno
Depois de anos sem novidades jurisprudenciais relevantes especificamente relacionadas à tributação do software, a ADI nº 1.945 teve seu julgamento de mérito iniciado, por meio da sistemática de julgamento virtual, em 17 de abril de 2020.
A Relatora do precedente sob comento, ministra Carmen Lúcia, votou por reconhecer a constitucionalidade da legislação mato-grossense que viabiliza a incidência de ICMS sobre o download de software, no que foi acompanhada pelo ministro Edson Fachin. O julgamento foi interrompido na sequência, por pedido de vista formulado pelo ministro Dias Toffoli.
No último dia 14 de maio de 2020, a Subcomissão de Tributação da Economia Digital da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB/SP realizou o webinar “Impactos do julgamento da ADI nº 1.945 na tributação do software”, oportunidade em que foram debatidos, não a antiga temática dos argumentos jurídicos que justificam a incidência de ICMS ou ISS sobre operações com software, mas sim temas relacionados às consequências práticas advindas do equivocado julgamento isolado de tal ADI, descolado de todos os demais precedentes que deveriam dialogar entre si para se chegar a uma decisão coerente sob a ótica sistêmica.
O presente texto é fruto dos debates e ideias que foram apresentados no referido evento pelos autores deste texto. O objetivo central é sensibilizar os atores relevantes envolvidos na discussão da tributação do software acerca da importância de que o julgamento da ADI nº 1.945 não seja realizado de forma isolada de outras decisões já proferidas pelo Supremo, que tangenciam pontos prejudiciais à discussão.
Dentre os diversos motivos que justificam a paralisação do julgamento isolado da ADI nº 1.945 o mais importante deles refere-se à necessidade de julgamento conjunto desta ADI com as demais ações que se encontram pendentes de julgamento perante outros relatores e que tratam dos seguintes temas: (i) conceito de mercadoria; (ii) conceito de serviço; e (iii) tributação do software.
Há diversos outros casos que resultarão em precedentes persuasivos pendentes de julgamento que poderiam, se julgados separadamente, contradizer ou impactar a ADI nº 1.945.
Em primeiro lugar, temos a ADI 5.659, de relatoria do ministro Dias Toffoli, cujo objeto é a análise da (in)constitucionalidade da legislação do estado de Minas Gerais que prevê a incidência do ICMS sobre operações com software. Com a mesma temática, há ainda a pendência de julgamento da ADI nº 5.576, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, que analisa a (in)constitucionalidade da incidência de ICMS sobre operações com software à luz da Legislação do estado de São Paulo.
A ADI nº 5.958, ajuizada pela Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (BRASSCOM), também aborda a tributação do software, questionando o Convênio CONFAZ nº 106/2017, que autorizou a cobrança de ICMS pelos estados sobre operações com bens e mercadorias digitais, que são comercializadas por transferência eletrônica.
A despeito das ADIs pendentes de julgamento mencionadas acima, não se pode olvidar do fato de que já existem precedentes persuasivos julgados sob sistemática da repercussão geral que analisaram a questão relativa ao conceito de serviços, para fins de ISS. Trata-se, aqui, do RE 651.706, que concluiu pela constitucionalidade do ISS sobre os serviços dos planos de saúde sob o fundamento, ainda que discutível e não unânime, de que o conceito de serviço enquanto obrigação de fazer teria sido superado, de modo que seria enquadrado como serviço, para fins de ISS, qualquer utilidade destinada ao consumidor final prevista em algum dos itens da Lista Anexa da Lei Complementar nº 116/2003.
<blockquote class="jota-article__eye">Também se encontra pendente de julgamento o RE nº 688.223, cujo objeto é a análise da legitimidade da incidência de ISS sobre o licenciamento de software por encomenda, oportunidade em que o STF reanalisará a questão atinente ao conceito de serviço, para fins de identificação dos limites semânticos do fato gerador da referida exação municipal.</blockquote>
Por fim, outro tema que impacta essa discussão posta na ADI nº 1945 foi apreciado pelo Supremo Tribunal Federal recentemente, quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 603.136, que firmou entendimento no sentido da legitimidade da incidência de ISS sobre contratos de franquia. Nesse caso, decidiu-se que o ISS pode incidir sobre obrigações mistas, que contenham um “dar” e um “fazer”, como ocorre no contrato de franquia, reconhecendo-se a constitucionalidade dos itens 10.04 e 17.08 da lista de serviços prevista no anexo da Lei Complementar 116/2003.
Como fica claro, os RE nº 651.706 e nº 603.136, por tratarem do conceito de serviço para fins de ISS, bem como o RE nº 688.223, que trata especificamente da incidência de ISS sobre o licenciamento de software, certamente versam sobre temas que tangenciam ou afetam a matéria discutida na ADI nº 1.945, daí porque não podem ser desconsiderados.
O arrolamento de todos estes casos, julgados ou pendentes de julgamento, evidencia a primeira grande consequência negativa do julgamento isolado da ADI nº 1.945: a possibilidade de a matéria ser apreciada novamente pelo STF em outras ocasiões, fragilizando a coerência que deve nortear a jurisprudência dos nossos tribunais e violando, por conseguinte, o quanto previsto nos artigos 926 e 927 do CPC/2015. Tais dispositivos, como se sabe, privilegiam a criação da jurisprudência pátria de forma íntegra e coerente, seguida da necessária observância (vinculação) dos tribunais aos precedentes persuasivos dos tribunais superiores. Dessa feita, é imperioso que o julgamento da ADI 1.945 não deixe de considerar esses elementos.
Não bastasse isso, deve-se ter em mente ainda que a ADI nº 1.945 possui um escopo de cognição reduzido e que acabou ficando estagnado no tempo, na medida em que analisa apenas a dúvida relativa à incidência de ICMS e ISS sobre software disponibilizado ao usuário final por meio de download.
Atualmente, existem outros modos de disponibilização das utilidades do software aos usuários finais; como exemplo, cite-se o Software as a Service (SaaS) e outras camadas de serviços ofertadas em nuvem (cloud computing). Pelo escopo da ADI nº 1.945, não é possível precisar como ficará a competência tributária para onerar a computação em nuvem (ICMS ou ISS?), devendo ser rechaçada, de plano e desde logo, a mera replicação do raciocínio outorgado ao software obtido por meio de download.
Ainda sobre o escopo reduzido da ADI nº 1.945, vale lembrar que a referida discussão foi iniciada em um cenário legislativo em que inexistia a LC nº 116/2003. A nosso ver, seria catastrófico discutir a incidência de ICMS sobre o software, nos autos da ADI nº 1.945, sem levar em consideração os itens da lista anexa da referida Lei Complementar que tratam da tributação do software pelo ISS, ainda mais após a edição da LC nº 157/2016, que inseriu os itens 1.03, 1.04 e 1.09. Tal fato aumentaria o contencioso em torno do tema, na medida em que tanto estados, embasados eventualmente na ADI nº 1.945, quanto municípios, pautados na literalidade da LC nº 116/2003, continuarão se considerando, ambos, legítimos possuidores de competência para tributar operações com software.
De todo modo, até o presente momento<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, tudo leva a crer que o conceito de mercadoria analisado pela ADI nº 1.945, tal qual delineado no voto da ministra Carmen Lúcia, parece discutir a questão apenas à luz da tangibilidade ou intangibilidade do bem. De outro lado, não há contornos definidos sobre a possibilidade de o julgado também abordar a questão da circulação jurídica da mercadoria, o que requer a efetiva transferência de propriedade do bem destinado ao comércio, atributo este que inexiste nas operações de licenciamento de software, mormente pelo fato de que inexiste transferência da propriedade do código fonte do software licenciado.
Nesse contexto, faz-se relevante questionar, caso se mantenha o posicionamento da ministra Carmen Lúcia e não seja tratada a temática da “circulação jurídica” como parte integrante do fato gerador do ICMS, em  que medida a transferência de propriedade seria indispensável à incidência do ICMS e, ainda, se no caso de software a licença perpétua faria as vezes de tal transferência. A pergunta logicamente subsequente a esses questionamentos seria então a seguinte: o conceito de mercadoria fixado nesta ADI viabilizaria a incidência de ICMS sobre a computação em nuvem? Ou, considerando que foram inseridos novos itens na lista anexa da LC nº 116/2003, os efeitos da ADI nº 1.945 seriam restritos aos casos de download?
<blockquote class="jota-article__eye">As indagações acima colacionadas evidenciam os perigos de se utilizar a ADI nº 1.945 como precedente caso ela seja julgada de forma isolada e sem o necessário diálogo com as demais ADIs e recursos extraordinários mencionados acima.</blockquote>
Importante ainda ressaltar a existência de diversas ações coletivas e individuais propostas por contribuintes e associações nos estados, que discutem a inconstitucionalidade da incidência do ICMS sobre operações com bens digitais na esteira da regulamentação do Convênio ICMS nº 106/17. Os processos mais avançados estão em curso no Tribunal de Justiça de São Paulo que, na maioria dos precedentes<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, tem entendido que o decreto paulista regulamentador do citado Convênio fere o princípio da legalidade ao definir a incidência do ICMS sobre materialidade reservada aos municípios que tributam essas atividades pelo ISS, com base nas disposições da LC nº 116/2003.
Vale recordar que tais decisões já analisaram os casos à luz das novas tecnologias, como streaming e cloud, sendo que, em alguns julgados, foi, inclusive, afastada a possível implicação do desfecho do julgamento da ADI 1945<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. No entanto, a depender de como será desenvolvido o raciocínio do acórdão da referida ADI, é possível que haja efeitos diretos nos processos em curso nos tribunais estaduais que discutem a matéria em relação à ilegalidade dos decretos estaduais. Mais um motivo para o julgamento urgente das demais ADI’s que estão em andamento no STF, em especial a ADI nº 5958 que discute a inconstitucionalidade do próprio Convênio ICMS nº 106/2017.
Inclusive, justamente por conta da complexidade dessa relação inter-precedentes e do conflito de normas no tempo (Convênio CONFAZ nº 106/2017 e LC nº116/2003) é que seria o caso de, concluindo-se pela legitimidade da incidência de ICMS sobre o download de software, ser implementada uma regra de modulação de efeitos. A ausência de tal providencia resultaria no risco de os contribuintes terem de pagar retroativamente e com multa<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> o ICMS incidente nas operações de download de software (sem possibilidade de repasse do “custo tributário” no preço nas operações passadas), além de terem de identificar medidas administrativas ou judiciais para se restituírem do ISS que teria sido pago indevidamente nos últimos cinco anos.
Paralelamente a isto, cumpre assinalar que eventual conclusão final, nos autos da ADI nº 1.945, pela possibilidade de incidência de ICMS sobre o download de software, ao qualificar tal materialidade como mercadoria, teria o condão de, potencialmente, impactar também a apuração de diversos tributos federais: (i) IRPJ e CSLL no lucro presumido; (ii) PIS/COFINS; (iii) CIDE-royalties; (iv) IR-fonte na remessa, dentre outros.
À luz de todos estes fatores e da pendência de julgamento de outros casos que deveriam dialogar com as conclusões eventualmente firmadas na ADI nº 1.945, não temos dúvidas de que a discussão travada na referida ADI não pode prosseguir de forma isolada e restrita apenas à análise dos critérios de tangibilidade ou intangibilidade enquanto informadores do conceito de mercadoria. É indispensável que o STF realize o julgamento desta ADI de forma conjunta com as demais ações e recursos mencionados acima, levando-se em consideração, ainda, a superveniência da LC nº 116/2003, os limites do conceito de serviço e os impactos na tributação federal da incidência de ICMS sobre o download de software.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> A ministra Carmen Lúcia ainda não disponibilizou o voto proferido nos autos da ADI nº 1.945.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Precedentes nesse sentido das 2ª, 3ª, 5ª, 10ª, 11ª, 12ª e 13ª Câmaras de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Vide, por exemplo, o julgamento da Apelação Cível nº 1027745-46.2018.8.26.0053, 10ª Câmara de Direito Público do TJSP, relator desembargador Marcelo Semer, j. 09.03.2020.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Os contribuintes que possuírem tutela jurisdicional suspensiva da exigibilidade do crédito tributário podem pleitear, desde que haja previsão nesse sentido na própria tutela, que o pagamento do ICMS seja feito sem o acréscimo de multa, caso o adimplemento do tributo seja realizado dentro de 30 dias contados da cassação da decisão anteriormente favorável.

computação quântica

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JOTA

Conceito de mercadoria fixado na ADI viabilizaria a incidência de ICMS sobre a computação em nuvem?