Paulo Roberto Andrade

Paulo Bento

A incidência do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/icms">ICMS</a> sobre os encargos de uso do sistema de distribuição (EUSD)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> é uma novela que ninguém aguenta mais assistir; ainda assim, o poder público segue brindando a enfastiada audiência com sempre novos capítulos; no mais recente deles, coube ao <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a> o papel de ator principal.
Antes, uma breve retomada do roteiro. A controvérsia é objeto do Tema Repetitivo 986 do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">STJ</a>, afetado em novembro de 2017. Já se vai mais de meia década à espera de que a Corte finalmente coloque um ponto final à trama. Enquanto isso, todas as milhares de ações que controvertem o tema país afora seguem sobrestadas (CPC, art. 1.037, II).
Talvez cansados de esperar pelo socorro judicial, os contribuintes bateram às portas de seus representantes no legislativo. A iniciativa foi eficaz. Na <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-complementar-n-194-de-23-de-junho-de-2022-410028232">Lei Complementar 194/22</a>, dedicada essencialmente a disciplinar a alíquota do ICMS de bens e serviços essenciais, encartou-se um simpático jabuti, que passou tão despercebido quanto um elefante pela cristaleira.
Trata-se do novo art. 3º, X da Lei Kandir, introduzido pelo art. 2º da LC 194/22, que afasta o imposto estadual sobre “serviços de transmissão e distribuição e encargos setoriais vinculados às operações com energia elétrica”.
Resolvia-se, assim, no plano legislativo, a polêmica. A partir da LC 194/22, o ICMS não mais poderia incidir sobre o EUSD, independentemente, inclusive, da conformação das respectivas leis estaduais à nova regra complementar (CR/88, art. 24, §4º). Restaria ao Judiciário apenas dirimir o período anterior à LC 194/22.
Os Estados reagiram energicamente. Quatro dias após a promulgação da LC 194/22, a ADI 7.195 estava distribuída no Supremo, acusando de inconstitucional o novo art. 3º, X da Lei Kandir.
Pois o plenário acaba de deferir nesta ADI, por expressiva maioria, uma tutela cautelar para suspender os efeitos do referido dispositivo complementar, referendando a <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-barbara-mengardo/fux-reinclui-tusd-tust-na-base-do-icms-e-agora-15022023">decisão monocrática proferida pelo relator Luiz Fux</a> dias antes. Retrocedemos, assim, mais duas casas na evolução desse enredo: a iniciativa legislativa fica suspensa e os holofotes voltam-se novamente ao recurso repetitivo a ser julgado, sabe-se lá quando, no STJ.
A decisão do STF tem dois fundamentos. Sob o primeiro deles, de ordem formal, a corte entendeu ilegítima “a definição dos parâmetros para a incidência do ICMS em norma editada pelo Legislativo federal”. Não nos parece que seja o caso, na medida em que, aprovando lei complementar, o Congresso Nacional atua como órgão legislativo da República, e não da União.
Mais importante – embora não menos inconsistente – parece ser o segundo fundamento da decisão, este de natureza material. Entenderam S.Exas. que o texto constitucional prescreve “a incidência da exação sobre o total das operações e não do montante relativo ao exclusivo consumo do bem, no caso, da energia elétrica”. Ainda nas palavras do voto vencedor, “o termo operações remete não apenas ao consumo efetivo, mas a toda a infraestrutura utilizada para que este consumo venha a se realizar”.
Entende-se que, nas operações com energia elétrica, o ICMS poderia incidir sobre grandezas adjacentes à efetiva operação mercantil, como é o caso do EUSD. O acórdão busca nos arts. 155, §3º da CR/88 e no art. 34, §9º do ADCT o suposto respaldo constitucional para tais conclusões.
A nosso ver, estes dispositivos não têm o alcance enxergado pelo Supremo. O art. 153, §3º da Carta proíbe que outro imposto, além do ICMS, incida em operações com energia elétrica. O §3º não excepciona, alargando-a, a base imponível extraível do inciso II do mesmo art. 155 da Carta.
Já o art. 34 do ADCT apenas prescreve a responsabilidade tributária da distribuidora de energia pelo pagamento do ICMS em “operações relativas à circulação de mercadorias incidente sobre energia elétrica”, nada elucidando acerca da base imponível do imposto neste segmento.
Embora não nos pareça correto, o entendimento que prevaleceu na decisão do STF não é teratológico, insustentável, longe disso. Adotou-se uma hermenêutica possível, dentre outras exegeses igualmente possíveis.
Nossa crítica ao julgado não reside no seu mérito propriamente, mas na incoerência histórica que ele revela, que ele escancara. A decisão contradiz frontalmente dois precedentes do próprio Supremo, intimamente ligados à incidência do ICMS sobre o EUSD.
O primeiro deles consiste no RE 1.041.816, de junho de 2017, no qual a corte recusou repercussão geral precisamente a esse tema, consagrando-o ao STJ. Na oportunidade, entenderam os ministros que a incidência do ICMS sobre o EUSD não tinha envergadura constitucional, desafiando apenas normas de nível legal. Eis a ementa, clara e objetiva:
<blockquote class="jota-article__citation">“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. DIREITO TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS - ICMS. ENERGIA ELÉTRICA. BASE DE CÁLCULO. TARIFA DE USO DO SISTEMA DE TRANSMISSÃO - TUST. TARIFA DE USO DO SISTEMA DE DISTRIBUIÇÃO - TUSD. VALOR FINAL DA OPERAÇÃO. QUESTÃO INFRACONSTITUCIONAL. LEGISLAÇÃO FEDERAL. 1. A correção jurídica da conduta de incluir os valores tarifários da TUST e da TUSD na base de cálculo do ICMS incidente sobre a circulação da energia elétrica é controvérsia que não possui estatura constitucional”.</blockquote>
Olvidada do que decidiu há menos de seis anos, a corte agora subitamente enxerga viés constitucional na matéria.
O segundo precedente colidente com a ADI 7.195 é o RE 593.824, de abril de 2020, em que a Suprema Corte afastou o ICMS sobre a chamada “demanda contratada de potência”. Explica-se.
Ao contrário do que muitos pensam, a demanda de potência nada tem a ver com “energia consumida” e “energia disponibilizada”, como se fosse uma espécie de “estoque” de energia contratualmente assegurado pela concessionária ao consumidor. Potência é conceito físico sequer passível de consumo, apenas de medição.
Segundo a <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-normativa-aneel-n-1.000-de-7-de-dezembro-de-2021-368359651">Resolução Normativa Aneel 1.000/21</a>, a demanda de potência, aplicável aos grandes consumidores nas faturas ditas “binômias”, remunera a disponibilização, pela concessionária distribuidora, de adequada infraestrutura no ponto de chegada da energia.
O valor pago a título de demanda contratada é uma grandeza adjacente e concomitante à operação mercantil, mas que com ela não se confunde, e foi justamente por isso que o Supremo o extraiu da base do ICMS. Eis a passagem mais emblemática do voto vencedor do RE 593.824: “dessa forma, constata-se que não integram a base de cálculo do ICMS incidente sobre a energia elétrica valores decorrentes de relação jurídica diversa do consumo de energia elétrica”.
Pois o EUSD é precisamente uma grandeza acessória à operação mercantil com energia elétrica, tanto quanto a demanda contratada de potência (aliás, o valor devido a título de demanda apura-se pela aplicação da própria TUSD sobre a demanda contratada ou atingida no período de medição).
Tanto é assim que, para fundamentar seu voto no leading case sobre demanda contratada, o relator Edson Fachin transcreve lição doutrinária de Roque Carrazza, na qual o mestre sustenta a não-incidência do ICMS sobre as “tarifas de fio”, que vêm a ser um dos componentes da TUSD, confirmando que os argumentos aplicáveis à demanda servem igualmente ao EUSD.
No RE 593.824, relativo à demanda, tais argumentos sensibilizaram o Supremo mas, na ADI 7195, relativa ao EUSD, subitamente perderam o encanto.
Por tudo isso, a decisão recém-proferida pelo STF na ADI 7.195, rendidas todas as vênias, resulta-nos desavisada e desconectada do contexto evolutivo do próprio Supremo sobre a matéria. Resta torcer para que o STJ não se deixe impactar quando finalmente pautar o Tema Repetitivo 986.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Embora o tema “ICMS sobre a TUSD” seja consagrado pelo mercado e Judiciário, o imposto não incide propriamente sobre a tarifa de uso, mas sobre os encargos apurados pela aplicação dela.

política fiscal

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JOTA

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