Pandemia

Impactos da crise no setor jurídico das organizações

CEO e o CFO, em conjunto com o líder jurídico, precisam estar atentos e ter uma perspectiva estratégica

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A crise mundial provocada pela Covid-19 vem gerando impactos em diversos setores da economia e na sociedade como um todo, não só no Brasil como no mundo, e está transformando a maneira como as pessoas se relacionam e se organizam. Segmentos como aviação, turismo, varejo, entre outros, se viram obrigados a tomar decisões e repensar seus negócios para sobreviverem no mercado. Suspensão de contrato de trabalho, redução de jornadas e salários e demissões foram algumas das medidas adotadas para lidar com a crise.

Níveis de serviço, atendimento, canais de interação com clientes também foram sobrecarregados devido aos cancelamentos, dúvidas, desistências e alterações em curso, com novas regras e políticas que foram construídas praticamente “do dia para a noite”. Essas ações rápidas, que, normalmente, possuem o objetivo de preservar as marcas, controlar a geração de caixa em situação adversa, reduzir despesas e diferir dívidas e impostos, foram um alento para as empresas “continuarem respirando”. Entretanto, essas medidas, além de ajudar na saída da crise, devem trazer novos desafios para os departamentos jurídicos no futuro, pois é provável que uma quantidade significativa de litígios seja iniciada contra as companhias, tanto na esfera trabalhista quanto cível.

O desaquecimento da economia e a instabilidade nos investimentos aumentarão o número de demissões sem justa causa, gerando atrito entre sindicatos e entidades de classe e empresários. O volume de quebras contratuais na relação de produção de bens e serviços por ambos os lados (fornecedores e clientes) crescerão exponencialmente nesse período. É esperada também uma redução no nível geral de satisfação pelos serviços prestados, que, em um primeiro momento, vai gerar reclamações e depois tendem a virar uma “corrida ao judiciário” para cobrar os supostos direitos.

Com um olhar mais específico às questões trabalhistas, o paralelo mais recente foi a crise do subprime, que somou 1,3 milhão de pessoas ao contingente de desempregados entre 2008 e 2009, conforme dados da PNAD¹. No primeiro trimestre de 2009, a taxa de desocupação havia aumentado 32% em relação a dezembro de 2008, o que, parcialmente, justifica o aumento de 10,6% nas entradas de processos na Justiça do Trabalho frente aos 4,3% de aumento do ano anterior. Após este período, alguns fatores mudaram na relação entre trabalhador e empregador. Houve uma maior procura por conciliações extrajudiciais e a Reforma Trabalhista de 2017 flexibilizou o mercado de trabalho com alterações na jornada dos trabalhadores, parcelamento das férias, possibilidade de trabalho intermitente, o que contribuiu para a redução do volume de entrada de processos já em 2018.

Avaliando também outro período de instabilidade no Brasil, o ajuste fiscal de 2015 e suas medidas para a retenção dos gastos impactaram a economia, gerando recessão, alta na inflação e no desemprego. Os períodos pós-crise demonstram que existe um aumento de 10% a 12% no volume de processos ajuizados na esfera trabalhista. Se esse comportamento se repetir em 2021, podemos concluir que a quantidade de processos poderá ser entre 192 mil a 273 mil superior ao ano de 2019, incluindo um impacto adicional pelo aumento significativo da taxa de desocupação, voltando, inclusive, a ultrapassar a barreira dos 2 milhões de processos, mesmo no período pós-reforma.

Como os departamentos jurídicos estão se preparando para esse aumento exponencial de demandas judiciais em alta velocidade? Apesar de algumas empresas já utilizarem tecnologia e analytics no seu dia a dia, grande parte dos departamentos jurídicos não tem a maturidade ideal em termos de gestão interna, e terá dificuldade para absorver o aumento substancial de demanda de forma otimizada e com visão estratégica.

Muitos departamentos jurídicos ainda estão focados em uma atuação de defesa caso a caso, analisando teses e jurisprudências, ou simplesmente torcendo para que seus escritórios parceiros consigam performar bem. Mas com o aumento da demanda, poucos escritórios ou departamentos jurídicos conseguirão atender de forma eficiente, comprometendo a qualidade das defesas e a execução da esteira operacional.

A tática de atuação caso a caso por si só não está errada, mas as atenções também devem ser direcionadas para a gestão, performance e resultados financeiros gerados. Poucas áreas jurídicas conseguem se estruturar para simular cenários com base no histórico, prever o contencioso futuro, antecipar comportamentos e apresentar indicadores de gestão.

Esses três fatores são cruciais para uma estratégia eficiente de atuação, podendo influenciar, e muito, o caixa e o resultado econômico-financeiro da organização no curto, médio e longo prazo. A complexidade de se estruturar esses pilares, de aprofundar e redefinir a melhor estratégia de atuação jurídica, além da necessidade de conciliar demandas de outras áreas da empresa e dos impactos de fatores externos (novas medidas provisórias, instruções do governo, reuniões com as associações de classe e sindicato) devem levar os departamentos jurídicos a atingir e até saturar seu limite de capacidade. O risco, portanto, é de não entregarem os melhores resultados para o momento pós-crise.

As empresas que tiverem um departamento jurídico capaz de criar modelagens com analytics, estruturar estratégias de acordo e defesa eficazes, ter uma esteira operacional automatizada e eficiente, com boa gestão dos escritórios, por exemplo, poderão contribuir em muito para diminuir o impacto no caixa e resultado financeiro das empresas, especialmente nesse momento pós-crise. As áreas jurídicas que seguirem com o modelo mais antigo, focado em gestão individual de cada processo e apenas como “criador de conteúdo”, terão grandes dificuldades em absorver o aumento de demanda judicial prevista para o segundo semestre de 2020 e ao longo de 2021. O fato é que, como resultado, vão “deixar dinheiro na mesa”.

Mas a notícia boa é que ainda dá tempo para os departamentos jurídicos se estruturarem para agir de forma organizada. Iniciativas para melhorar a gestão interna dos processos judiciais, incluindo uma visão financeira, otimizando sua tratativa, conectando os agentes e ofensores internos e externos, devem gerar impactos positivos. A própria identificação da causa raiz e a integração das demais áreas da organização também devem mitigar novas entradas, assim desonerando a área jurídica dos litígios, que poderiam ter sido resolvidos em alguma etapa anterior da cadeia de valor da empresa. É importante que a liderança das áreas tenha essa visão mais holística da empresa, no sentido de estar comprometida e alinhada internamente nos processos críticos.

O CEO e o CFO, em conjunto com o líder jurídico, precisam estar atentos e ter uma perspectiva estratégica sobre os possíveis impactos que os resultados do departamento jurídico (contencioso e consultivo) podem gerar nas metas das companhias.