Guillermo Glassman

Benny Spiewak

<p>A aproximação da revogação da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm">Lei 8.666/1993</a>, prevista inicialmente para o último dia 1º de abril, deixou o mercado de vendas ao governo em verdadeira polvorosa. Os profissionais da área costumam ser extremamente cautelosos por um motivo: em compras públicas (<em>non-retail</em>) pequenos erros podem impedir grandes negócios. Mesmo que a MP 1167, de 31 de março de 2023, tenha dado sobrevida à legislação anterior, mais cedo do que tarde os <em>players </em>precisarão adaptar-se – ou perecer.</p>
<p>Essas precauções são ainda mais afloradas no mercado público de bens de saúde. Tratando de interesse tão valioso, os órgãos licitantes são especialmente rigorosos. Porém, como toda mudança, a nova Lei de Licitações apresenta excelentes oportunidades para avanços na cultura do setor e oportunidades para novos negócios.</p>
<p>Muito já se escreveu sobre a nova lei e seu contraste em face da legislação anterior. Entretanto, numa abordagem prática, há ainda muito a ser dito, especialmente para o mercado público de bens de saúde. Abaixo, destacamos os principais riscos e oportunidades para esse segmento.</p>
<h3><strong>Limites à atuação de distribuidores: Novas limitações para a participação de microempresas e empresas de pequeno porte em licitações</strong></h3>
<p>O art. 4 da nova Lei de Licitações cria critérios para restringir benefícios indiscriminados a microempresas (ME) e empresas de pequeno porte (EPP) nos processos de licitação (benefícios definidos pela LC 123/2006, arts. 42 a 49). A ideia é coibir a criação de ME e EPP "especificamente" para o acesso a preferências em licitações, afinal, essa nunca foi a intenção legislador. A mudança é importante para aqueles que atuam no mercado público por meio de distribuidores (por exemplo, para garantir capilaridade na esfera municipal), já que o volume de contratos com a administração e faturamento anual serão impeditivos para o acesso de ME e EPP à margem legal de preferência. Ainda, o art. 14, § 1º, da nova Lei de Licitações, veda expressamente a utilização de um distribuidor como <em>proxy</em> por empresa impedida de licitar.</p>
<h3><strong>Possibilidade de exigência de “carta de solidariedade” do fabricante</strong></h3>
<p>O art. 41, IV, permite exigência, em edital, de que o licitante apresente carta de solidariedade do fabricante, garantindo a disponibilidade do produto para entrega.  Os impactos sobre o mercado público de medicamentos e produtos de saúde é grande. Por exemplo, a exigência de solidariedade do fabricante permite uma separação interna mais clara, nas companhias, entre os canais de venda <em>retail</em> e <em>non-retail, </em>evitando a “canibalização”. Por outro lado, entretanto, essa solidariedade abre portas para sancionamento direto do fabricante nos casos de atraso de entrega, risco antes evitado justamente pela interposição do distribuidor na relação com o governo.</p>
<h3><strong>Oportunidades para novos modelos de negócio </strong></h3>
<p><strong>Diálogo competitivo</strong>: a Administração Pública realiza diálogos com licitantes previamente selecionados, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades. Aqui verifica-se importante oportunidade para soluções disruptivas nos casos em que houver dificuldades de a administração, por ela mesma, identificar a tecnologia adequada para enfrentar o “problema” que afeta o interesse público. Funciona, basicamente, como se, no processa licitatório, fosse incluída uma fase inicial à semelhança de um Procedimento de Manifestação de Interesse.</p>
<p><strong>Contrato de eficiência:</strong> contrato cujo objeto é a prestação de serviços, que pode incluir a realização de obras e o fornecimento de bens, com o objetivo de proporcionar economia ao contratante, na forma de redução de despesas correntes, remunerado o contratado com base em percentual da economia gerada. Com a previsão na nova Lei de Licitações, abrem-se portas para sua utilização para contratação de equipamentos médicos, principalmente tecnologia disruptiva que possa ser precificada em "economia média" por paciente, ainda que com custo inicial de implantação superior.</p>
<h3><strong>Nova relevância do ciclo de vida produto; lei de 1993 focava preço de venda</strong></h3>
<p>O “ciclo de vida” da contratação corresponde, dentre outras, às despesas de manutenção, utilização, reposição, depreciação e impacto ambiental do objeto licitado, entre outros fatores vinculados ao seu ciclo de vida (Art. 34, § 1º). A nova Lei de Licitações define a possibilidade de precificação dessas variáveis nas licitações, o que pode indicar uma mudança de cultura, com critérios de contratação mais racionais, mas que por outro lado podem afetar mercados específicos (como equipamentos médicos) beneficiando alguns <em>players</em> e prejudicando outros, a depender das características do produto. Isso se reflete diretamente, por exemplo, na introdução do “maior retorno econômico” como critério de julgamento das propostas (art. 33, VI). Nesse caso, “a remuneração deverá ser fixada em percentual que incidirá de forma proporcional à economia efetivamente obtida na execução do contrato” (art. 39).</p>
<h3><strong>Nova relevância dos programas de compliance para contratações públicas</strong></h3>
<p>A implantação e robustecimento de programas de compliance passa a ser requisito obrigatório para manter contratos com o governo (no caso de contratos de grande vulto – art. 25, § 4°). O mesmo critério é indicado como atenuante de penalidades (art. 156) e como condição para reabilitação das sanções de impedimento e inidoneidade (art. 163)<strong>.</strong></p>
<h3><strong>Bom histórico de contratações com o poder público passa a ser valorizado</strong></h3>
<p>O desempenho pretérito na execução de contratos com a Administração Pública deverá ser considerado na pontuação técnica (art. 36, § 3º; art. 37, III). Essa circunstância permite, nas contratações “técnica e preço”, diferenciar os “bons” dos “maus” prestadores, tornando mais importante manter um histórico positivo nas contratações administrativas. A mesma tendência é observada na possibilidade de criação de <em>black list </em>para marcas que se mostraram insatisfatórias em contratações anteriores (art. 41) e possibilidade de exigência de “declaração de atendimento satisfatório emitida por outro órgão ou entidade de nível federativo equivalente ou superior que tenha adquirido o produto” (art. 42, II).</p>
<h3><strong>Desburocratização: foco no efetivo prejuízo como critério de inabilitação</strong></h3>
<p>A nova Lei de Licitações reduz formalismos nas licitações públicas e foca a busca da melhor contratação, exigindo a observância do efetivo prejuízo como critério preponderante para fins de inabilitação de licitantes e desclassificação de propostas (art. 12, III). Essa tendência já vinha sendo observada em decisões do Tribunal de Contas da União (TCU), por exemplo, mas a indicação expressa em lei deve dar impulso decisivo a essa tendência.</p>
<h3><strong>Plano de contratações anual</strong></h3>
<p>A nova lei cria, ainda, a figura do plano de contratações anual, que é um planejamento de contratações que deve ser divulgado ao público, porém sua adoção é facultativa. Hoje é muito comum que as licitações sejam contratadas no final do exercício financeiro apenas para garantir o dispêndio da previsão orçamentária, mesmo no caso de órgãos bem estruturados como o Ministério da Saúde. Se o instrumento for amplamente adotado pode contribuir para uma nova (e melhor) cultura de contratações públicas.</p>
<h3><strong>Redução de prazo mínimos pela metade para contratações do SUS</strong></h3>
<p>A aquisição de medicamento ocorre, geralmente, por pregão, com prazo de oito dias de antecedência mínima para publicação do edital – que já é bem curto. A nova Lei de Licitações permite a redução desse prazo pela metade no caso de licitações pelo Ministério da Saúde (art. 55, §2º). Será natural que essa norma seja utilizada por analogia também para secretarias estaduais e municipais de Saúde.</p>
<h3><strong>Administração deverá ser mais precisa na exigência de atestados de capacidade técnica </strong></h3>
<p>Até hoje, é comum que a exigência de atestados de capacidade técnica seja genérica nos editais (por exemplo: “apresente atestados <em>compatíveis</em> com o objeto licitado”). Isso gera incerteza acerca da habilitação no certame (por exemplo, no fornecimento de medicamento, o interessado possui atestado para um produto com mesmo princípio ativo ou em quantidade inferior ao licitado). A jurisprudência de tribunais de contas já apontava parâmetro (por exemplo, sobre quantidade, 50% do objeto licitado, segundo o TCE-SP) porém o art. 18, IX aponta para melhores práticas no tema, exigindo especificação em edital.</p>
<p>A nova lei permite (também de forma inovadora) que parte da atestação técnica seja fornecida por potencial subcontratado para o atendimento do objeto licitado (até 25%). Essa inovação é especialmente relevante para o caso de objeto complexo que contemple diferentes especialidades.</p>
<h3><strong>Define nova sistemática de desempate de propostas (não são requisitos de habilitação ou contratação)</strong></h3>
<p>A situação de empate não é comum, mas pode ocorrer principalmente no caso de utilização do modo fechado e caso os licitantes utilizem valores inteiros (por exemplo, R$ 10). Novos critérios definidos pela nova lei: disputa final (os licitantes empatados apresentam nova proposta); avaliação do desempenho prévio dos licitantes em contratos com o poder público; desenvolvimento de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho; desenvolvimento de programa de compliance; empresas estabelecidas no território do órgão licitante; empresas que comprovem a prática de mitigação de riscos ambientais.</p>
<h3><strong>Mudanças nos requisitos de habilitação (obrigatórios)</strong></h3>
<p>A nova Lei de Licitações define que os documentos relativos à regularidade fiscal somente em momento posterior ao julgamento das propostas (art. 63, III). A postergação da exigência de regularidade fiscal é importante porque é comum problemas pontuais na expedição de CND. Com a previsão, os licitantes terão mais tempo para eventuais regularizações.</p>
<p>Por outro lado, passará a ser exigida do licitante declaração de que cumpre as exigências de reserva de cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado da Previdência Social. Era critério de desempate na Lei 8.666/1993 (portanto, com impacto relativamente baixo) e passa a ser requisito de habilitação na nova Lei de Licitações (portanto, enorme impacto).</p>
<p>Quanto à habilitação econômico-financeira, a nova lei admite a exigência de relação de contratações com impacto financeiro para verificação de compatibilidade com o objeto licitado.</p>
<h3><strong>Hipóteses novas ou modificadas de dispensa de licitação que são relevantes para o mercado de saúde</strong></h3>
<p>Dentre as hipóteses de dispensa de licitação (art. 75), a nova lei prevê aquisição de medicamentos destinados exclusivamente ao tratamento de <strong>doenças raras</strong> definidas pelo Ministério da Saúde. Algumas doenças raras constituem mercado relevante (no caso de produtos de elevado valor unitário) e o estabelecimento de dispensa pode ter impacto significativo na dinâmica do mercado público para essas mercadorias.</p>
<p>Sobre as PDP, a nova Lei de Licitações acrescenta que as aquisições provenientes dessas parcerias devem ocorrer em valores compatíveis com aqueles definidos no instrumento firmado para a transferência de tecnologia. Corresponde ao art. 24, II, da Lei 8.666/1993, mas a nova redação afasta a discussão sobre a regularidade dos preços unitários em PDP quando comparados com preços em Atas de Registro de Preços (que correspondem a fornecimento simples, sem transferência de tecnologia).</p>
<h3><strong>Vigência das Atas de Registro de Preço</strong></h3>
<p>O art. 84 da nova lei estabelece possibilidade de prorrogação de ARP (o que não havia antes): 1 ano + 1 ano. Trata-se de mudança relevante, já que anteriormente essa vigência era improrrogável.</p>
<h3><strong>Vigência dos contratos de eficiência</strong></h3>
<p>Nos contratos de eficiência (hipótese nova criada pela nova lei) a vigência poderá ser de até dez anos nos casos em que não haja investimento do contratado privado e de 35 anos quando houver investimento. Cria possibilidade de contratação semelhante a PPP (art. 5º, I, da Lei 11.079/2004) mas sem as restrições quanto ao objeto, nos termos do art. 2º, § 4º, da Lei de PPP e outros requisitos que burocratizam a contratação de PPP.</p>
<h3><strong>Cláusulas obrigatórias em contratos administrativos</strong></h3>
<p>A nova lei define novas cláusulas obrigatórias (art. 92), com destaque para:</p>
<ol>
<li>Definição detalhada dos valores das multas e suas bases de cálculo. Valores das multas e bases de cálculo muitas vezes não estavam previstos diretamente no contrato, mas em ato administrativo geral, como Portarias.</li>
<li>Cumprimento de cotas: obrigação de o contratado cumprir as exigências de reserva de cargos para pessoa com deficiência, para reabilitado da Previdência Social e para aprendiz. Esse aspecto, antes tratado como diferencial positivo, agora se transforma em requisito para manutenção de contratos com a Administração Pública e, por isso, deve ter previsão expressa em contrato. A Administração poderá exigir, para além de declarações, a comprovação efetiva do cumprimento dessas cotas. O não cumprimento dessa obrigação tornou-se causa expressa de extinção do contrato.</li>
</ol>
<ul>
<li>Previsão de índices de reajuste mesmo em contratos com vigência anual.</li>
</ul>
<h3><strong>Disciplina de forma mais precisa o dever de obediência à ordem cronológica de pagamentos</strong></h3>
<p>A Lei 8.666/1993 previa esse dever, porém de forma sucinta (parte final do art. 5º). Trata-se de tema de grande relevância porque é o mecanismo que pode ser utilizado pelos contratados para garantir judicialmente o pagamento de valor devido pela Administração sem ter que lançar mão de ação de cobrança (que redunda no recebimento via precatório). Isso porque quanto à ordem cronológica cabe mandado de segurança para determinar o pagamento, além de implicar consequências perante o tribunal de contas e também criminal para o agente público responsável. A nova lei obriga, também, a divulgação do status da ordem cronológica pelo órgão, informação que não costumava ser de fácil acesso.</p>
<h3><strong>Flexibilização de pagamentos: remuneração variável e liberação de parcelas incontroversas</strong></h3>
<p>O art. 144 da nova Lei de Licitações permite o estabelecimento de remuneração variável de acordo com o desempenho/metas, o que não havia na Lei 8.666/1993, desenvolvida apenas sob critérios de incentivo negativo (punição).</p>
<p>A nova lei determina, também, a liberação de pagamento das parcelas de conformidade incontroversa, caso identificado defeito parcial (art. 143). Não havia previsão expressa nesse sentido na Lei 8.666/1993, o que dificultava o recebimento parcial nesses casos.</p>
<h3><strong>Desconsideração da personalidade jurídica na aplicação de sanções</strong></h3>
<p>Inovação importantíssima e que dá base legal para que as penalidades alcancem, por exemplo, a empresa matriz ou holding de um grupo econômico ou mesmo os sócios (art. 160). Fragiliza estratégias defensivas baseadas no esvaziamento do CNPJ no caso de aplicação de penalidade grave como impedimento ou declaração de inidoneidade.</p>
<h3><strong>Impedimento de licitar e declaração de inidoneidade: ampliação do prazo máximo</strong></h3>
<p>Penalidade de impedimento de licitar teve prazo máximo elevado para três anos (antes era de dois anos – art. 87, III, Lei 8.666/1993). Condição de reabilitação: transcurso do prazo mínimo de um ano da aplicação da penalidade.</p>
<p>A declaração de inidoneidade (penalidade administrativa mais grave prevista) não tinha prazo definido na Lei 8.666/1993 e duraria “enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade”, podendo ser requerida reabilitação após prazo mínimo de dois anos.</p>
<p>A nova Lei de Licitações prevê prazo mínimo de três e máximo de seis anos para a declaração de inidoneidade. Condição de reabilitação: transcurso do prazo mínimo de três anos da aplicação da penalidade.</p>


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JOTA

Oportunidades para avanços na cultura do setor e para novos negócios

Impactos da nova Lei de Licitações sobre o mercado público de bens de saúde

Nova Lei de Licitações e Contratos apresenta oportunidades para avanços na cultura do setor da saúde e oportunidades para novos negócios.