Rennan Thamay

Vanderlei Garcia Junior

Aristóteles Moreira Filho

Alessandra Okuma

Dando sequência à nossa série de artigos sobre a chamada “Tese do Século”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, vamos abordar um aspecto específico que tem adquirido relevância nas últimas semanas e atraído o foco dos especialistas, especialmente após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 13 de maio de 2021, que determinou a modulação dos efeitos do precedente fixado no RE nº 574.706.
Como se sabe, o Supremo Tribunal Federal consolidou, no julgamento do RE nº 574.706, a tese de que “o ICMS não compõe a base de cálculo para efeito de incidência do PIS e da Cofins”. Por outro lado, a corte, ao julgar Embargos Declaratórios interpostos pela Fazenda Nacional, concedeu a modulação dos efeitos da decisão, atribuindo-lhe eficácia ex nunc a partir de 15 de março de 2017, data do julgamento de mérito do extraordinário e da expedição do enunciado acima transcrito, que passou a reger o Tema 69 de repercussão geral.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>
Da modulação dos efeitos determinada pelo Supremo Tribunal Federal foram excepcionadas apenas as pretensões judiciais e administrativas protocoladas até 15 de março de 2017.
Isso significa que, como regra geral, os contribuintes que apresentaram pleito judicial ou administrativo a partir dessa data usufruem apenas dos efeitos prospectivos do precedente fixado no RE nº 574.706, não podendo buscar a restituição dos valores recolhidos a maior em períodos anteriores a 15 de março de 2017.
A questão é particularmente controvertida no que se refere às medidas judiciais ou administrativas propostas no intervalo entre 15 de março de 2017, data em que firmada a tese do RE nº 574.706, e 13 de maio de 2021, data em que determinada a modulação dos efeitos; é dizer, para os contribuintes que, orientados pelo precedente vinculante, foram posteriormente surpreendidos pela modulação de efeitos aplicada retroativamente, desde 15 de março de 2017. Algumas decisões já vêm sido noticiadas país afora protegendo da aplicação da modulação dos efeitos as posições jurídicas firmadas em processos ajuizados após 15 de março de 2017<a href="#_edn1" name="_ednref1">[2]</a>.
É compatível com o princípio da segurança jurídica, com a proteção da confiança legítima, com o instituto dos precedentes vinculantes, bem como com o regime de transição jurisprudencial a aplicação da modulação dos efeitos a partir de 15 de março de 2017 a todos os processos, judiciais e administrativos, movidos após essa data?
Para responder à questão, faremos breves digressões sobre os fundamentos utilizados pelo STF para determinar a modulação dos efeitos no RE nº 574.706, bem como sobre os contextos material e processual de sua aplicação.
Foi a partir de razões de segurança jurídica que o Supremo Tribunal Federal decidiu conferir efeitos prospectivos à decisão que reconheceu a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins.
Para tanto, o plenário da corte identificou na transição entre o entendimento contrário, consolidado anteriormente no STJ, e o entendimento favorável à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, firmado pelo STF no RE nº 574.706, uma mudança jurisprudencial que veio romper com as expectativas firmadas no passado, especialmente aquelas do Fisco, quanto à normatividade aplicável às contribuições sociais sobre a receita bruta, e que dessa forma careceriam de proteção jurídica via modulação de efeitos.
Como norma que integra o direito positivo a partir do sistema constitucional, a segurança jurídica opera não apenas para efetivar os valores de previsibilidade, estabilidade e certeza nas múltiplas vertentes da conduta humana e sua regulação, mas também para concretizar, ao longo de todo o ordenamento, os valores e princípios constitucionais, bem como para assegurar a proteção dos direitos fundamentais, nas suas diversas categorias e modalidades.
Pari passu com a sua dimensão semântica, o princípio da segurança jurídica apresenta uma dimensão pragmática que é transversal ao sistema jurídico, ao tangenciar a própria função do Direito, que corresponde à manutenção e à estabilização de expectativas normativas.
Para manter e estabilizar expectativas normativas, é fundamental que o sistema jurídico seja apto a gerar confiança, quanto à efetividade dos programas normativos em vigor, e certeza, quanto ao seu conteúdo. A confiança é um ativo fundamental na sociedade contemporânea, permitindo a construção de expectativas recíprocas entre os atores sociais, a antecipação de ações e a coordenação de interesses num ambiente social caracterizado pela complexidade, pela imprevisibilidade e pelo risco<a href="#_edn2" name="_ednref2">[3]</a>.
Para o ordenamento jurídico, é relevante a geração de confiança sistêmica, que é aquela pela qual as expectativas geradas sejam concretizadas, independentemente de aspectos individuais dos sujeitos ou elementos específicos do caso concreto, instalando um estado de confiança sob o qual haja a expectativa generalizada de que as expectativas normativas serão reconhecidas e mantidas.
Para se almejar um nível semelhante de segurança e certeza, é fundamental o papel exercido pelo Poder Judiciário, que, como detentor da última palavra em matéria de interpretação e aplicação do Direito, não apenas é responsável por manter as expectativas que emanam das normas do sistema, mas também por criar ele próprio expectativas normativas a partir dos precedentes que emite.
É exatamente para proteger a confiança legítima gerada pelo precedente nos jurisdicionados, e assim promover a segurança jurídica individual e sistêmica, que a autoridade judicial, diante da hipótese de mudança de entendimento jurisprudencial consolidado, tem à mão o instrumento da modulação de efeitos, pelo qual se pode atribuir eficácia prospectiva à decisão judicial e preservar o estado de coisas existente diante de uma ruptura das expectativas firmadas anteriormente.<a href="#_edn3" name="_ednref3">[4]</a>
A racionalidade que permeia a modulação dos efeitos reside na valoração da segurança de orientação, pela qual o entendimento fixado no precedente jurisprudencial serve como paradigma para as condutas dos jurisdicionados, operando em proteção da confiança legítima depositada pelos litigantes no órgão jurisdicional, no sistema processual e na ordem jurídica como um todo.
Este estado de confiança arriscaria quedar comprometido, tanto em nível individual quanto em nível sistêmico, na hipótese em que novo entendimento jurisprudencial fosse aplicado a fatos e atos pretéritos, transcorridos sob a égide do entendimento jurisprudencial anterior, que estivessem sub judice ou pudessem ser objeto de julgamento ulterior.
<blockquote class="jota-article__eye">Como se vê, a modulação dos efeitos opera para alinhar a temporalidade dos precedentes com aquela das expectativas geradas nos jurisdicionados e protegidas pelo Direito.</blockquote>
Em nome da segurança jurídica, renuncia-se à temporalidade inerente à validade das normas jurídicas substanciais, inclusive ao dogma da nulidade ab initio da regra inconstitucional, para que o regime jurídico aplicável à relação de direito material obedeça à cronologia dos precedentes então em vigor.
A premissa do alinhamento temporal entre os precedentes em vigor e as expectativas legítimas dos jurisdicionados, protegidas pelo Direito, é fundamental para a compreensão da racionalidade do instituto da modulação dos efeitos, servindo de verdadeiro postulado a reger e controlar a sua aplicação. É tal critério que justifica a manutenção de expectativas, bem como a proteção de posições jurídicas correspondentes, baseadas em uma norma declarada inconstitucional, porque à época estava amparada por jurisprudência dominante firmada pelo tribunal.
De tal postulado é que decorre a necessidade de que a decisão de modulação dos efeitos seja concomitante à mudança de entendimento jurisprudencial, ou seja, deva constar do mesmo acórdão em que firmada a nova tese representativa da jurisprudência dominante<a href="#_edn4" name="_ednref4">[5]</a>.
Trata-se, a deliberação acerca de modulação dos efeitos pleiteada pela parte litigante, ao especificar a eficácia temporal da decisão de mérito, de tópico integrante do acórdão que implica a mudança de entendimento jurisprudencial consolidado, devendo ser promovida em conjunto com o julgamento de mérito, sob pena de comprometer a segurança jurídica em prol da qual deve atuar.
De fato, a fixação de novo precedente já consubstancia fonte de expectativas normativas perante os jurisdicionados, conduzindo sua conduta, de forma legítima e uniforme vis-à-vis o direito material aplicável, ao encontro da nova tese fixada pelo tribunal.
A perspectiva de decisão ulterior, deliberada anos após a fixação do novo precedente, limitando no tempo os efeitos da decisão anterior, estabelece um intervalo de absoluta insegurança jurídica, durante o qual os jurisdicionados atuaram em conformidade com o novo precedente fixado, apenas para posteriormente serem privados da eficácia da decisão vinculante e da ampla aplicabilidade da tese nela encartada.
Tais considerações jogam luzes sobre a prática que tem sido adotada pelo Supremo Tribunal Federal, de apreciar e eventualmente conceder a modulação dos efeitos em julgamento de Embargos Declaratórios, ou seja, em átimo posterior à decisão de mérito que estabelece o novo precedente jurisprudencial<a href="#_edn5" name="_ednref5">[6]</a>.
Trata-se de expediente que, por mais que pareça conveniente do ponto de vista da gestão do processo e possa atender a uma estratégia do órgão julgador voltada à contenção de danos eventualmente decorrentes da mudança do entendimento jurisprudencial, parece-nos ir de encontro à modulação dos efeitos, nos seus fundamentos de segurança jurídica, e mostrar-se incompatível com o alinhamento temporal inerente aos mecanismos de transição jurisprudencial. O caso da Tese do Século demonstra-o de forma bem clara.
Em 15 de março de 2017, o Supremo Tribunal Federal julgou o mérito do RE nº 574.706, que resultou na fixação da tese de que “o ICMS não compõe a base de cálculo para efeito de incidência do PIS e da Cofins”. A decisão, que, como precedente vinculante, já passou, desde a sessão de julgamento, a determinar a atuação dos demais órgãos jurisdicionais, bem como a orientar as condutas dos jurisdicionados, ganhou ainda mais força normativa quando teve seu acórdão publicado em 02 de outubro de 2017.
Nesse ínterim, diversas demandas foram instauradas já sob a vigência do precedente fixado pelo RE nº 574.706, fazendo inclusive, via de regra, expressa referência à tese recém fixada, pelo Supremo Tribunal Federal, sob o regime de repercussão geral, de que o ICMS não compõe a base de cálculo do PIS e da Cofins.
O caráter normativo do precedente vinculante, bem como seu status de fonte de expectativas legítimas geradas no universo de jurisdicionados, deixa-se entrever não apenas na conduta dos contribuintes, que buscaram o Poder Judiciário para reaver os valores recolhidos indevidamente a partir da cobrança inconstitucional do PIS e da Cofins, mas também na atuação do próprio Fisco, que em 18 de outubro de 2018 editou a Solução Interna Cosit nº 13 para disciplinar o cumprimento do precedente estabelecido pelo STF nos múltiplos casos envolvendo a matéria.
Como se vê, trata-se de típica situação em que o precedente, vinculante, orienta a conduta dos jurisdicionados e serve de base para expectativas de confiança legítima, neste caso, de que a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins é inconstitucional e de que os valores recolhidos a este título devem ser restituídos ao contribuinte.
Vale ressaltar que o princípio da segurança jurídica protege da aplicação retroativa do Direito não apenas os fatos jurídicos, atos jurídicos e decisões jurídicas consolidados no passado, como são reconhecidos tipicamente o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
O sistema jurídico tutela igualmente as posições jurídicas individuais, decorrentes do exercício de direitos de liberdade e de propriedade, e dos quais derivam, a partir das consequências jurídicas que daí defluem, expectativas de confiança legítima protegidas pelo Direito.
Caso típico é do indivíduo que exerce seu direito de petição ou de ação e espera do órgão jurisdicional o exaurimento da sua pretensão vis-à-vis o direito processual e o direito material vigentes, como aliás o próprio STF reconheceu ao excepcionar da modulação dos efeitos “as ações judiciais e administrativas protocoladas até a data da sessão em que proferido o julgamento de mérito”, ainda que sem trânsito em julgado ou mesmo qualquer decisão favorável proferida.
Quando o Supremo Tribunal Federal, em 13 de maio de 2021, ou seja, mais de quatro anos após o estabelecimento do novo precedente jurisprudencial, ao julgar Embargos Declaratórios interpostos pela Fazenda Nacional, concedeu a pleiteada modulação dos efeitos da decisão, veio efetivamente romper com as expectativas geradas a partir da sua própria decisão de mérito e do precedente vinculante por ela fixado, subtraindo da fruição de seus efeitos os contribuintes que moveram pretensão administrativa ou judicial após 15 de março de 2017.
A retroação da modulação dos efeitos para se aplicar a partir de 15 de março de 2017 e assim atingir contribuintes que atuaram sob a vigência do precedente e de acordo com a tese nele fixada, enseja uma ruptura da confiança que contraria não apenas o princípio da segurança jurídica, mas toda a racionalidade que permeia o sistema de precedentes vinculantes, bem como o regime de modulação dos efeitos previsto para hipótese de transição jurisprudencial.
A circunstância de que sequer havia, no momento da fixação do precedente vinculante, requerimento de modulação dos efeitos nos autos do RE nº 574.706, revela o quanto a aplicação de efeitos prospectivos tem sido feita, pelos nossos tribunais, de inopino e assim comprometendo a própria estabilidade do sistema que é a raison d’être do mecanismo em primeiro lugar.
Se o objetivo da modulação dos efeitos é mitigar a insegurança trazida pela mudança, inesperada, do entendimento jurisprudencial consolidado, evitando que retroaja para se aplicar a circunstâncias pretéritas ocorridas sob vigência do entendimento jurisprudencial anterior, mais ainda não haverá de aplicar-se retroativamente a própria decisão que determina a modulação de efeitos, restringindo a eficácia de precedente vinculante que, fixado há meses ou mesmo, como no caso da Tese do Século, há anos, já orientou o universo de jurisdicionados e gerou expectativas de confiança legítima, durante todo este período.
<div id="teste3-99b6e4ed7825b47581be" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('teste3-99b6e4ed7825b47581be', 'UA-53687336-1').createForm();</script> 
<script type="text/javascript">
setTimeout(function(){
 const btn = document.getElementById("rd-button-knf3ol7n")
 const check = document.getElementById("rd-checkbox_field-knj7ibbg")
 btn.disabled = true;
 btn.style.opacity = 0.7;
 check.addEventListener("click", function() {
 if (check.checked){
 btn.disabled = false;
 btn.style.opacity = 1;
 } else {
 btn.disabled = true;
 btn.style.opacity = 0.7;
 }
 });
}, 3000);
</script>
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: &lt;https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/limites-da-modulacao-dos-efeitos-pelo-stf-em-materia-tributaria-18062021&gt;.
<a href="#_ednref1" name="_edn1">[2]</a> Cf. TRF 5ª Região, Segunda Turma, Agravo de Instrumento nº 0807622-86.2021.4.05.0000, Rel. Desembargador Federal Leonardo Carvalho, julgado em 05/07/2021.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[3]</a> LUHMANN, Niklas. Vertrauen: ein Mechanismus der Reduktion sozialer Komplexität. München: UVK, 2014. p. 9 e ss.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[4]</a> Cf. THAMAY, Rennan; GARCIA JR., Vanderlei; FROTA JR., Clóvis Smith. Precedentes judiciais. São Paulo: Saraiva, 2021. p. 290 e ss.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[5]</a> Nesse sentido, ARRUDA ALVIM, Teresa; MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. Modulação: momento adequado, competência, critérios à luz de exemplos da jurisprudência. Suprema: revista de estudos constitucionais, Brasília, v. 1, n. 1, p. 194 e ss., jan./jun. 2021.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[6]</a> Cf. STF, ADI nº 3.794/PR, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 18/12/2014, decisão unânime; STF, ADI nº 3.106/MG ED, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 20/05/2015, decisão unânime.

WhatsApp Image 2019-10-29 at 17.09.19

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Em nome da segurança jurídica, renuncia-se à temporalidade inerente à validade das normas jurídicas substanciais

ICMS na base do PIS/Cofins e a modulação retroativa na transição jurisprudencial

Em nome da segurança jurídica, renuncia-se à temporalidade inerente à validade das normas jurídicas substanciais