João Victor Archegas

João Renda, meu colega (e xará) de Harvard Law School (HLS), recentemente publicou <a href="https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/notorious-r-b-g-e-o-poder-de-um-voto-divergente-13022020" target="_blank" rel="noopener noreferrer">um artigo no JOTA</a> destacando alguns dos pontos da inacreditável trajetória pessoal de Ruth Bader Ginsburg, tanto antes quanto depois de se tornar a segunda juíza mulher da história da Suprema Corte mais influente do mundo.
Desde seus primeiros passos na área jurídica dentro dos corredores da HLS (afinal, por aqui não gostamos de relembrar o fato de que Ginsburg concluiu seus estudos em Columbia) até sua indicação à mais alta corte dos EUA pelo então Presidente Bill Clinton, o texto de João Renda é uma celebração dessa figura icônica, que permanece em plena atividade após inúmeros e seríssimos problemas de saúde e às vésperas de completar 87 anos de idade.
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<li>+JOTA <a href="https://www.jota.info/degustacao/contato-poder" target="_blank" rel="noopener noreferrer" data-saferedirecturl="https://www.google.com/url?q=https://www.jota.info/degustacao/contato-poder&amp;source=gmail&amp;ust=1584216621132000&amp;usg=AFQjCNEGM_bd419HNnZbevPT9xGOBmtSgw">Sua organização está preparada para 2020? Com o JOTA PRO, milhares de profissionais antecipam o impacto de decisões judiciais no seu planejamento do ano. Entre em contato e faça um diagnóstico!</a></li>
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Após esse adendo, neste espaço vou relatar a experiência que foi conhecer a Justice Ginsburg pessoalmente, dentro da Suprema Corte dos EUA em Washington, DC. Mas antes preciso dar um passo atrás e explicar como cheguei até lá. Esse encontro não seria possível não fosse a generosidade da American Constitution Society (ACS), uma associação de juristas progressistas dos EUA (ou liberais, como são conhecidos no linguajar político estadunidense).
Ao contrário das faculdades de Direito do Brasil, os partidos políticos nos EUA possuem uma presença semi-institucional nas mais importantes universidades do país. Em Harvard os alunos podem se afiliar à Federalist Society (FedSoc), uma associação conservadora ligada ao partido republicano, ou à ACS, uma associação progressista ligada ao partido democrata. Até mesmo os professores se identificam abertamente como membros de uma ou outra associação.
<blockquote class="jota-article__eye">A atmosfera é de completa liberdade de expressão e de promoção do “livre mercado de ideias” – não se fala em “doutrinação ideológica” nas salas de aula.</blockquote>
Durante o ano letivo, ambas as associações promovem eventos e debates dentro do campus, cada qual avançando seus valores políticos. É importante ressaltar que as associações não vivem em isolamento completo; é comum que ambas unam esforços para organizar eventos conjuntos.
Após a graduação, os advogados podem contar com sua associação de preferência para expandir sua rede de contatos profissionais e até mesmo conseguir um emprego de assessor em cortes e tribunais ao redor dos EUA. A posição de assessor (clerk) é altamente cobiçada pelos melhores alunos e os juízes tendem a selecionar aqueles que estão alinhados às suas percepções político-ideológicas.
Assim, foi através de um processo seletivo da ACS que consegui ter acesso à reunião com a Justice Ginsburg em Washington. Após escrever uma carta explicando por quais motivos tal encontro seria importante para mim – na qual destaquei meu interesse por direito constitucional e cortes constitucionais –, fui notificado a respeito de minha aprovação e, duas semanas depois, viajei de Boston até Washington para participar desse momento único ao lado de outros colegas “liberais” (na acepção norte-americana da palavra) também da HLS.
Embora a programação da viagem envolvesse outros encontros interessantes, como uma visita à sede da organização Planned Parenthood, todos estavam ansiosos pela reunião na Suprema Corte.
Após um breve encontro na sede de um prestigioso escritório de advocacia dos EUA, onde tivemos uma palestra sobre direito eleitoral e gerrymandering (prática de “redesenhar” distritos eleitorais para consolidar dominância política em certas regiões do país), nossa delegação se dividiu em grupos menores e pedimos um Uber até o prédio da Suprema Corte. Um dos nossos colegas estava especialmente animado, “parece surreal colocar esse endereço como o destino final da nossa viagem”.
Chegando à Suprema Corte, nos dirigimos até a entrada lateral do prédio. A entrada principal é fechada ao público por questões de segurança e só pode ser acessada por advogados que irão sustentar na corte.
Após um rigoroso processo de revista, entramos no prédio através do átrio do centro de visitas. No final de um curto corredor fica a estátua do Chief Justice John Marshall, o redator da decisão Marbury v. Madison, rodeada de frases icônicas escritas por membros da corte ao longo dos anos. Os corredores são ornamentados com os retratos de juízes do passado, incluindo o recém-falecido Justice Scalia.
Uma curiosidade é que os retratos só são pendurados na sede do tribunal após a morte de seus membros. O quadro pertence ao justice enquanto vivo, mas acaba se tornando um incômodo memento mori e, assim, já é tradição emprestá-lo temporariamente a algum museu ou instituição.
O retrato de Scalia ficava exposto na biblioteca da HLS e foi transferido para a sede do tribunal após sua morte, em 2016. Hoje, na mesma biblioteca, é possível encontrar o retrato de justices ainda vivos que possuem alguma relação com a instituição (seja na condição de ex-alunos ou ex-professores). A minha dissertação de mestrado foi vigiada de perto pelos retratos de Kagan e Breyer, dois juízes liberais da atual composição da corte.
Como chegamos com certa antecedência no prédio, aproveitamos para almoçar no refeitório da Suprema Corte. No início do mestrado tive a honra de ser aluno da Justice Kagan (que, apesar de seus afazeres no Tribunal, permanece como Professora da Harvard Law School).
Naquela ocasião, ela relatou que foi a responsável por reestruturar o refeitório da corte quando era a juíza mais nova da corte. Pelas histórias que ela conta, a “caloura” da corte é responsável por uma série de tarefas marginais, como administrar o refeitório e abrir a porta da sala de conferência para os demais justices entrarem e saírem.
Além disso, Kagan é conhecida por ser uma “foodie” e a foi responsável por iniciar a tradição de oferecer café de graça para os alunos da HLS durante sua gestão enquanto diretora da faculdade.
Eu bebo o café da HLS todos os dias antes das minhas aulas e, como uma colega havia me alertado no início do mestrado, “o importante é que o café está lá e é de graça, não adianta perguntar se ele é bom ou não”.
As minhas expectativas não eram das melhores, mas o refeitório da Suprema Corte conseguiu ser ainda pior do que eu imaginava. Enquanto eu mastigava um pedaço de frango frito, lembrava de Kagan falando aos alunos, “eu tornei aquele refeitório muito melhor do que ele era, quando vocês comerem lá lembrem que costumava ser muito, mas muito pior“. Ainda que eu tentasse, era difícil imaginar algo ainda pior.
Após um almoço decepcionante, fomos escoltados até o segundo andar do prédio, onde fica localizada a sala principal do tribunal ou, para usar um termo comum no Brasil, o plenário da corte. Entre cortinas vermelhas era possível ver as cadeiras dos nove juízes, ao mesmo tempo em que éramos lembrados pelos seguranças que não é permitido tirar fotos naquele ambiente.
Um colega decidiu testar sua sorte e, após um registro fotográfico nada sutil, foi imediatamente repreendido por um dos seguranças e precisou apagar a foto da memória do seu celular. A aversão da instituição à exposição pública, ainda que apenas através de fotografias do interior do tribunal, é realmente surpreendente.
Certa feita o Justice Souter disse que uma câmera só entraria na sala principal do tribunal “por cima de seu cadáver”. Souter ainda está vivo, tem oitenta anos de idade e, até hoje, sua promessa continua valendo.
Após alguns minutos de espera fomos encaminhados para uma sala de conferência, adjacente à sala “infotografável”. A decoração do ambiente era de tirar o fôlego e, nas paredes, estavam pendurados os retratos de alguns dos presidentes mais influentes da história do tribunal, incluindo uma pintura de John Marshall logo acima da lareira. Além, é claro, do busto de Marshall, a pintura conta com os dizeres Fiat Justitia na margem inferior e foi concluída em 1835.
Foi aí que me dei conta de que não estávamos sentados em qualquer sala de conferência, mas na sala de conferência da Suprema Corte dos EUA, onde os justices se encontram após a sessão de sustentação oral para deliberar sobre os casos. A disposição das cadeiras havia mudado, a famosa mesa retangular estava encostada contra a parede e um púlpito com o brasão da Suprema Corte se encontrava logo abaixo do retrato de Marshall.
Esperamos sentados por pelo menos quinze minutos. Eu estava na segunda fileira e tinha uma visão privilegiada do púlpito. Duas colegas que estavam na primeira fileira brincavam entre si, “se alguém estiver doente e for espirrar, é melhor que faça isso longe dela”.
Há uma tensão entre os juristas liberais a respeito do estado de saúde de Ginsburg. Se ela precisar se aposentar ou, então, vier a falecer num futuro próximo, as chances são altas de que mais um justice conservador será nomeado, sedimentando a influência republicana sobre o tribunal.
<blockquote class="jota-article__eye">A esperança é que Trump não se reeleja ao final do corrente ano e, então, Ginsburg possa se aposentar com a certeza de que não será sucedida por mais um ultraconservador.</blockquote>
Atualmente a corte tende a se dividir entre cinco justices conservadores e quatro justices liberais. Em que pese a maioria conservadora, o Chief Justice Roberts é conhecido por trocar de lado e votar com os liberais em casos que possam danificar a imagem institucional da corte, como no julgamento que decidiu o destino do Obamacare em 2012. A substituição de Ginsburg tem o potencial de alterar significativamente essa frágil balança.
Para nossa surpresa, entretanto, no horário do início da reunião, ao invés dos passos lentos e calculados de uma senhora de oitenta e seis anos, fomos recepcionados pelos passos ágeis e desconchavados de três jovens, sendo uma mulher e dois homens. Eram os assessores de Ginsburg.
Não era um bom sinal, mas eles logo agiram para acalmar a ansiedade que tomava conta da sala, “calma, calma, a Justice estará aqui logo mais, mas ela pediu para que a gente viesse conversar com vocês enquanto ela descansa um pouco”. Ao que parece, a sessão de sustentação oral daquela manhã durou mais que o esperado e Ginsburg precisava de alguns minutos para recuperar o fôlego.
Os alunos, agora menos agitados, começaram a disparar suas perguntas. O primeiro questionamento veio de uma menina no fundo da sala, “é verdade que há uma quadra de basquete dentro da Suprema Corte?”. Após algumas risadas, um dos assessores confirmou a existência da quadra de basquete e disse que ela está localizada logo acima do plenário.
Uma anedota é que, anos atrás, alguns assessores começarem um amistoso durante uma sessão de sustentação oral e o presidente da corte precisou suspender os trabalhos até que os atletas fossem notificados do fato de que estavam quicando a bola de basquete acima da cabeça dos nove juízes da Suprema Corte. O segurança pessoal da Justice Ginsburg, que até agora estava parado ao lado da porta, deu uma risada e confirmou a veracidade da história.
Um segundo aluno perguntou, “qual foi a dica mais valiosa que a Justice Ginsburg deu para vocês?”. Os três assessores trocaram alguns olhares em silêncio até que um deles afirmou, “ela sempre diz para a gente ler o que escreve em voz alta, e isso me ajudou muito a melhorar o meu processo de escrita”. A assessora complementou, “nós nos comunicamos com ela mais por escrito do que oralmente, então saber expressar nossas ideias com precisão e usando poucas palavras é essencial”.
Por fim, uma terceira aluna indagou, “vocês têm a chance de conhecer os demais juízes durante o período de trabalho aqui no tribunal?”. A assessora, então, descreveu uma curiosa tradição da corte. Os assessores só ficam no tribunal pelo período de um ano. Após a conclusão dos trabalhos da corte, a equipe é completamente renovada. Assim, para promover uma maior interação durante esse breve período, os assessores levam os demais justices para almoçar pelo menos uma vez.
Ou seja, os três clerks da Justice Ginsburg terão a oportunidade de almoçar com os outros oito membros da corte e conhecê-los um pouco melhor. Essa tradição, ao que parece, é bem popular; eu já ouvi essa história de pelo menos dois professores que também trabalharam na corte, uma vez durante meu primeiro semestre de mestrado na HLS e outra vez durante um curso na Holanda de introdução ao Direito estadunidense.
Nesse momento o walkie-talkie do segurança fez um ruído, “Justice Ginsburg is on her way”. Poucos minutos após o alerta, Ginsburg entrou na sala sozinha, andando lentamente em direção ao púlpito. Todos se levantaram quando sua presença foi notada, mas ela logo sinalizou com sua mão direita que todos deveriam se sentar novamente.
Ao invés de usar o púlpito, ela pediu para o segurança arrastar uma poltrona até o centro da sala. Ela se sentou e, imediatamente, notei o contraste entre sua miúda estatura e a cadeira. Além de baixa, Ginsburg está extremamente magra e carrega consigo um semblante de extrema fragilidade física. Parecia que um sopro era capaz de derrubá-la e, involuntariamente, segurei minha respiração até que ela terminasse de se acomodar na poltrona.
<blockquote class="jota-article__eye">Nada obstante, minha inicial percepção de fragilidade e pequenez foi logo dizimada pelas suas primeiras palavras. O seu cérebro continua funcionando a todo vapor e sua oratória é impecável. Ela parece escolher as palavras com cuidado e opta por frases curtas que vão direto ao ponto.</blockquote>
Um de seus assessores disse que ela é conhecida por destrinchar questões legais complexas em poucos segundos; essa habilidade intelectual está claramente refletida na maneira como Ginsburg se comunica com a plateia. Sentada e de microfone em punho, sua voz preenche o ambiente e seu intelecto transforma sua aparente fragilidade em um verdadeiro monumento do constitucionalismo contemporâneo. Afinal, ela é a mulher que mais mudou a história do Direito nos EUA nas últimas décadas.
A conversa entre Ginsburg e os alunos durou pouco mais de quarenta minutos. Tão logo havia se acomodado na cadeira já nos avisou, “eu sou uma senhora de idade, a sessão de sustentação oral dessa manhã foi intensa e depois dessa conversa preciso me retirar para descansar”.
A primeira aluna a lhe direcionar uma pergunta questionou sobre o papel da mulher no direito constitucional. Ginsburg relembrou da história da primeira mulher que tentou se inscrever no bar da Suprema Corte e teve seu requerimento negado.
Para advogar na mais alta corte dos EUA, os advogados devem ser aprovados por pelo menos cinco justices além de cumprir requisitos mínimos. Embora a advogada em questão cumprisse todos os requisitos vigentes à época, o machismo que imperava na sociedade se mostrou um obstáculo grande demais para ser superado naquele momento.
Nada obstante, segundo Ginsburg, essa mulher passou a pressionar o Congresso até que uma lei fosse aprovada determinando que todas as advogadas mulheres que cumprissem os requisitos deveriam ser automaticamente aprovadas para atuar na corte.
<blockquote class="jota-article__eye">Segundo a Justice, esse é o papel da mulher no direito constitucional: nunca desistir e mudar o mundo através de sua insistência.</blockquote>
Uma segunda aluna lhe perguntou sobre a experiência de ser uma mulher no tribunal e quais obstáculos teve que superar para chegar ao cargo que hoje ocupa. Nesse momento, claramente emocionada, Ginsburg relembrou de seu falecido marido. Ela recontou as histórias que fazem parte do <a href="https://www.youtube.com/watch?v=FaKL-uN4MiI" target="_blank" rel="noopener noreferrer">blockbuster “Suprema”,</a> filme que recomendo enfaticamente para aqueles que querem conhecer sua história.
Ginsburg disse que precisou estudar em dobro quando era aluna em Harvard. Isso se deve ao fato de que seu marido descobriu um câncer quando estava no seu último ano de faculdade. Para complicar ainda mais a situação, a primeira filha do casal era recém-nascida. Ginsburg cuidava do marido doente, assistia a suas aulas, para que ele não fosse reprovado em qualquer matéria e, ainda, cuidava de sua filha.
Por fim, a terceira e última aluna lhe indagou sobre o futuro do país e da democracia. A justice foi enfática, “a única coisa que me faz ter esperança no futuro do país é a juventude”.
Ginsburg deu o exemplo de sua neta que se formou recentemente em Direito pela HLS e agora trabalha com direitos humanos e está fazendo sua parte para tornar sua comunidade melhor. “Se todos vocês fizerem o mesmo, tijolo por tijolo, um dia conseguiremos construir um mundo mais tolerante”.
Após uma rodada de aplausos, posamos para uma foto ao lado da <a href="https://www.youtube.com/watch?v=n0haGh_j2kU" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Notorious R.B.G</a>. Ela então se levantou e, sem pressa, se retirou da sala enquanto todos tentavam processar suas palavras e se davam conta do momento histórico que havíamos compartilhado com um dos maiores nomes da história da Suprema Corte dos EUA. Ao sair do prédio do tribunal e ver o sol se pondo atrás do capitólio, percebi que minha esperança no futuro da democracia havia se renovado.
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ruth

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JOTA

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'I Dissent': crônica do dia em que conheci pessoalmente Ruth Bader Ginsburg

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