Paulo Roberto Andrade

A incidência do ICMS nas contas de energia elétrica suscita, dentre outras, duas controvérsias bastante conhecidas. A primeira refere-se à cobrança do imposto estadual sobre a chamada “demanda contratada de potência”. Após reconhecer a repercussão geral do tema em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) dirimiu-o em favor dos contribuintes em abril/2020, no julgamento do RExt-RG nº 593.824, oportunidade em que fixou a seguinte tese: “A demanda de potência elétrica não é passível, por si só, de tributação via ICMS, porquanto somente integram a base de cálculo desse imposto os valores referentes àquelas operações em que haja efetivo consumo de energia elétrica pelo consumidor".
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>A segunda controvérsia envolve a cobrança do mesmo imposto sobre os “encargos de uso de sistema de distribuição – EUSD”. Aqui, porém, de maneira paradoxal – ou, sem eufemismos, incoerente –, o Supremo não enxergou estatura constitucional, recusando-lhe repercussão geral em junho/2017 (RExt nº 1.041.816).
O desate da matéria ficou, assim, reservado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, meses depois de o STF decliná-la, afetou-a, em novembro/2017, para julgamento em dinâmica repetitiva (REsps nºs 1.699.851/TO, 1.692.023/MT, 1.734.902/SP, 1.734.946/SP e EREsp nº 1.163.020/RS). Ainda não se tem notícia de quando esses leading cases serão pautados naquela Corte.
O que parece, até aqui, pairar abaixo do radar dos operadores do direito que lidam com esses dois assuntos é que há, entre eles, uma relação de continência. Vejamos.
A “demanda contratada” é a potência a ser continuamente assegurada pela distribuidora ao usuário. Potência é a quantidade de energia que trafega por um corpo em uma unidade de tempo. É medida em Watts. Para definir a potência a ser contratada por um estabelecimento, deve-se basicamente apurar a quantidade de energia consumida em um átimo quando todas as suas máquinas e equipamentos elétricos estão simultaneamente ligados. Quanto maior a potência, mais robustas devem ser as benfeitorias da rede elétrica (fiação, bitolas etc.) – a cargo da distribuidora – na chegada da energia ao ponto de consumo.
Para os grandes consumidores, integrantes do chamado grupo “A”, a norma regulatória determina que os custos com a disponibilização da demanda sejam aferidos e cobrados de maneira separada da energia elétrica propriamente.
A fatura remetida pela distribuidora a esses usuários evidencia, assim, duas grandezas distintas: (i) a energia elétrica consumida no período e (ii) a demanda de potência contratada para o período. Daí serem chamadas faturas “binômias”.
Sustenta-se não incidir o ICMS sobre o valor da demanda contratada, essencialmente, porque esta não mensura uma operação mercantil, mas a disponibilização temporária de adequada infraestrutura no ponto de chegada da energia.
Os “encargos de uso do sistema de distribuição – EUSD”, a seu turno, correspondem ao valor pago pelo usuário à distribuidora em contrapartida à disponibilização de toda a rede de distribuição pela qual a energia trafega até o ponto de consumo. Já se vê que o EUSD remunera uma “cessão de uso”, portanto tampouco se subsome ao fato gerador do ICMS.
<blockquote class="jota-article__eye">Com algum esforço de simplificação, pode-se dizer que a demanda contratada tem a ver com o ponto de chegada da energia, enquanto o EUSD relaciona-se a todo o caminho percorrido pela energia até o ponto de chegada; ambos, de qualquer forma, alheios à hipótese de incidência do ICMS.</blockquote>
Mas como a demanda contratada e o EUSD são liquidados e valorados na fatura? Essa investigação é reveladora, e seu parâmetro normativo é a Resolução ANEEL nº 414/10<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, que estabelece as condições gerais de fornecimento de energia elétrica no país.
Essa resolução fixa dois tipos de tarifa a serem aplicados sobre as grandezas medidas nas faturas binômias: a tarifa de energia – TE e a tarifa de uso do sistema de distribuição – TUSD.
A TE é aplicada unicamente sobre a energia consumida, enquanto a TUSD é aplicada sobre a energia consumida e sobre a demanda contratada (art. 2º, LXXV). Tanto é assim que a TE é fixada em “R$ por MWh”, pois MWh é unidade de medida de consumo de energia; já a TUSD se divide em duas sub-tarifas, uma medida em “R$ por MWh”, a ser aplicada também sobre a energia consumida e, outra, medida em “R$ por kW”, para ser aplicada sobre a demanda contratada.
O valor final da fatura binômia é, portanto, a soma de três grandezas:
1.Energia Consumida                    x          TE       =          R$Y
2.Energia Consumida                    x          TUSD =          R$Z
3.Demanda Contratada                  x          TUSD =          R$W
Total:                                                                        =          R$Y+Z+W
O EUSD, prossegue a RN 414/10, é calculado “pelo produto da tarifa de uso pelos respectivos montantes de uso do sistema de distribuição e de energia contratados ou verificados” (art. 2º, XXIX). Pois o tal montante de uso do sistema de distribuição (“MUSD”) é justamente a demanda de potência contratada pelo usuário (art. 2º, LI).
Em resumo, a demanda contratada corresponde à grandeza 3 do diagrama acima, enquanto o EUSD – eis o fundamental – corresponde à soma das grandezas 2 e 3.
O EUSD, enfim, é a soma das grandezas sobre as quais se aplica a TUSD. É até por isso, aliás, que a tese é, no mais das vezes, descrita, de maneira suficientemente compreensível mas tecnicamente incorreta, como a “não-incidência do ICMS sobre a TUSD”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Ora, o ICMS não incide sobre o valor da tarifa, mas sobre o resultado da multiplicação dessa tarifa pelas grandezas sobre as quais ela se aplica.
Tudo isso significa que a supressão do EUSD da base de cálculo do ICMS já implica inexoravelmente a supressão da demanda contratada. O contribuinte que judicializar e vencer a “tese do EUSD” não precisa, pois, sequer litigar pela “tese da demanda contratada”.
Da perspectiva processual, o fenômeno subjacente é o da continência de ações, que se configura “quando houver identidade quanto às partes e à causa de pedir, mas o pedido de uma, por ser mais amplo, abrange o das demais” (CPC, art. 56).
As ações ajuizadas pelo mesmo contribuinte para pleitear a não-incidência do ICMS sobre o EUSD e sobre a demanda contratada deveriam, assim, ser distribuídas por dependência e julgadas conjuntamente (CPC, arts. 286, I e 58). Nada disso, no entanto, tem ocorrido. Nem os contribuintes, nem o fisco, nem o Judiciário parecem ter atinado para essa realidade.
Os contribuintes a perceberão, possivelmente, da maneira mais frustrante: quando forem liquidar o benefício econômico após o trânsito em julgado das suas ações...
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: &lt;<a href="http://www2.aneel.gov.br/cedoc/bren2010414.pdf">http://www2.aneel.gov.br/cedoc/bren2010414.pdf</a>&gt;.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> No STJ, a ementa do acórdão que afetou a matéria para julgamento repetitivo comete esse lapso terminológico: “1. Admitida a afetação da seguinte questão controvertida: 'inclusão da Tarifa de Uso do Sistema Transmissão de Energia Elétrica (TUST) e da Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição de Energia Elétrica (TUSD) na base de cálculo do ICMS'".

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JOTA

Uma insuspeitada relação de continência

ICMS sobre encargos de uso de sistema de distribuição e sobre demanda contratada

Uma insuspeitada relação de continência